terça-feira, 11 de julho de 2006

Sonhos

De certa forma, dá um medo quando os sonhos se tornam assim tão fascinantes.

Tenho de contar-vos uma história. Conto, porque segredo é coisa de quem gosta de sofrere. Conto, porque acho que pode ser uma bela história. Conto porque tenho medo. Ou desejo. Ou porque aquele calor era quase tão real quandoo calor que sinto agora, porque aquele carinho era quase tão confortante. Conto porque foi importante.

Nara, Nara, Nara. Eu não queria acordar...

Tudo começou de uma forma bastante estranha. Admito que foi tolice entrar naquela arena sem atentar para as conseqüências, mas quem diria que nós não poderíamos mais sair? Depois, como saímos, atraímos a pena de morte de todos os lados. Ainda não sei se escapamos.
Então, quem nos poderia culpar por termos nos aliado ao Crestomanci e seus subordinados? E de quem foi a culpa por eles terem usado magia numa hora tão imprópria? Se Hitler nos pegou naquela hora, ouso dizer que não foi por nossa incompetência. De qualquer forma, não havia muito o que fazer.

As coisas voltaram atrás depois daquele confronto. Fomos de novo crianças brincando com bexigas coloridas. O velho carro de um tio ou tio-avô estava parado na garagem e nós não podíamos resistir a colori-lo. Foi tudo uma seqüência de ações acorrentadas como as peças do Rali. Teria sido melhor se o vô estivesse conosco. Houve uma estranha cerimônia familiar, a qual me deixou muito irrequieta, e em todos os olhares eu via uma certa perda, talvez até uma hostilidade nos olhares dos tios dos meus tios, dizendo que eu não era neta deles. Foi horrível. Fizemos uma baderna para acabar com tudo.
Crescemos um pouco. O colégio era ainda mais bonito no sonho. Havia árvores floridas e labirintos, e colinas verdes alegres nas quais nos perdíamos sempre. Levei as criancinhas para passear num recanto cheio de coníferas e animaizinhos. Conversei novamente com o pequeno Dione. E a Leidinha. E a Môniquinha. O Paulo. Perdemos e encontramos muitas coisas. Materialmente, fomos feridos de morte. A dor foi embalada com boas lembranças.
Chegou finalmente o tempo da faculdade. O campus universitário era um lugar bastante estranho: moradias de diversos níveis, pessoas sempre muito diferentes, e em um lugar os alunos fizeram casas de pau-a-pique, de bambu, casas tão porcas que viver nelas parecia como viver num charco. O próprio chão era lama. Mas não nos intimidamos. Fomos em frente, perante os olhares de todos aqueles astranhos. Fomos armados. E nadamos na mesma água da praia deles.

Acho que o tempo passou. Várias foram as batalhas. As mortes. As aventuras. Voltei ao colégio, conversei com a Bia da Biblioteca, lemos novos livros com as crianças. Lavando o rosto no bebedouro do corredor, porém, eu ainda me sentia vigiada por aqueles olhos pequenos. Convivi. As histórias eram demasiado belas. Um dia, meu irmão me chamou. Entramos num ônibus estranho, e começamos a finjir. Finjimos que eu era tão grande guerreira e tão nobre quanto ele e os outros. Finjimos que eu era do seu clã, e não uma andarilha solitária, nem uma professora de escolinha de crianças. O velho nos deixou entrar depois de um exame minuscioso. Tinha cabelos grisalhos compridos e um estranho silêncio. Seus parceiros eram mais jovens e menos joviais; suas peles lisas não compensavam o cansaço e o pavor de todo aquele desconhecimento. Iríamos fazer armaduras. Uma pra mim, uma para ele. Eu queria que fosse azul, mas o velho devia ter decidido que seria rubra como a de Maccaly. Fazer o quê? Eu tinha bastante consciência do que ele estava fazendo. "Foque na realidade", eu disse. Decidira que a realidade era o meu sonho.

No sonho de hoje, porém, lutei sem armas. Estava de volta ao colégio, e encontrava novos e velhos amigos. Alguns nunca tinha visto antes. Como ele. Foi um sonho estranho. Talvez eu tenha conversado com Chihiro, ou Sen, talvez eu tenha discutido com a Gabi, lutado com o Cham, cumprimentado a Lori. A verdade é que me lembro mais claramente dele que de tudo o mais. Minto. Lembro melhor ainda dela.
O nome dele era Thomas. Como Thomas de Hookton, mas não tão bonito. Tinha uns cabelos comprido encaracolados como os do Eduzinho, mas mais escuros. Também os olhos eram escuros. E todo o corpo. Ou as roupas. Não sei como nos conhecemos, ou o que ele estava fazendo no colégio. Essas coisas não importam muito, seja na vida real, seja num sonho. Sei que ele foi na minha casa, quando dei uma espécie de festa. E quando chegou, apresentou-me aquele felino fantástico. A gata tinha três pares de patas. Quando sentava, ficava enclinada para frente ou para trás, incapaz de ficar ereta como um gato comum. Era mais humana, quase falava conosco e a tratamos como uma companheira, não como um bichino. O nome dela era Nara.
Conversamos por tempo indeterminado, eu, Thomas, Nara, outros gatos e outras pessoas. Ele deitou meio cansado, eu abracei o seu corpo e pensei me deixa adormecer dentro do sonho. Ele acordou de um cochilo, falou algumas bobagens, eu respondi à altura. Então Nara pulou no meu colo. Depois ele virou gato e ela virou gente. Uma menina linda, e bem menos cor de rosa. E ele era preto ou cinzento. Os dois brilhavam. Me fizeram repetir o nome dela muitas vezes para que eu não esquecesse. Nara? Nara! Nara. Thomas, Thomas. Tiveram que ir embora. Peguei-a no colo e não quis soltar mais. Queria tê-los conhecido um pouco mais, antes que voltassem para a escuridão brumosa das lembranças atemporais.

Não é que eu tenha me apaixonado, entende? Não foi como daquela vez. Daquela vez o rapaz não tinha nome, não tinha malícia, nem traços humanos. Era um desenho, uma sombra, um vulto. Aqueles momentos agradáveis foram diferentes destes. Desta vez não havia nenhuma suposiçao. Os conheci ali, não havia passado. E da outra vez não havia a linda Nara.
Não. Acho que foi apenas a facilidade de tudo aquilo. Até porque era um sonho, e nos sonhos as coisas tendem a ser simples. Sem jogos, sem obrigações, sem medos, sem preâmbulos. Nos sonhos também as coisas tendem a durar pouco.

Dormi de novo e estava andando pela cidade com meu irmão. Chegamos à casa de Thomas. Era uma casa linda, com fantásticas coluninhas ornamentadas "suportando" uma laje enorme. Quando a demolição começasse, se desmanchariam como flores quando pisadas. Eu e Marco começamos a retirar as colunas, especialmente as mais bonitas e delicadas, e juntá-las longe do resto da casa. Os demolidores nos observavam, faziam comentários, achavam estranho, mas continuamos. Thomas e Nara não morariam mais ali, mas ainda era um lugar bonito. Ao menos aquilo seria salvo.

O sonho acabou enquanto notávamos como aquela parecia a casa da vovó. A casa que era da vovó.

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