segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Livros debaixo dos livros

Li uma newsletter da Olivia Maia hoje, e eu devia estar escrevendo um e-mail pra ela, mas de qualquer forma que coisa boba imaginar que uma pessoa quer receber um e-mail comigo falando bobagens da minha cabeça e de como os pensamentos dela me impacaram (era pra ter um t ali entre o c e o a, mas não foi e acho que vai ficar assim mesmo, me empacaram), afinal eu sou só uma pessoinha meio boba que constantemente sente que não está conseguindo mergulhar num mar de histórias.

Ultimamente eu tenho lido pouco, e às vezes passado meses sem ler nada. Pra pessoas como eu (e, eu acho, Olivia), que meio que se construíram a partir de livros, isso é um pouco como... Passar dias e dias sem sair de casa, sem olhar pela janela. Você engana, vive, faz outras coisas, mas com o tempo começa a se sentir vazio por dentro, e percebe que naquela parte de você em que costumava haver uma floresta tropical de histórias e cenários e momentos e personagens, agora há uma seca brutal e quase que um deserto... Com o tempo a vida fica parecendo menos, e as palavras vão faltando, e as emoções ficam inacessíveis... 

O que me perturba é que ultimamente eu tenho evitado ler. Há livros e livros na minha estante que eu não li, e eu não pego nenhum deles. Eu leio webcomics, em momentos de cansaço ou tristeza ou quando o vazio fica muito grande eu leio um quadrinho inteiro de cabo a rabo, mas aí acaba e eu fico mordiscando as migalhas de webcomic que saem toda semana, e eu tenho que acompanhar uns vinte ao mesmo tempo pra conseguir sobreviver. Não tenho comprado quadrinhos porque é caro, e não tenho lido livros porque... Bom, muitas coisas.

Em parte porque eu sinto falta de ler em português, porque eu tenho lido demais em inglês e eu sinto que estou me expressando melhor em inglês que em português e quantas vezes eu fico tentando traduzir do inglês pro português alguma frase ou sentimento sem conseguir de verdade. Em parte porque eu não tenho mais saco pra livro mal traduzido, me dá umas ganas, incomoda, o livro tem que ser fenomenalmente bom pra eu conseguir continuar lendo. Em parte porque ás vezes eu começo a ler um livro e descubro o quanto ele é horrivelmente machista, e aí eu largo o livro no meio, e quão horrível é largar um livro no meio? Em parte é porque dos meus dezoito anos pra cá eu me esforcei mais e mais pra viver no mundo real e tentar impactar o mundo real e conviver com pessoas reais e fazer alguma diferença, sabe? E sabe o quê? Em algum lugar nos últimos anos eu comecei a me arrepender disso. Sério. No começo eu já questionava se tinha sido uma boa idéia, porque eu ainda não tinha ganhado nada e já estava perdendo muito. Depois por um tempo eu comecei a viver coisas incríveis que faziam tudo valer a pena. Mas depois de um tempo eu comecei a sentir mais e mais falta de quem eu era, e menos orgulho de quem eu sou. E eu comecei a passar por coisas estranhas como tédio e falta do que fazer, quando antes eu sempre teria coisas em que pensar e histórias para descobrir. E parte disso é que eu não tenho vontade sequer de ler livros... Não é que eu não leia livros, mas eu leio eles todos de uma vez e depois fico evitando ler livros porque "esse é um tempo que eu não tenho pra perder". Mas eu sinto um vazio brutal que vem diretamente de não estar lendo um livro... E ao mesmo tempo fica cada vez mais difícil escrever, desenhar e criar em geral.

Me ocorreu agora que também eu tenho quase que não assistido filmes e nem TV. Parece bobo, mas eu acho que talvez eu esteja sentindo os efeitos de não ter a oferta de séries e filmes, mesmo que bobos, histórias mesmo que bobas, todos os dias, o tempo todo. Em
Compensação, eu me regozijo com cada artigo bem escrito, científico ou jornalíslico, cada livro didático ou tutorial que me interessa. Eu tenho jogado pouco também, e dado cada vez mais importância aos jogos. Estou me agarrando às migalhas que me dou.

É isso, só.
Estou me sentindo bastante vazio por dentro, mas posso me obrigar a me alimentar melhor.

sábado, 27 de dezembro de 2014

Pilha de papéis

Estou tendo um acesso de filosofia adolescente, porque esta pilha de papéis está parecendo uma metáfora pra minha vida. Essa coisa no fundo da pilha, enterrada e inacessível, é meu diário da adolescência, cheio de histórias, reflexões, poemas, desenhos, viagens. Em cima estão listas de exercícios, cadernos de estudo, apostilas de cursinho, etc etc etc, simbolizando o tanto de conhecimento que eu tento obter e como eu sinto que aprendo tudo de forma rasa e desconeca, como num cursinho, e não como num livro aprofundado sobre o assunto. Eu sou uma apostila de cursinho, não um livro autoral que reúne todo o conhecimento novo e aprofundado num tema. Mais pra cima na pilha tem um bloco de papéis em branco, que simbolizam justamente a quantidade de papéis em branco que eu tenho, resultado de tentativas de preenchê-los com muitos projetos que eu demonstro não ser competente o bastante para realizar. Resumindo, eu tento cobrir a minha falta de profundidade com projetos novos que eu nunca consigo terminar a acabam se tornando mais provas da minha falta de aprofundamento; e no fim a coisa de que eu mais me orgulho são as minhas lembranças da adolescência, quando eu era capaz de mais profundidade, e de preencher folhas em branco. 

Este post em si apenas reitera o que estou falando.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Segregaçã Etária

Eu tava aqui pensando em como a segregação etária perpetrada pela escola é um problema. Deixe-me explicar.

Quando eu tava no colegial, eu tinha muites amigues, unides entre outras coisas por quão desajustades nós éramos à ordem social escolar. Algumes de nós tinham sofrido muito bullying na mesma escola. No colegial, quando começamos a nos envolver em romances adolescentes e outras situações novelescas, nossas inseguranças e imaturidades, misturadas com as nóias com que anos de exclusão social haviam nos imbuído, começaram a causar conflitos entre nós. Eu me lembro de um amigo que decidiu sabotar meu namoro com outro cara, por exemplo. Na época eu morri de raiva dele por que a atitude dele me fez tomar decisões erradas e sofrer. Muitas pessoas pareciam querer que eu fosse mais "puritana" ou sei lá. Vários dos nossos amigos estavam "no armário", ou saindo dele e ainda meio perdidos. Hoje em dia eu olho pra trás e penso que a pessoa que eu sou hoje teria lidado com tudo aquilo, dialogado, resolvido os problemas. Mas aí eu penso que eu hoje em dia não posso nem ajudar adolescentes a entender os problemas confusos nos quais eles se metem. Será que teria ajudado se na época nós pudéssemos ter tido amizade com pessoas mais velhas? As pessoas mais elhas na nossa vida eram sempre parentes e professores e colegas de trabalho dos nossos parentes -- boa parte eram que pessoas com quem eu não conversaria sobre nada pessoal, nem no passado, nem hoje. Nós estávamos constantemente inventando o mundo em que vivíamos, ou tentando sobreviver às complicadas hierarquias sociais da micro-sociedade adolescente da escola. Isso poderia até ser libertador, mas na prática a micro sociedade era tão hostil quanto nós esperávamos que o mundo lá fora fosse. Eu não sabia que eu ia conseguir me libertar das inúmeras correntes que me prendiam na escola. Eu não sabia que a vida ia ser maior e melhor e mais livre, e que eu ia concluir que não valia a pena ter nenhuma daquelas nóias, e que eu ia ter vergonha dos meus preconceitos bobos da adolescência. Eu não sabia que eu ia ter uma comunidade queer, não-mono, não-binarista de amigues que iam prezar pela miberdade e segurança de todo mundo. O mundo humano parecia desinteressante e limitado. Eu preferia a solidão à interação social. Naquela época, meu amigo fez uma piada, quando eu estava brincando com um pedaço de pau ele olhou pra mim e falou "você gosta de um pau, hem?" E eu tive que juntar 200% da minha força de vontade pra encarar de volta e falar "claro! Você não?".. Eu lembro porque foi extremamente significante. Hoje eu dia eu faço essas coisas sem nem pensar. Eu também lembro da minha primeira conversa sobre sexo, quando eu tinha 18 e fui numa viagem com amigues da minha irmã mais velha (todos e todas cis e hétero). Pensa só, no colegial eu tive que defender a minha honra e de meus namorados e amigos inúmeras vezes, mas eu nunca tinha tido uma conversa de verdade sobre sexo, na qual eu pudesse falar e perguntar e rir das piadas bobas e ouvir histórias boas e ruins e verdadeiras. Eu só tinha participado de piadas, zueiras, ofensas e bullying. Eu tinha vontade de conhecer outros tipos de pessoas, outros estilos de vida, mas eu só consegui isso depois de sair da escola. De fato, depois da escola todo mundo foi ficando mais seguro de si e se descobrindo e saindo dos armários todos. Demorou um tempo, mas aconteceu.

Quando eu penso na minha história de vida tudo parece meio surreal. Não sei se é só dissociação mesmo, porque eu passei tanto tempo sentindo que tudo era uma enganação, e porque eu dava tanta mais importância a histórias fictícias, ou porque falando objetivamente nada aconteceu, mas subjetivamente minha vida parecia um filme da Bridget Johnes. Acho que grande parte é porque nada bateu com o que era pra ser adolescência, com os relatos de adolescência que eu ouvi, tanto na época quanto depois. Eu ouvi relatos de adolescentes que tinham poucos amigos e odiavam todo mundo, e relatos de adolescentes que tinham vários amigos e iam em festas e bebiam escondido dos pais, e relatos de adolescentes que trepavam muito e passavam o dia na rua, mas nenhum relato era de adolescentes que não bebiam, não trepavam, não fumavam (essencialmente por moralismo barato, me parece), tinham infinitos amigos, gostavam de várias pessoas, inventavam histórias fofas e malucas e horríveis e não sabiam se comunicar direito com os outros adolescentes. Ainda fico me perguntando se não há adolescentes como nós na minha velha escola, perdidos e empolgados e se machucando uns aos outros por pura ignorância coletiva.

Enfim eu desviei um pouco do assunto original, mas eu acho que teria ajudado se nossas ofertas de amizade não fossem tão limitadas em faixa etária, se pudéssemos ter mais contato com pessoas mais novas e mais velhas com quem nos déssemos bem. Acho que teríamos ficado menos à mercê dos moralismos que os adultos da geração de nossos pais queriam que acreditássemos.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Hoje

Ack

Blargh

Uck

Rosa

Dirgh

Mleck

Wok

Puff

Aaack


"Use o seu poder feminino"

Glaaagck

Muck

Sooork

Yuk

"Mesmo sendo menina"

...

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

I'm drunk and I had so much fun

Não sei se eu devia admitir que ficar comigo não é exatamente prova de ginosexualidade; que dos meus últimos quatro namorados, um namora com homem, um namorou com um homem trans, e outro é bi... E das minas que me pegaram uma disse que eu era um misto entre homem e mulher, e, sabe o quê? Acho dahora isso tudo.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Quzstões sobre a caatinga

Quando fomos pro curso de probabilidade, num pequeno grupo de amigos, em outra cidade, nos organizamos mais ou menos numa república. Rapidamente, como acontece em repúblicas de amigos, desvolvemos uma unidade peculiar, hábitos próprios e piadas internas. Nos últimos dias decidimos que nossa apresentação final ia ficar melhor se incluíssemos uma seção piada sobre os membros do grupo, e nos vestíssemos com um uniforme. Encomendamos os uniformes, que eram essencialmente pijamas laranja-e-brancos com orelhinhas e coisas do gênero, feitos de tricô (aparentemente havia uma empresa na cidade que fazia tricô por encomenda, bastava mandar um desenho do padrão desejado que em menos de uma semana ficava pronto). Nossa apresentação ia incluir uma sessão de perguntas humorísticas sobre a especialidade de cada membro do grupo. No dia, montamos um projetos de slides na sala da república, e nossos professores, colegas, mães e amigas das mães sentaram em pufs e cadeiras de praias e talvez caideiras de balanço que havíamos pegado por aí. No fim da apresentação vieram as pergunas: uma pergunta sobre linhas de trem pro engenheiro, sobre resistência dos materias, sobre fissão nuclear pro físico, essas coisas. Decidiram que minha especialidade era biologia, e me fizeram a seguinte pergunta:

"Por que é que na caatinga o gato do mato, em vez de ser grande e fofo como a maior parte do felinos, tem aquela cara feia de bicho mau?"

(Não me lembro os termos exatos, mas acho que aproxima bem)

Me lembro que haviam me avisado que haveria ima pergunta sobre a caatinga, mas eu não aproveitara pra estudar o ecossistema. Eu nem sabia se na caatinga havia gatos do mato (aparentemente não só eles existem, como são absolutamente adoráveis e estão em extinção, como na verdade o eossistema inteiro: <a href:"http://www.pensamentoverde.com.br/meio-ambiente/fauna-brasileira-especies-em-extincao-na-caatinga/">olha só</a>). Então o que eu fiz? Enrolei pra caralho. Eu comecei a explicar que a caatinga sendo um ambiente desértico (??) não consegue sustentar predadores grandes como um leão fofo; aí decidi voltar pra base e explicar o conceito de produtividade primária, cadeia trófica, blablabla; aí me cortaram falando "mas a pergunta era sobre a cara feia do gato da caatinga!" Aí eu n sabia nada sobre esse gato, mas imaginei que ele devia parecer uma raposa, com umas sobrancelhas enormes, e comecei a delirar sobre as sobrancelhas enormes serem uma coisa que protege os olhos dele da poeira, e outras bobagens do gênero. Depois a Chris disse que tava gostando que eu tinha tentado explicar tudinho detalhadamente, a partir do começo; então eu voltei a falar de biomassa e fotossíntese e essas coisas todas.

Aí eu acordei.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Privilégio hétero e essas bostas

Eu acho meio estranho quando alguém pensa que eu tenho um relacionamento hétero. Eu até entendo de onde essa idéia vem, sabe, a gente faz umas coisas meio héteras tipo ir em eventos de família, inclusive na igreja, discute com parente reaça, ouve bosta heterossexista falada em tom amigável.

Passar como hétero é um privilégio meio bosta, porque as pessoas hétero tendem a achar que a gente é também e não têm aquela auto-contenção que é resevada para Os Outros. É mais ou menos como ser visto como um bróder pelos caras escrotinhos do colégio: por um lado eles não batem em você, por outro, eles falam pra você tudo o que eles não falariam pruma mina ou prum viado. Recentemente, na casa da minha própria irmã, um mala perguntou pra roda de amigos: "é namorada de quem?". A pergunta me soou tão desrespeitosa que eu fiquei sem reação. Por ser uma pessoa muito de esquerda ("radical" segundo minha mãe), eu nunca sei quando é socialmente viável ficar puta da vida com uma merda que alguém fala. Eu devo xingar quando alguém fala uma coisa machista? E quando alguém fala uma coisa reaça? E quando alguém propõe desmatar 25m2 de beira de rio?Quando que eu posso não aturar mais e mandar pro inferno? Então eu só não reajo. Eu sei que é pior ainda, mas eu morro de medo de errar e cair num vortex de briga de família. Aí depois desse cara fazer essa pergunta escrota, seguida de uma piada escrota, um tempo depois eu tirei um sarro de leve de uma piada besta que ele fez sobre parecer gay, e ele vira pra mim e aponta que minha roupa é super gay. Eu ri. Que bom que eu não pareço ht, né, imagina que pira? Mesmo meus amigos hétero em geral não são super fãs da indumentária heteronormativa.

Outra coisa que me vêm à mente é que é um relacionamento hétero que não envolve nenhuma pessoa hétero. Na verdade mesmo se alguém vier falar que ele é homem e eu sou mulher eu já vou olhar muito torto pra essa pessoa. Tira a sua obcessão com gênero do meu corpo, que nojo! 

Ultimamente eu tenho evitado sequer falar sobre sexo e gênero, porque, sabe, eu não quero ter que ficar noiando sobre o meu papel no mundo, a vida já tá bem foda só com os compromissos que eu escolhi ter. Mas às vezes essas coisas vêm à toa, e às vezes eu quero bater em cada homem que se recusa a apertar minha mão. Ugh.

Eu diria que eu tenho em muitos aspectos os privilégios de ser lide como uma pessoa cos. Mas no meu casp isso quer dizer que eu sou lido como uma mulher cis, e que as pessoas vão me tratar desse jeito. Com mulheres às vezes é mais de boa, às vezes menos, depende do quanto elas ligam pra gênero. Mas homem parece que liga sempre muito pra gênero. Inclusive homem trans. Parece que poder discrimiar as pessoas por gênero faz parte dos privilégios do macho. E eu tenho vontade de morrer toda vez que eu sinto que o macho tá me tratando como uma fêmea, e portanto um bocho estranho e inferior. Infelizmente eu sinto isso a partir de coisas muito pequenas. Alguns homens ficam realmente ofendidos se você tenta dar um aperto de mão, mas ao mesmo tempo você vê a importância que eles dão praquilo quando apertam a mão de outros homens. É como se eu me recusar a ser mulher como eles esperam fosse uma ofensa pessoal contra eles.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

--- E pra quê eu preciso saber disso?

Então, tipo, esta semana eu tava dando aula e apareceu um exercício de vestibular que tinha umas funções logarítmicas deslocadas, com as assíntotas verticais em tracejado. Aí eu pensei "poutz, é melhor eu explicar pressas pessoas o que que é uma assíntota!"

Eu falei pra turma que eu ia explicar isso pra elas, e imediatamente a menina super dedicada que quer prestar poli me pergunta:

--- E pra quê eu preciso saber isso?

Hm.

Olha, eu entendo que com o vestibular se aproximando é normal a gente começar a ficar na pira de não querer estudar nada que não for ser imediatamente útil. Mas acho que a questão é mais profunda aqui, é uma questão que eu sinto mais forte, que é a questão de querer sempre justificar o aprendizado de matemática. Sempre. Quantas vezes eu já não ouvi gente reclamando que estudar essa ou aquela matéria de matemática era inútil, por que nunca ia usar aquilo na vida?

Imagina que eu estivesse dando aula de biologia, e eu começasse a falar sobre o ornitorrinco, e eu começasse a descrever como ele é, onde ele vive, que tipo de bicho ele é. Alguém na turma ia perguntar pra que saber do ornitorrinco ia servir? Ou imagina que eu começasse a falar de, sei lá, de quelíceras, que é essa parte do corpo das aranhas, sabe, que vários artrópodes têm, que elas usam por exemplo pra te picar. Alguém ia perguntar "mas pra quê que isso serve?". Ou imagina que eu desse aula de história, e eu quisesse explicar sobre relações de servidão, ou eu quisesse contar a história da Alsácia-Lorena. Ou mais ainda, imagina que eu desse aula de artes, e que eu quisesse explicar que existe essa cor, que chama azul.

Pra quê servem assíntotas? Sei lá, possívelmente pra nada, pra que serve azul? Assíntota é uma coisa que algumas funções têm; algumas funções têm comportamento assintótico, é algo que acontece, é interessante em alguns casos, é legal, funções assintóticas representam bem alguns tipos de idéias, por exemplo a idéia de se aproximar de um ponto de equilíbrio; sem contar que boa parte das funções mais comuns que tem são assintóticas. Pra que serve estudar assíntotas? Bom, em primeiro lugar, serve pra você ler a palavra "assíntota" em algum lugar e saber o que significa. Também serve pra você ver uma linha tracejada num gráfico e saber o que aquela linha é. Serve pra você identificar que aquela função super conhecida tem uma assíntota vertical no zero, e ver um gráfico de função com essa assíntota deslocada, e perceber que teve um deslocamento da função. Pra que serve saber o que é uma pata, uma orelha, um estômato? Pra que serve saber o que significa "antípoda"?

Eu fico pensando por um lado que matemática deve ser um saco absoluto pras pessoas, claro, que ninguém tem a menor vontade de estudar curvas, funções, transformações, derivadas, assíntotas, limites. Quando a minha professora de história começou a falar da história das termópilas, no colegial, ninguém interrompeu ela pra perguntar por quê ela achava que ela tinha que contar aquela história. Mas ao mesmo tempo isso é porque a história era interessante.

Por outro lado a gente devia mesmo parar o tempo todo e se perguntar "mas o que que eu tô fazendo aqui? Por que eu tô fazendo isso?"... Só que assim, é preciso se perguntar, mais do que "por quê aprender isso?", é preciso se perguntar "o que eu quero aprender?". Então eu não sei o que eu tenho que falar quando eu tô dando uma aula de cursinho e uma pessoa vem me perguntar o que eu tô fazendo ali. Eu penso: bom, eu tô tentando mostrar os comportamentos de funções pra vocês, pra fazer elas parecerem menos assustadoras, prelas fazerem um pouco mais de sentido, porque vocês vão precisar saber manipular essas coisas na prova que vocês vão fazer, e porque algumas de vocês vão inclusive usar um monte de funções ao longo da vida de vocês porque vocês vão estudar engenharia, física, essas coisas. Não é o sistema de ensino do qual eu gostaria de estar fazendo parte, e nem é o sistema de ensino que vocês querem, tb. Mas eu tava pensando que ultimamente o vestibular tem ficado cada vez mais dahora, cada vez mais misturando as disciplinas e fazendo perguntas inteligentes que exigem que a gente pare e pense e manipule os conhecimentos. E que o vestibular está mais dahora que o sistema de ensino das escolas. E que eu não tenho o menor saco pra dar uma aula enciclopedista, e nem eu acho que isso vai ajudar com porra nenhuma.

Além do mais, eu sou uma dessas pessoas que acha matemática uma das coisas mais lindas do mundo, e eu não ia conseguir mutilar completamente essa coisa que eu estudo.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Dinheiro vs Riqueza

Hoje eu me vesti, olhei pra mim e pensei: "heh, eu devo ter gasto menos de quinze conto nesse outfit bonitão... Bom, exceto pela camisa que custou vinte."

Aí eu olhei de novo pra minha roupa e percebi que eu estava vestindo uma bermuda de marca, um allstar, etc etc, e que se eu tivesse pago por tudo isso, eu teria gastado lá pelos duzentos reais. Mas eu ganhei a blusa da mãe, a bermuda que o tio não usava mais, o tênis veio de uma amiga da sogra, o cinto talvez de uma prima, a camisa eu comprei numa promoção na augusta.

No fim das contas, mesmo eu não ganhando muito dinheiro, eu ainda tenho um monte de gente rica na família que me dá coisas. E isso conta como privilégio de classe.

domingo, 12 de outubro de 2014

Compaixão

A pessoa do outro lado da mesa disse que os movimentos grevistas da USP eram "uma falta de patriotismo!"

Eu não seria a pessoa apropriada para questionar isso porque eu tenho a impressão de que usar a palavra "patriotismo" já é começar errado. Quando eu penso em nações patrióticas eu penso na Alemanha nazista. Pra não ficar muito <i>reductio ad Hitlerum</i>, eu penso também nos exércitos, todos, em jovens dando suas vidas para matar outras pessoas jovens. Eu penso em guerra. Eu penso na ditadura militar brasileira querendo que todo mundo ficasse quietinho e exaltasse o Brasil no hino nacional. Pra mim quem exige patriotismo é gente que apóia a ditadura, é militarista, é querer que não se critique um governo, que se aceite ser governado sem questionamentos. É uma palavra que não me traz boas impressãos.

Pra falar a verdade, eu tenho esse impulso de dizer que patriotismo é uma coisa errada. É errado porque significa amar à patria mais que aos outros. E se é pra "amar ao próximo" e ter compaixão e etc, é pra amar a todos, e a todas as coisas vivas, independente de onde elas estejam. Não é pra amar ao seu vizinho mais do que a um estrangeiro. Quando o padre diz pra amar o próximo, ele não quer dizer que é pra amar só quem está perto, entende, é só uma força de expressão. Inclusive se você pensar na imensidão do universo todas as pessoas da terra estão bem pertinho. Mas é claro que se aparecerem aliens na terra você pode tentar amar a eles também. Compaixão significa empatizar com todas as criaturas. Não é pra respeitar o parecido e cuspir na cara de quem é diferente.

Acho que passar tempo com gente católica acaba ativando minha criação católica e eu fico pensando sobre todas essas coisas. Se você pensar a Bíblia soa o tempo todo como um clubinho bairrista. É pra amar seu vizinho e Deus vai destruir seus inimigos. "O povo de Deus", dizem os religiosos, quando não "o povo escolhido". Os filhos de Abrão. Não admira muito que tantos povos tenham feito guerras por "terras prometidas". Mas ao mesmo tempo quando Cristo morre na cruz ele não condena nem mesmo os infiéis romanos que o matam. Hoje em dia fala-se muito nisso, nessa compaixão. Eu penso um pouco na compaixão que me foi ensinada, e acho que é uma compaixão que tem algo de budista, nesse jeito de ter respeito e amor por todas as coisas. As nações e as bandeiras não fazem sentido, porque todos somos um perante o sagrado ("sob Deus" ou "no amor de Cristo", ou o que você quiser). Nesse sentido o patriotismo é um tanto anti-cristão, ou é uma religião em si, uma heresia de certa forma. Acho que os papas medievais concordariam comigo.

Por outro lado, se não fosse toda essa conotação facista que a palavra "patriotismo" tem, eu falaria sobre como os rebeldes, os grevistas, são na verdade os maiores patriotas. Porque amar ao seu país não significa amá-lo quando ele vai bem e abandoná-lo quando ele vai mal, nem significa amá-lo todo o tempo e ignorar seus problemas. Amar seu país significa lutar para melhorá-lo e fazer dele o melhor país possível. Os professores universitários em greve querem de fato que sua universidade seja a melhor possível, que haja professores o bastante para dar todas as aulas, e que as contas da universidade sejam abertas para que todos possam garantir que a universidade está sendo bem-gerida. Muitos deles estão em greve apesar do custo que isso tem para eles (apesar do esforço contra isso, quase sempre o custo da greve de professores é maior para os professores do que para reitores e governantes - que ultimamente têm tentado dar a entender que eles nem ligam). Pode-se discutir quão adequado e eficiente é esse método, nesse caso, mas dizer que greves são antipatrióticas, que um povo está contra sua pátria, é fingir que esse povo não compõe a pátria. A impressão que eu tenho é que patriotismo em si é antipatriótico, porque o patriotismo não faz bem pro povo. Eu diria que querer extingüir as divisas entre as nações pode ser patriótico.


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Utilidade

Faz algum tempo tive uma discussão com um colega sobre a impressão que a população em geral tem da ciência e da universidade. Se um governo investe em ciência, é provável que a população se sinta injustiçada. A universidade tem essa fama de ser composta por vagabundos que nada fazem de útil, e estudar é visto como um privilégio. Isso transparece nos discursos de que mestrandos e doutorandos não devem exigir bolsas que os sustentem -- como estudar é um benefício em si, não é justo que o estudante receba além disso um benefício monetário. Mesmo quando o investimento é diretamente em pesquisa, questiona-se a necessidade desse investimento. Meu colega me explicou que o que acontece é que a população não vê a utilidade da ciência porque ela de fato não lhe beneficia.

Acho que uma parte disso é um erro, já que as pesquisas feitas com incentivo público nas universidades públicas são as responsáveis pelos maiores avanços a longo prazo nas questões de interesse da população carente. Outra parte disso é causada por uma visão extremamente individualista - porque o único benefício reconhecido do estudo é aquele para o estudante, que pode se tornar uma pessoa mais capacitada e no futuro conseguir empregos melhores - e utilitarista - ou seja, não se enxerga a importância da manutenção da comunidade científica em si. Ao que me parece, a aparente utilidade prática da pesquisa científica serve para obscurecer a natureza artística e cultural da ciência. Seria mais coerente, eu acho, que programas de pesquisa em algumas áreas de ciência teórica abstrata fossem financiados por programas de incentivo a cultura. Porém, como supõe-se que a ciência é útil, passa-se a se exigir que ela seja valorizada apenas enquanto é perceptivelmente útil.

De um ponto de vista mais prático porém, eu acho que o cerne da desconfiança com as instituições científicas é justificado. Se uma sociedade sustenta uma instituição que não se preocupa em criar benefícios para a sociedade, essa instituição se torna como um mosteiro, ou como talvez fossem algumas antigas universidades, ou bibliotecas, lugares onde o conhecimento é armazenado e mantido vivo e refinado, que têm a própria continuação e aperfeiçoamento como seu único objetivo. Eu adoraria viver numa universidade assim, mas eu não sei até que ponto eu acharia justo investir numa instituição cujos frutos são intangíveis para quem a sustenta.

A universidade que temos hoje é composta em grande parte por artistas que se dedicam apenas à sua arte, mas em outra grande parte por pessoas sonhadoras que desejam que sua pesquisa torne o mundo melhor. Algumas dessas pessoas se envolvem com projetos de extensão, que é o meio oficial de devolver para a sociedade os benefícios do estudo, algumas voltam-se para o ensino, e algumas procuram projetos de pesquisa que possam ser utilizados no futuro, por pessoas mais empreendedoras, para tornar as coisas melhores. Mas esse esforço é inútil se não houver quem aplique e distribua esse novo conhecimento. Muitas vezes, existem forças poderosas trabalhando justamente contra a aplicação do conhecimento. A universidade se torna um núcleo de resistência a uma cultura destrutiva... Mas uma resistência passiva pode ser simplesmente ignorada. É preciso uma articulação com as ruas.

Tudo isso pra dizer que muitas vezes os temas que mais me apaixonam na ciência muitas vezes me parecem incapazes de transformar o mundo de verdade. Isso me frustra, e me leva a investir cada vez mais energia em coisas cujo resultado eu possa ver. Talvez eu não seja a pessoa mais apropriada para fazê-las, mas pelo menos eu acho que elas precisam ser feitas. Mudar o mundo nos detalhes já é melhor que não mudar nada. Talvez isso faça de mim uma pessoa errada para pesquisar matemática: meu amor por ela é grande, mas eu tenho dificuldade de ver a importância do que eu faço por amor. Especialmente se quase ninguém pode compartilhar comigo a beleza do que eu estudo. É como escrever uma história e não poder contá-la a ninguém.

sábado, 23 de agosto de 2014

Conseqüência

Ontem eu assisti Maleficent, que foi a surpresa cinematográfica mais agradável dos... Hm possivelmente de toda a minha vida. Talvez o relato a seguir seja conseqüente disso.

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O Condado era habitado majoritariamente por hobbits e saiajins, que viviam em perfeita paz e harmonia; porém, nas baías e istmos ao sul (que pareciam suspeitamente com a Cajaíba) haviam muitas comunidades de fadas, unicórnios, cavalos mágicos voadores, animais falantes e outras criaturas maravilhosas. As pessoas das cidades humanóides do Condado nem sempre acreditavam na existência dessas criaturas, muito embora elas visitassem suas cidades, às vezes passando despercebidas e influenciando suas vidas em segredo, outras lançando encantos e maldições desses que dão origem a contos de fadas. Mas vocês sabem que hobbits não são muito chegados a ter aventuras acontendo com eles. E os saiajins por seu lado não conseguiam entender a natureza pacífica e fabulosa das criaturas-fadas.

Mas tudo mudou quando grandes furacões e tempestades surgiram no Mar do Sul, derrubando árvores e casas e destruindo os lares das criaturas-fadas. Ondas gigantes carregavam pequenos animais para o mar aberto, morros desmoronavam sobre comunidades indefesas, e só sobreviveram aquelas criaturas que conseguiram escapar para as regiões mais centrais do Condado. Eu ajudei como pude, investindo todas as minhas energias em trazer duas criaturas queridas, uma égua alada (ou talvez fosse Asa Dourada?) e um centauro jovem que podia ter asas em seu dorso se precisasse (talvez um Unicórnio de Ziget?). Eles usaram suas asas para nos levar à frente das ondas terríveis. Durante o percurso muitas vezes tivemos que nos segurar uns nos outros; uma vez eu tive que agarrar o Unicórnio pelas duas mãos e puxá-lo com toda a força para que ele não fosse engolido por um abismo de onde um vento terrível o puxava para trás. Quando finalmente escapamos das ondas, eu ordenei que ele se livrasse das asas, porque os ventos poderiam levantá-lo por elas assim como uma tempestade destrói as velas de um navio no mar. A pégaso recolheu as suas o melhor que pôde, e seguimos juntos enquanto eu chamava todos os animais falantes com quem cruzávamos, afinal sobreviveríamos juntos. Conseguimos nos abrigar em uma cidade onde algumas construções mais resistentes abrigavam os sobreviventes -- porque as tempestades havia fustigado todo o Condado, e os hobbit (e saiajins) também haviam sofrido. Os sobreviventes eram poucos, e as instituições haviam ruído; todos se abrigavam num grande prédio que talvez tivesse sido um colégio ou uma universidade, e alguns homens mais velhos tentavam estabelecer regras e um comando que desse estrutura à sociedade. Por outro lado, alguns saiajins jovens, avessos à ordem, decidiram que, na falta de uma polícia para impôr conseqüências ao seus atos, eles podiam fazer quais maldades eles quisessem, e formaram uma gangue que aterrorizava e abusava dos outros sobreviventes. Por nossa vitalidade e experiência eu e meus colegas rapidamente nos tornamos um substituro precário de uma força policial, enfrentando e afinal capturando esses delinqüentes quando eles tentaram nos atacar. Nós levamos eles às salas de aula onde as pessoas tentavam estabelecer conselhos improvisados, e discutimos como fazê-los parar de atormentar as pessoas mesmo depois que soltássemos suas algemas (afinal não poderíamos manter nossos únicos adolescentes saiajins sob custódia permanente).

Outro problema era que os cidadãos se recusavam a acreditar na existência das criaturas-fadas que chegavam à cidade. Mais de uma vez um hobbit incrédulo veio questionar minha sanidade por eu estar conversando com meus amigos. Logo nas primeiras horas depois de chegarmos eu localizei um pequeno conselho em um antigo auditório: cinco ou seis pessoas que haviam tido certa influência tentavam discutir quais atitudes tomariam. Eu me juntei à discussão e assim que eles aceitaram minha autoridade eu chamei à palavra um líder dos roedores, um senhorzinho roedor de bastante idade, sabedoria e experiência. A reação dos conselheiros foi de choque e incredulidade, pois o meu companheiro saiu de debaixo de uma mesa e escalou os móveis com suas patas ágeis para discutir face a face comigo o futuro dos nossos povos. Alguns hobbits se revoltaram, decidindo que eu era uma pessoa louca por falar com ratos, mas a atitude serena e indubitavelmente compreensiva do meu companheiro acabou convencendo-os de que ele era um líder tão inteligente e capacitado quanto cada um de nós, e que o povo dele era tão racional quanto o nosso (senão mais). Ao longo dos dias mais e mais vezes ouvi hobbits e saiajins incrédulos por eu estar falando com bichos, mas todos eles acabavam aceitando a presença dos animais falantes. Havia porém uma porção dos cidadãos que era contrária a presença dos animais falantes na cidade, e esses queriam caçar meus companheiros, talvez até organizar grupos de caça. Por causa disso, tive que me dedicar a proteger as vidas deles, e me tornei uma espécie de intermédio militar entre os dois povos, enquanto o líder roedor se estabelecia como uma influência política. Eu tenho certeza que a longo prazo conseguiremos reerguer esta cidade com um povo misto de humanóides e criaturas fadas. Ainda não tivemos notícias do resto do Condado, mas, quem sabe? Talvez haja outras cidades, com mais sobreviventes, e talvez essa tragédia dê início a uma nova era de convivência entre os povos.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Proposta de roteiro

O filme começa com um garoto aborígene cuja comunidade está sob ataque dos latifundiários e negociantes brancos. Circunstâncias complexas obrigam o garoto a se infiltrar numa fazenda, onde ele aprende sobre os costumes dos fazendeiros, consegue cargos de confiança e prova seu valor se tornando um negociante e administrador extremamente competente. Ele acaba se tornando herdeiro do dono da fazenda, para a inveja dos filhos legítimos, e quando o dono morre, numa cena extremamente dramática, ele implementa um novo plano de negócios que permite que ele acabe comprando todas as terras ao redor. No final, ele tem que escolher entre sua antiga família aborígene e sua nova família capitalista. De alguma forma muito mágica ele consegue resolver o conflito e trazer a paz, mas acaba morrendo no processo, e as pessoas da cidade nomeiam uma avenida em homenagem a ele.

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Observação: eu pensei em substituir o protagonista por uma mulher, mas rapudamente descobri que esse plot com uma mulher se transforma em ou O Diabo Veste Prada ou Erin Brockovich -- porque uma mulher conquistar o sucesso é uma coisa muito incrível que merece um filme. Como minha intenção era reverter o plot de <a href:"http://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Main/MightyWhitey">"o homem branco é melhor nativo que os nativos"</a>, não me interessava muito. 

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Sexualidade é uma questão familiar

Meu amigo Pizza disse que sexualidade é justamente aquilo que mais tem a ver com a família porque define casamento, filhos, quem vai fazer parte da família. Concordo plenamente. Acho que não tem nem o que elaborar em cima.

Minha grande questão com a minha sexualidade no momento é encontrar ginecologista com quem eu consiga falar sobre isso. Eu não fico muito confortável com o gineco da família, um homem branco engravatado, presumidamente hétero, indicado por minha mãe. Minha mãe que cada vez maos tenta me converter à monogamia, e que não acredita que eu seja bi. Eu tenho que explicar pra ela que ela não tem poder sobre a minha orientação sexual.

Eu tenho duas orientações sexuais, porque uma é ser bi, outra é ser poli. Essas duas coisas têm impactos muito semelhantes na minha vida. Eu tive que sair do armário sobre cada uma delas, porque afinal, essas duas coisas determinam como vai ser a estrutura da família que eu vou formar, né. Dado que ambos minha irmã e meu irmão são pessoas hétero e monogâmicas, eu sou tipo o patinho feio da família. Minha mãe acha que eu vou sofrer horrores. Ela prefere imaginar que eu vou espintaneamente "me curar" dessas coisas, eu acho. Não que ela diga isso. Mas ela acha que eu só não sei o que estou falando.

Eu sempre fui bi, eu sempre fui poly, e minha vida só melhorou depois que eu admiti essas coisas e passei a viver de acordo. Sair dos armários foi a melhor coisa que eu já fiz. Por outro lado, isso criou uma ruptura entre a minha vida social aberta e fora do armário, e a minha vida familiar, onde sou supostamente hétero e mono como as outras pessoas. Dada a importância das orientações sexuais para a vida familiar, não admira muito que seja tão mais difícil se abrir para a família que para os amigos, e que tantas pessoas não-hétero e não-mono vivam uma vida dupla, escondendo sua vida pessoal da família, ou mesmo que se afastem da família para poder viver a própria vida. Eu muitas vezes sinto que vivo uma vida dupla, dado quão pouco meus familiares sabem sobre mim, sobre o que eu faço e penso; é incrível o quão pouco eu consigo falar quando estou em família, mesmo com as crianças. Eu queria poder ser algum tipo de exemplo para as crianças, mas eu acho que tenho muito mêdo e insegurança que me impedem de ensinar qualquer coisa a elas. Parte disso é que meus ideais sejam considerados absurdos por uma porção tão grande da minha família.

Uma vez minha prima me perguntou o que minha mãe achava de eu ser bi, e eu não entendi a pergunta, porque minha mãe não parece achar nada. Ela parece que nem considera a hipótese de eu ser bi. Não importa que eu tenha falado para ela com todas as palavras pelo menos duas vezes.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Unsent text

Do you think I'm pretty?

I mean
I know you're not a dyke and all
I swear I'm not still hitting on you
I think I'm over you
Maybe

But are you at least a little bit attracted to me?
I mean I fet it if you don't like cunts
But
I think the thing is
I could ask boys but, I've met so many men in my life that I can't tale them seriously at all
Like all they care about me is tits and cunt and looking cute and I know how to laugh at their jokes like an instinct
They think it's cute that I can think and have opinions
Yeah I know I shouldn't talk about them like that
i think I've met so pany straight men in my life that I can hardly think of them as human anymore
How fuckep up is that
And I mean I was one of those people that defended with all my heart that yes boys and gurls can be friends
But now
I don't even know what that means anymore
Can anyone be friends?
What do you think?

Oh that's my station.

What I am saying, I have a lot of boy-friends still
Haven't I ?
I guess I would have to ask them
I dunno
It's so confusing how political having friends is
How our relationship changes so much according to relationship statuses
Love
Attraction
And how they fight and fuck amongst themselves
I can't keep up
No, really.

The thing is, when I find someone attractive, it's either they are hot as hell or they are so amazing that I can see through the veil of silly preconceived expectations and actually just look at tem, waiting to see what they will do next

That's how it was with you
You were so amazing
That's probably why I got over you, too
It's too hard to be platonically in love with someone who just gets more and more awesome while I... don't.
You were still too far above me
That's the hard thing about you girls.
I could try to imagine that it was just that I found other people who were equally amazing and who liked me back
But
I think I could have been in love with all of you for a long time
My heart is a pretty good juggler
It's a good thing I dropped that one, though
I can probably be a much better friend now
Not that you need me

Anyway
Do you think I'm pretty?
And I don't want a motherly/sisterly answer
Just tell me if... No, wait
Don't tell me
Don't answer that question.

Dam and flood

Ultimamente tenho sentido um impulso de voltar ao que eu era antes, antes de eu sair de casa, antes de sair do armário, antes de aprender as coisas sobre as quais eu mais penso e falo no meu dia a dia. Voltar para a época em que eu não questionava a cisgeneridade e nem a minha heterossexualidade. Voltar para uma época em que minhas dificuldades de hoje em dia não existiam. Às vezes eu me sinto de. Volta, me sinto de novo com doze anos e me achando tão grande e tendo certeza de que eu faria todas aquelas grandes coisas antes dos dezenove. Eu tento pensar nas dificuldades também; na insegurança sobre tudo, nos terríveis arrependimentos, no silêncio, nos segredos. Se hoje em dia eu guardo segredos porque não quero criar conflito, naquela época eu guardava segredos porque queria ter amigos. Eu tinha tanta certeza de que meus amigos teriam mêdo dos meus pensamentos mais obscuros! Entretanto eu era criança sim, embora uma criança estranah. E hoje eu vejo como eu tinha poucas preocupações, muitas idéias utópicas, muita fé. Eu era uma pessoa forte, talvez mais forte do que sou hoje.

Às vezes eu quero voltar. Eu não quero discutir todas essas coisas a cada instante da minha vida. Eu só quero uma vida tranqüila, onde eu possa me dedicar ao que importa. O passado passou e eu não me tornei uma pessoa tão capaz quanto eu esperava, nem tão capaz quanto as pessoas que eu admiro. Eu mudei pouco demais, talvez. Mas eu mudei muito também, e mudei para algo mais difícil. E 

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Às vezes eu me pergunto se o saceifício valeu a pena. Eu me perguntei, que saceifício? Às vezes eu me peguei pensando coisas como "se eu nm estou feliz, então de quê valeu o sarigício?" E eu me perguntei, "mas qual sacrifício?". E pouco depois ou pouco antes eu me peguei pensando em tudo aquilo que eu sacrifiquei, tudo aquilo que eu suprimi e afoguei apenas para que eu pudesse viver no mundo teal, apenas para que eu pudesse ser feliz e fazer amigos e quem sabe trabalhar e tentar mudar o mundo e batalhar para fazer alguma difeeença, para interagir com a realidade e fazer uma diferença na realidad em vea de apenas fugir dela.  Esse sacrifício. E eu estou aqui nos meus vinte e conco anos, aquela idade que todo mundo diz que é quando o metabolismo fica mais lrento e a gente pára de crzscer pra gomeçar a znvelhecer, e eu ainda não cheguei lá, eu ainda não cheguei no mundo real, nada do que eu fiz fez nenhuma diferença, e eu ajudei im pouco algumas pessoas que talvez venham a fazer um pouquinho de diferença, pessoas mil ezzes melhores do que eu, então  talvez eu devesse pensar que eu fiz alguma coisa, dando esse pouquinho de apoio a essas pessoas. Mas eu não estou feliz. E eu estou me enfiando num buraco cada vez mais fundo em que eu não tenho nem dinheiro nem merecimento mérito nem nenhum valor que me permita me fazer feliz. Por um momento, um pouquinho de tempo, alguns anos, eu achei que estava dando certo, que eu estava começando a me conectar com a realidade. Por um tempo, eu senti que eu estava melhorando, que eu estava me tornando mais forte, e que eu estava feliz também. Por algum tempo ali em 2010 e 2011 eu inclusive me senti realmente feliz. Mas agora eu não me sinto avançando, nem feliz, e não parece mais ter valido a pena, o quanto eu sacrifiquei de mim, daquilo que me compunha, pra me tornar isto.

Isto não serve de nada. Isto não vai trazer bem pra ninguém. Isto não vale o sacrifício daquele senso inabalável de quem eu era e qual era o meu propósito no mundo. Isto não vale nada.

Eu tenho tido momentos de felicidade. Um curso particularmente empolgante, um desafio novo, uma boa história, uma pessoa apaixonante. Momentos. Às vezes eu consigo me manter feliz por dois dias seguidos! Mas no demais... Eu acho que todos os meus amigos vão acabar desistindo de mim simplesmente porque eu não mereço. Ou que eu vou abandoná-los e só notar meses depois. Ou quee eu não vou mais tolerar o jeito como eles me olham, ou falam de mim, como se eu fosse uma pessoa completamente diferente do que eu quero ser.eu devo ser mesmo. Eu nunca vou ser uma pessoa respeitável. Sempre vai ter alguém pra me olhar dzsse jeito. 

Este texto não vai nem me aliviar na real. É só um registro idiota. Eu acho que a vida até aqui só não valeu a pena todos ossacrifícios. Será que eu posso voltar e reiniciar do save point?

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Undertoe

Eu penso muito em ti, sabe, por mais inapropriado que isso seja. Tentando avaliar o erro e o acerto, o bom e o mau, o lógico e o ilógico, e o como saídos de lá viemos parar aqui.

Uns tempos atrás tu me disseste que a diferença entre nós era que tu se sentias confortável sendo homem, e que eu sempre quisera ser um homem. Às vezes eu me lembro e me deleito com o absurdo dessa idéia. Para mim, essa era justamente a semelhança entre nós. Nós dois queríamos viver grandes aventuras, capitanear navios, lutar contra dragões (ou a favor deles, talvez), subir a montanha correndo... Mas para ti isso era o teu papel designado, e o meu era lutar por isso usando um vestido longo, e no final rasgar esse vestido e mostrar que além de princesa eu era também guerreira. Estavas errado, sabe? Porque eu queria ser exatamente o mesmo que tu, sem vestidos, sem tiaras, nada de "princesa", "dama", "madame". Mas para ser o mesmo que tu eu precisava ser ainda mais selvagem do que eras, mais violento, mais rápido em provar o meu valor e defender minha honra. Quando nos separamos, eu me senti um pouco mais à vontade para ser tudo aquilo que querias tão insistenmtemente que eu fosse e que justamente por isso eu não podia ser. Mas logo a novidade passou e eu voltei aos meus modos adolescentes, mas agora sem ti, sem meus rivais e inimigos e principalmente demônios.

A vida do lado de cá é tão estranha e faz tanto sentido. É quase como se eu vivesse no mundo real. Mas ainda é estranho, e eu ainda sinto aquela falta, aquela desconexão, como se eu fosse apenas uma pessoa que aconteceu de ser, aconteceu de estar aqui, caída de paraquedas nesta vida, nesta história, e as lembranças, e mesmo os sentimentos, pertencessem a uma outra pessoa, uma outra versão de mim que eu tenho que me esforçar muito para imaginar que sou eu.

Às vezes eu penso que tudo aquilo era uma grande máscara e uma farsa, uma coisa que eu criei para enganar a eles, e a ti também; talvez para ludibriar-te e te fazer pensar que eu poderia talvez cumprir as tuas fantasias, porque te tendo eu tinha todo um universo, e ao te perder eu perdi parte de mim. Eu sinto que parte de mim, a maior parte de mim, ficou do lado de lá, rascunhado talvez em antigos cadernos e folhas soltas, mas em grande parte preso através de um portal que eu não consigo mais alcançar. Me tornei gente, talvez demais. E agora as farsas de esgarçam muito mais cedo, e a idéia de enganar alguém, ainda mais alguém como ti, por tanto tempo... Às vezes eu percebo que éramos tão semelhantes que apenas nossas máscaras e mêdos e mentiras nos separaram. Mas agora nos perdemos um pouco; eu me perdi; e aquilo que nos conectava não nos conecta mais. Ou será que foi uma máscara tua que me fez acreditar que éramos tão próximos? Não importa também, porque ao menos aqui eu posso ter uma parte de mim, e tê-la inteira, sem máscaras; ter tudo aquilo e me submeter aos teus desejos absurdos era uma traição que acabava por me desintegrar. Viver no mundo real tem seus benefícios.

Pelo menos agora somos ambos humanos, e temos uma chance qualquer de nos encontrarmos realmente. Duas pessoas, e não duas fantasias. Mas... eu também tenho a impressão de que pessoas não se dão tão bem quanto é tão fácil se darem as fantasias.

Melketh

Um dia um esporo caiu numa poça dágua e começou a germinar.
Uma haste alta de ergueu acima da água e duas cépalas enormes se estenderam da ponta.
Nas cépalas estavam desenhadas duas histórias paralelas, parecidas em alguns aspectos, muito diferentes em outros. Numa delas havia um cavalo branco chamado Lucas, em outra havia um grifo negro chamado Matheus, e coisas assim. Uma dessas histórias era sobre um rapaz. Esse rapaz se transportou para outro mundo e se transformou em quinze pessoas diferentes. Mas cada vez que essas pessoas se separavam, elas começavam a se divdir em outras pessoas, cada vez mais diversas, até que o rapaz era metade da população de um mundo, um mundo muito grande, muito complexo. Nesse mundo as pessoas que eram o rapaz às vezes se recenheciam brevemente, como pessoas que se reconhecem num sonho, sem querer sabendo que aquela pessoa é importante, mas sem saber porquê, ou de repente sabendo o nome dela sem perguntar; essas pessoas se atraíam e se juntavam, mas elas não sabiam que elas eram a mesma pessoa, porqe elas eram tão diferentes. Às vezes uma delas estava pegando um ônibus numa cidade do interior, e quando olhava através do corredor encontrava uma mulher de meia idade que lhe chamava a atenção, alguma coisa no olhar dela, ou no cabelo, lhe dizia que ela pertencia à sua tribo. Essas pessoas viviam sem se conhecer exatamente, mas sabendo que elas pertenciam a alguma coisa, que elas eram iguais e que, se chegasse o dia, elas se ajudariam e lutariam juntas umas pelas outras. Às vezes elas se uniam, em pequenos grpos de amigos ou de amores. Elas se uniam e tinham filhos. Elas levavam a vida, se sentindo ao mesmo tempo desconectadas, como se houvesse algo faltando no mundo o tempo todo, e unidas, como se somente aquelas pessoas, as pessoas mais próximas e aquelas pessoas desconhecidas que também pareciam tão próximas, pudessem compartilhar o qe elas viviam e sentiam e eram. O resto do mundo inteiro parecia estranho e alienígena. Essas pessoas nunca se sentiam realmente confortáveis, porque no fundo elas sentiam a dor de estarem vivendo tão separadas e incompletas. Mas, por outro lado, apenas por estarem separadas é que elas podiam ser tudo aquilo, toda aqela diversidade de coisas tão diferentes e contraditórias, e saber todas aquelas coisas diferentes, e viver todas aquelas vidas diversas. Ser um milhão de pessoas ao mesmo tempo, era difícil, mas elas viviam coisas que uma única pessoa nunca poderia viver. A paz e a felicidade que seria ser uma coisa só e una era compensada pelas incontáveis aventuras e experiências, pela diversidade de sentimentos. Cada pequena sensação, como a beleza daquela luz de fim de tarde que dora ligeiramente o adorno de uma cadeira de um bar de uma esquina, tinha uma aura, uma importância; era sagrado, de certa forma, porque era visto através do sacrifício dessa paz. Essas pessoas sentiam que tinham uma missão na vida, muito embora nunca soubessem exatamente qual. Quase nunca dedicavam sas vidas completamente a um grande objetivo (como viam algumas pessoas externas fazerem), porque seus corações estavam demais envolvidos em apreciar toda a beleza do mundo, e construir o mundo, e às vezes se espalhar e se tornar ainda mais pessoas, com gostos e qualidades e características diferentes, novas, que só seriam possíveis naquele instante, naquele lugar. E essas pessoas mudavam, e adoravam mudar; mas sentiam também uma perda, uma dor de abandonar o que eram antes, como se isso fosse cortar fora uma parte de si mesmo. Mas o rapaz mudava, e se dividia, e se distraía, e se apaixonava, e todas essas coisas eram ele ao mesmo tempo. No final, ele voltou para casa, mas ao chegar lá ele percebeu que se sentia vazio, e sozinho, e que as pessoas pareciam estranhas, e distantes, e que ele não consegia realmente se conectar com elas... Aos poucos ele notou que ele não voltara realmente, e sim que ele se divdira mais e mais até se tornar, em parte, ele mesmo; e que apenas essa parte voltara, e que essa parte estava em casa, no seu mundo, e que nenhuma das outras pessoas era ele, e que todas as outras pessoas eram estranhas e externas e feitas de pedaços de outras pessoas diferentes dele. E ele começou a se esforçar para enxergar no seu mundo as mesmas pequenas beleza -- o sol e o vento e os pequenos detalhes das cascas de árvore e das frases que os padeiros usam nas padarias -- e algumas, às vezes, lhe lembravam um pouco de coisas que ele havia visto no outro mundo... mas algumas eram novas, e eram lindas mesmo assim, e ele tentava se dividir e se tornar muitas pessoas para melhor apreciar todas essas coisas, mas não conseguia. Ele tentou voltar para o outro mundo, mas também não conseguiu. Então, ele continuou vivendo, ainda desconectado e sozinho, tentando o melhor que podia apreciar toda a diversidade do mundo sendo apenas uma pessoa, um aspecto de si mesmo.

A outra história era a minha história.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Eu existo.

Eu sempre me impressiono com a freqüência com que eu tenho que olhar pruma pessoa e tentar convencê-la de que eu sou uma pessoa humana de carne e osso. Isso acontece em todos os ambientes, em todas as bases, exceto talvez aquelas em que eu me sinto tão debaixo de uma pilha de pedras que não enho a força pra falar qualquer coisa sobre mim.

Eu existo.

Algumas coisas eu sou, outras eu faço, mas além disso eu sou uma pessoa real, eu estou na sua frente, falando com você. Você não precisa me olhar com essa cara, não precisa me tratar como um objeto, como uma curiosidade, nem com nojo.

É isso o que as pessoas fazem, por exemplo, quando eu falo que estudo matemática. Vocês deviam ver a cara e as reações das pessoas! Olha, eu já estive em três cursos diferentes, eu sei que não é assim sempre. Quando eu fazia Design, as pessoas ficavam animadas, me perguntavam mil coisas, queriam saber o que eu fazia, o que eu estudava, do que eu gostava mais, me pediam pra contar coisas sobre o curso e etc. Quando eu fazia computação, as pessoas me olhavam com admiração, comentavam como computação é importante, me tratavam como uma pessoa superior que sabia das coisas, me pediam ajuda (exceto os homens de TI, que tentavam me convencer de que nós tínhamos "algo em comum"); quando eu dizia que eu estava me aprofundando mais na parte teórica, as pessoas me olhavam com confusão, com um olhar vazio de quem não conseguia entender, como assim uma pessoa tem a oportunidade de ter uma profissão tão promissora e a joga fora pra estudar uma coisa tão inútil quanto teoria? Agora que eu faço matemática, eu recebo apenas a última parte, mas mil vezes pior. As pessoas me olham com raiva, com desgosto, com nojo, com incompreensão --- no melhor dos casos elas se esforçam pra não deixar transparecer muito o quanto elas acham matemática horrível, o quanto nossa amizade sempre será entravada pelo fato de eu gostar dessa coisa repulsiva que é a matemática.

Eu em geral sustento o olhar, respiro fundo, e tento manter a postura. Estou trabalhando cada vez mais na minha poker-face. Eu já entendi que todo mundo odeia matemática, que é um trauma na vida de todo mundo, mas eu quero mais é que se foda. Eu quero que seus preconceitos imbecis que você adquiriu nas suas aulas (péssimas, tenho certeza) da escolinha sejam completamente obliterados. Eu sou real. Eu estou aqui. E eu não me encaixo em nenhum dos seus preconceitos idiotas. Olha pra mim! (eu digo na minha mente enquanto eu sustento o olhar horrorizado da última pessoa); eu não sou homem, eu estou usando três brincos diferentes hoje, eu tenho cabelo curto com uma mecha comprida de um lado e penteado pra cima, eu não sou japonês, eu não uso camisa de gola nem óculos, eu tenho pernas peludas, eu uso roupas coloridas, e até um minuto atrás nós estávamos conversando sobre alguma coisa altamente política ou queer. Eu não sou uma pessoa maluca que por algum motivo decidiu se torturar, e eu também não tenho a intenção de torturar criancinhas com a horribilidade da matemática. Eu só amo ela. Eu amo a matemática que você nem conhece, a matemática que é lógica, que se expande, que revela coisas inesperadas, que torna iguais coisas diferentes, que se entrelaça, gerando técnicas novas, construindo-se. Eu gosto da matemática porque ela me conta histórias, porque ela é um grande livro de contos borgescos que se relacionam, se aproximam e se afastam. E ela tem muito pouco a ver com aquilo que você estudou na escolinha.

Então é isso, eu sustento o olhar, admirando a mais nova pessoa que me olha como se eu fosse subitamente me metamorfosear em um monstro. Eu agüento enquanto ela demonstra que ela acha que tudo no mundo é mais legal do que o que eu faço. Eu não quero que ela ache que isso me abala. Eu não quero que ela imagine que isso machuca. Eu só quero que ela perceba que eu não vou virar um monstro, que eu continuo sendo uma pessoa. E então podemos prosseguir com o diálogo.

Eu aplico mais ou menos a mesma técnica em todos os muitos outros casos em que as pessoas olham pra mim com repulsa.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Seios (SEIOS!)

(mais um roteiro pra hora em que eu largar mão da preguiça e ir executar esses zines)

*** imagem no espelho, fazendo uma dessas coisas tipo escovar os dentes, calça jeans, sem camisa, postura masculina, seios ***

Às vezes eu me olho no espelho e não acho meu corpo nada feminino.

** seios **

Eu tenho seios, é verdade.

* ventre, calça jeans, talvez pêlos da barriga *

Existem também homens cis que têm seios

*(as próximas imagens, lado a lado)*

Ou porque sofrem dessa condição hormonal que os homens, muito engraçadamente, chamam de "ginecomastia"

** imagem de homem com seios, desesperado e tentando escondê-los ***

Ou porque são gordos.

** imagem de homem gordo com peitos grandes **

** homens (um pra cada parte) com peitinho, super envergonhados **

Quando os homens têm seios / mesmo que muito pequenos / eles sentem muita vergonha

** ? **

E são encorajados a remover essa parte de seus corpos cirurgicamente

Por que, afinal

Pra quê serve um homem ter seios?

---

** olhando pra baixo, imagem triste, segurando os seios com as mãos **

Às vezes eu queria fazer essa cirurgia também

** sequência a respeito de usar um binder, eu acho, ou talvez imagens de eu sem seios **

Imagina

Imagina!

Acho que

Em algum momento, eu cheguei a pensar que eu era um homem

Se eu fosse um homem, então todo mundo acharia que eu não deveria ter seios

** eu, homem **

Imagina

---

Não é nem que eu ache eles feios

É mais a sensação, quando eles balançam

Ou quando eu deito

Ou quando eu os toco

O tempo todo

O

TEMPO

TODO

Tem dias em que eu não consigo sair de casa com essas coisas balangando no meu peito, com essas coisas enormes deformando minhas roupas, gritando alguma coisa pro mundo que eu tenho nojo de ouvir, eu não quero ouvir, CALA A BOCA, CORPO!

** imagem com os olhares de outras pessoas, aqui, ainda na sensação de barulho, muito ruído visual, eu se encolhendo, talvez algumas frases machistas voltadas pra mulheres **

Eu só queria que meus seios ficassem quietos...

Mas tem outros dias, como hoje, em que eles ficam quietos.

** imagem de paz e tranquilidade, sem camisa e sem pessoas **

Aí eu sinto que meu corpo não é realmente feminino

** auto-inspecionando o corpo **

E por mais que eles incomodem um pouco

É só um inconvenientezinho, como uma gordurinha localizada

** quadro sem falas, ainda autoinspecionando, do quadril pra cima, ruído surgindo da parte debaixo do quadro, olhando para baixo com curiosidade **

** quadro com o corpo todo, sem calças, mostrando a bunda e as pernas, ruído saindo das partes mais feminilizadas, expressão de choque/desagrado **

Tem outras partes do corpo que não calam a boca NUNCA.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Desculpa

Peço desculpas.
Vocês foram uma parte findamental de minha vida, e eu os traí, e nunca me desculpei propriamente. Eu vos amava. Talvez ainda ame. Eu lembro dos feriados passadosas fazendas e casas de campo, eu lembro dos ensaios de teatro, e eu sei que foram bols tempos, que vocês nunca me impuseram forçosamente nada... Exceto quando me impuseram a virgindade mas. Eu sei que vocês, que nós fomos incríveis como nenhum grupo do qual participei depois.
Eu ainda amo vocês.

Desculpa. Desculpa por ter mentido e enganado a vocês esse tempo todo. Eu mento a vocês quando deixei acreditarem que eu era uma pessoa cis-hétero. Eu menti quando deixei vocês acreditarem que eu não me importava com viver sem bebida e sem esportes e sem todas essas coisas que nós não usávamos. Eu menti sobre quem eu era e quando eu precisei ser eu mesmo eu abandonei vocês, e por isso eu peço desculpas.

Eu peço desculpas especialmente pro cham. Eu sei que nunca te contei nem um décimo do que eu pensava e sentia. Eu achei que você não entenderia. Eu nem sinto tanta culpa porque ru sei que você também mentiu a mim e me enganou. Você também não era um macho hétero. 

Eu peço desculpas porque eu poderia ter arriscado nossa amizade em vez de tê-la condenado ao fracasso. Eu tive mêdo de perder vocês, de que vocês começassem a me tratar ccom um pouquinho de frieza e que isso escalasse até que não desse mais.

Eu tive mêdo de que vocês desprezassem meus sentimentos e fingissem que eles eram de mentira e os tratassem como fantasias. Nunca houve uma mostra de que seria diferente.

Eu peço desculpas, mas eu tenho ainda alguma raiva engasgada de vocês. Eu tenho raiva de como toda vez que a gente se encontra parece que a conversa não flui, e quando flui é uma conversa que me deixa mal. Eu tenho raiva de como hoje em dia nossa conversa parece normativa, sexista, heteronormativa, cisnormativa. Eu fico querendo me abrir mas o ambiente é sempre hostil demais, eu me sinto sempre na defensiva demais.

Eu sinto muito. Apesar do nosso amor eu tratei vocês como se vocês fossem pessoas normais. E vocês agora de fato parecem normais. Eu não compreendo muito bem. É meio doloroso.

Mas eu ainda tenho uma certa esperança.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Decepções

<small>(aviso: os vocês, como de costume, são diferentes de parágrafo para parágafo)</small>

Eu me lembro claramente de quando, doze ou treze anos atrás, você começou a dar em cima de mim, me pedindo beijos e namoros das formas mais esquisitas e, às vezes, manipuladoras, mostrando pra mim que você tinha começado a falar comigo primeira e primariamente porque você queria me beijar. Você, eu perdoei, porque minhas recusas e nossas brigas não acabaram com nossa amizade.

Eu me lembro claramente da noite, mais de doze anos atrás, em que eu acordei com uma mão sua entre minhas coxas e outra sobre o meu seio; eu me lembro do choque e do nojo, e de perceber que você me via afinal como mulher e como objeto sexual, e não como o bróder, o irmão, que eu deveria ser pra você. Nunca mencionamos esse assunto, mas ainda queima.

Eu me lembro nitidamente de quando eu e você recuperamos o livro que havíamos escrito na terceira série juntas, e eu o entreguei a você para que você mostrasse para a sua mãe justamente porque eu queria poder mostrar para a minha depois, e você nunca o trouxe de volta.

Eu lembro também do ano em que você não veio para a escola, e eu descobri por outras pessoas que você se mudara para outra, e eu percebi que apesr de eu ter te considerado minha melhor amiga e que você fosse importante pra mim, eu era a última pessoa a saber de você. Nunca mais tivemos amizade de verdade depois disso.

Eu lembro do dia dez anos atrás em que eu e você estávamos conversando sobre coisas da infância, e eu falei das coisas que eu gostava e que eram significantes pra mim, e você fez uma cara feia e começou a tirar sarro dos meus dragões e cavaleiros e magias, como se seu saci e sua turma da mônica fossem superiores. Acho que isso ainda dói tanto porque em tudo o mais você sempre foi tão legal.

Eu lembro do dia, nove anos atrás, em que vocês decidiram montar uma farsa de que eu e meu namorado havíamos brigado apenas para desesperar o professor de teatro, e que nos convenceram a atuar, e nos instigram, embora aquela farsa estivesse nos dilacerando, nos machucando, doendo, eu lembro da euforia de vocês e de como vocês pareciam extremamente felizes com toda essa história, e como eu senti desde aquela hora que vocês realmente ficariam felizes com o nosso término.

Eu lembro do ano em que você saiu do armário e do dia em que alguma de nós falou algo sobre o próprio corpo e você falou enojado de como tinha nojo de boceta.

Eu lembro da viagem, oito anos atrás, em que você insistiu e gritou e bateu na nossa porta e nos constrangeu e manipulou, dizendo que eu não podia ficar perto dele, que eu não podia deixá-lo ver meu corpo, que eu não podia querer transar com ele, e mil coisas, tornando meu relacionamento um inferno, tornando impossível pra mim tomar minhas próprias decisões.

Eu lembro do dia em que eu estava contigo e elogiei a beleza dele e você imediatamente fez um comentário ciumento, meio de brincadeira, meio não; e depois disso eu nunca tive coragem falar com você quando eu me interessava, às vezes inclusive me apaixonava, por outras pessoas, e passei todo o nosso namoro escondendo meus sentimentos, te enganando, fingindo que estava tudo bem quando na verdade não tinha como estar.

Eu lembro do dia em que eu estava em casa com meu sutiã mais grosso e você veio me aconselhar a pôr um sutiã, que os bicos dos peitos estavam aparecendo, e eu lembro como foi perturbador imaginar que você estiera olhando para os bicos dos meus peitos.

Eu lembro quando você falou que não acreditava que ela era bissexual porque ela nunca falava de garotas, sem nem saber que eu também era bissexual e eu também nunca falava de garotas, porque me dava mêdo e vergonha, e que toda vez que eu falava sobre garotos era por pressão de outras pessoas, mas dava mêdo falar sobre garotas, dava mêdo não ser hétero, e quando você duvidava da sexualidade dela estava também duvidando, mesmo sem saber, da minha. Eu lembro que demorei anos a mais pra falar sobre isso com você porque eu sabia que precisaria de provas.

Eu lembro quando eu terminei com você e depois de alguns meses eu convidei você e todos os nossos amigos para uma festa e você, vingativamente, convidou todos os mesmos amigos para outra festa no mesmo dia, e só me chamou depois que eu liguei pra você derrotada e revoltada.

Eu lembro de quando, três ou quatro anos atrás, você, que até aquele momento era um grande adepto dos relacionamentos abertos, em admiração a mim, você teve uma crise de ciúmes homérica e decidiu fechar toda essa idéia, e eu não consegui evitar sentir isso como uma traição.

Eu lembro de quando você era o amigo em quem em mais confiava, o mais perceptivo, e um dia eu te confessei, porque eu não podia mais guardar isso pra mim, eu confessei que eu estava loucamente apaixonada por ela, e você olhou pra mim e simplesmente não acreditou, disse que eu não a conhecia o suficiente, que eu amava apenas uma ilusão, que meu sentimento era falso. Eu lembro da dor, porque pra mim era tão difícil admitir que eu amava uma mulher, e ainda mais sem deixar de amar a pessoa com quem me relacionava, e você abanou tudo isso com a mão, e pra mim foi como se você não acreditasse em nada do que eu era. Eu nunca mais te fiz grandes revelações.

Eu lembro de quando eu juntei toda a minha coragem e controlei o nó no estômago e falei na mesa de jantar, pouco depois de um comentário sobre lésbicas, o melhor que eu pude, com o máximo de eloqüência, "Eu acho que sou bissexual"; e eu lembro de como você imediatamente discursou sobre como isso era uma fase, sobre como quando você era nova você também sentia essas atrações, como seria esquisito se eu trouxesse uma namorada para casa. Desde então todas os meus relacionamentos por mulheres são sombreados por uma vontade minha de te desafiar e pelo mêdo de que se eu apresentar a mulher com quem me relaciono para você eu estarei usando e objetificando ela.

Eu lembro de quando eu finalmente, depois de mais de dez anos, consegui pensar sobre isso e contar a história desse abuso para alguém, e a primeira pessoa, e única por anos, foi você, e você, a primeira coisa que você me disse foi que eu fosse falar com meu agressor, <i>que ele também deve estar sofrendo com isso</i>, e isso foi a primeira coisa, e a única, e eu passei meses tentando criar essa coragem mas no fundo sabendo que era impossível, que falar com ele seria desesperador, que eu temia tanto que ele tivesse esquecido quanto que ele lembrasse, e eu fiquei imaginando essa conversa mil vezes, e tentando imaginar o que ele diria, montando a partir de cada pequena ação, cada frase que ele dissera que poderia ter a ver com aquilo de alguma maneira.

Então eu acho que no fundo eu guardo rancôr sim.

Transição e Identificação com Mulheres

Ultimamente eu tenho tido vontade de dizer coisas como "eu, como mulher...". Eu tenho sentido identificação com mulheres. Estranhamente, isso é algo novo pra mim. É curioso que eu tenha passado a me identificar com mulheres justamente depois de desistir de me identificar como mulher. Eu acredito, na verdade, que essas coisas estejam relacionadas.

Eu passei uma parte muito grande da minha vida sem nenhuma identificação com mulheres. Embora eu pensasse em mim como mulher (com certa raiva e desejo de ser um menino), eu não via absolutamente nenhuma semelhança entre eu e as outras meninas da escola, por exemplo. Eu não via por que eu devia ser mais semelhante a minhas primas que aos meus primos, ou me identificar mais com minhas tias que com meus tios. Eu tinha uma relação ótima com minhas primas, e havia uma certa divisão de gênero entre meus primos, mas eu nunca me senti plenamente dentro do grupo das primas. Eu era a criança mais nova, a caçula, e isso era uma espécie de identidade pra mim. Eu queria muito mais fazer as atividades de menino que eu não podia fazer do que a maior parte das atividades de menina. Na escola, a separação era muito mais intensa. No pré, eu tenho uma lembrança, muito vaga, de apenas três meninas (lembro de um único dia na casa de Jennifer, lembro de sua mãe e sua gata, mas não seu rosto; lembro do rosto de Melissa, de seu pai e de quando a visitamos muitos anos depois; lembro vagamente de onde eu estava no parquinho no dia em que Marcela veio contar, desesperada, que havia matado nosso coelho), e uma lembrança muito forte da amizade intensa que eu tive com três ou quatro meninos (Ricardo, Vinícius, Kauã, e um pouco de Alan). Quando mudei para outra escola e a segregação entre os gêneros era mais forte, eu me sentia ainda mais deslocade por não ter essa cultura de segregação. Eu tentava fazer amizade com os meninos, mas era muito difícil. Fiz muitas amigas meninas, mas era uma amizade difícil; há poucas meninas daquela época com quem eu tinha uma amizade confortável. Elas tentavam me ensinar a fazer coisas de menina e eu me sentia uma menina desajeitada e sem cultura. Depois de um tempo eu desisti de tentar; fiz amizades com garotos que se interessavam por mim e com as garotas que gostavam de fazer amizades com garotos. Minha identificação com garotos era sempre muito mais forte que com garotas.

Eu achava normal; eu me identificava como uma garota esquisita, uma outcast. Alguns anos mais tarde, um amigo meu apontou, neste blog mesmo, que eu era uma pessoa muito feminina, mas "preferia" me ver como uma pessoa estranha. Foi a primeira vez que eu suspeitei que minha visão de mim não tivesse nada a ver com a visão dos outros. Pensando bem, é um pensamento meio desesperador, esse de que os outros estavam me vendo como uma mulher adequada, bem-encaixada na vida, confortável, e só eu estava me vendo como eu realmente me sentia. Pensando bem, isso explica muita coisa, mas muita coisa mesmo.

Veja, eu me identificava como mulher, eu identificava que coisas aconteciam comigo por ser mulher, e coisas que eu fazia por ser mulher, eu tinha desejos específicos de deixar de ser e ter sido mulher, eu só não me identificava com outras mulheres.

Em algum momento eu descobri a bissexualidade, a não-monogamia, e por fim o feminismo.

A bissexualidade serviu pra compreender parte da minha ansiedade com certas mulheres como simplesmente uma ansiedade de ter desejo por uma mulher que eu tinha todos os motivos para crer que era hétero. Quando eu compreendi melhor meus sentimentos, eu desenvolvi uma necessidade louca de ser lésbica. Eu acho que eu imaginava que entre as lésbicas eu talvez sentisse alguma forma de identificação. Até hoje eu tenho essa imagem de que lésbicas vivem num mundo mágico composto por mulheres em que todas elas se sentem bem, aceitas e bem-encaixadas. De fato, muitas vezes elas passam deliberadamente essa impressão. Entretanto, por ser uma pessoa bissexual e estar quase sempre com homens, (e eu culpo um pouco a dificuldade que eu e minhas amigas bi tínhamos de fazer essa coisa perigosa que é ficar com garotas à vista de outrem), eu nunca cheguei a me envolver romanticamente com mulheres. Por outro lado, eu vivi amores platônicos extremamente intensos --- e esses amores, de uma forma mais poética do que confusa, me jogaram de um lado pro outro no simbolismo de gênero, porque eu invejava a mitologia do amor heterossexual e eu queria a simbologia do cavaleiro, dos mitos primitivos, da rainha e do amante, de todas essas coisas, mas eu também queria romper as expectativas heterossexuais, então eu alternava entre narrativas heróicas masculinas e femininas, tornando o gênero de todos os envolvidos uma coisa poéticamente fluida, como dá pra ver aqui.

A não-monogamia serviu para focar meus sentimentos de deslocamento e exclusão numa coisa objetiva: eu era diferente de todas as demais porque pra mim monogamia simplesmente não era uma opção. Não-monogamia foi claramente a minha primeira e mais importante orientação sexual clara (já que a heterossexualidade fora meramente uma imposição social, e a bissexualidade se manteve como uma dúvida até praticamente ano passado).

O feminismo veio vindo aos poucos, misturando coisas que minhas amigas mais politizadas e minha mãe me diziam. Eu lembro do dia em que eu e minha mãe tivemos uma longa e iluminadora conversa sobre o abuso que sofri na infância, e como isso abriu meus olhos para muitas coisas. Depois, no feminismo, eu comecei a me identificar com outras mulheres através dos relatos de abusos. Os espaços exclusivos para mulheres, mesmo que virtuais, como o Mulheres Livres, permitiam que nós falássemos em grandes grupo sobre essas coisas, e ficou muito claro como nós estávamos todas juntas, e como aquela roda de histórias era poderosa. Eu inclusive escrevi sobre isso aqui, no início do ano passado. Naquele momento eu entendi que minha maior identificação com outras mulheres era através das histórias de abuso e resistência, abuso e sobrevivência, abuso e essa capacidade louca que temos de continuar em frente, muitas vezes continuando a conviver com o abusador, amando-o ou cuidando dele durante toda a vida, fingindo que somos capazes de perdoar, às vezes por incapacidade de condenar completamente. Minha identificação com outras mulheres vinha através do laço com minha mãe e minha avó e minha bisavó na linhagem materna que certamente haviam sofrido abusos antes de mim, e vivido e sido as pessoas fortes e incríveis que elas eram e ela é.

Mas ao mesmo tempo eu descobri, através de sexo e de posts deste blog, que eu não era a única pessoa no meu círculo que rejeitava o próprio gênero. Ao mesmo tempo eu conheci uma mulher trans e um homem trans --- minha voz ainda treme um pouco quando eu tento descrever a sensação poderosa que me causou ver aquele corpo másculo, peludo e musculoso, e saber que era fisicamente possível ter aquilo para mim. E esse mesmo homem disse: "Eu não sou homem, eu não sou mulher, gender, fuck it". Então eu segui esse caminho loucamente libertador de simplesmente negar meu gênero. Não apenas tentar me libertar abstratamente das imposições de gênero como eu estava fazendo antes, mas rejeitar arbitrariamente tudo o que era feminino.

Essa diferença foi poderosa porque havia muita coisa que eu tinha mêdo de fazer. Eu precisei juntar coragem por anos antes de deixar as pernas sem depilação; eu demorei pelo menos dez anos sem conseguir seguir minha vontade de raspar a cabeça; eu passei mais do que isso sem nem cogitar andar sem sutiã; eu freqüentemente tentava experimentar coisas "de mulher", talvez numa tentativa fútil de me identificar com outras mulheres, ou numa tentativa ainda mais fútil de "exercitar meu poder de escolha". Eu havia acreditado no pensamento liberal de que mulheres escolhem pessoalmente depilar as pernas e as axilas, usar maquiagem e esmalte, usar sutiã, salto-alto, saia, cabelo comprido, e eu havia acreditado de uma forma tal que eu aplicava essas escolhas a mim, questionando apenas superficialmente por que eu estava fazendo isso.

Pra se ter uma idéia, na primeira vez em que eu saí com uma mulher lésbica, eu me vesti da forma mais feminina que eu pude, com brincos delicados, saia curta, sandália, e me senti ligeiramente boba por ver que ela se vestia de um jeito muito mais parecido com o que eu me vestia normalmente.

Para outra idéia, quando eu percebi que eu ia ficar com um garoto que declaradamente preferia pessoas peludas, eu, que havia me mantido peluda mesmo na praia, de biquíni, tive que depilar as pernas. E eu continuei alternando entre deixar crescer e depilar por anos, mesmo que cada vez que eu depilasse eu sentisse um momento de desagrado cada vez que eu via minhas pernas peladas.

Além disso, eu usava sutiã e dizia que era porque eu detestava a sensação dos meus peitos balançando. Eu ainda detesto profundamente essa sensação, mas eu não uso mais sutiã quase nunca. Hoje em dia me parece que eu usava sutiã basicamente por mêdo de que meus peitos ficassem caídos.

Eu achava que eu estava exercitando meu poder de escolha sobre meu corpo e minhas roupas, mas não era uma escolha em liberdade. Quando eu escolhi deixar de me comportar como mulher e deliberadamente tomar comportamentos masculinizados, essa falta de liberdade deliberada me forçou a notar uma séria de limitações que eu havia me imposto anteriormente. Essa experiência me transformou completamente. Além disso, é claro, as pessoas trans, anarquistas e não-monogâmicas que conheci nessa época (tenho dificuldade de separar os grupos) me levaram para uma teoria feminista e uma militância muito mais radical do que a que eu havia conhecido até então, que me permitiu pensar muito mais profundamente sobre tudo o que eu experienciava.

O processo de transição (até agora) foi confuso e irregular.

Um dia eu resolvi me travestir, e tive um momento inicial de extremo prazer por parecer um homem, seguida de uma crise nervosa em que eu precisava me vestir com roupas fofas e femininas que eu adorasse. Depois de um tempo eu comecei espontaneamente a me vestir de forma mais ou menos andrógina. Depois, num processo que eu ainda não consegui entender, eu subitamente comecei a rejeitar roupas femininas: quando eu vestia qualquer coisa com rendinhas, ou sainhas, ou estampas delicadas, eu sentia um estranhamento, uma repulsa, como se aquilo estivesse ridículo e errado. Eu acho que ainda estou nessa fase, embora de vez em quando eu use uma ou outra roupa feminina.

Nas relações com as pessoas foi semelhante: no começo me causava estranhamento quando me tratavam de forma neutra ou masculina, até o dia em que eu senti uma transição dentro de mim e comecei espontaneamente a usar pronomes masculinos pra falar de mim mesmo, e depois, em alguns momentos começou a se tornar desagradável quando certas pessoas usavam pronomes femininos para se referir a mim. Hoje em dia há uma segmentação na minha cabeça, eu ainda quero que minha família me trate como sempre me tratou, não quero fazer uma transição na minha vida, e quando me apresento para velhinhas desconhecidas na rua eu ainda uso meu nome de batismo; mas certas pessoas têm uma relação muito generificada comigo, certos amigos usam demais pronomes e formas femininas, e dependendo do caso e do amigo, de há quanto tempo o conheço e como é nossa relação, isso incomoda. O que me incomoda não é, na verdade, o pronome ou o nome ou a forma gramatical escolhida, é o tratamento em geral, é a diferenciação. É possível notar quanta relevância o gênero têm em nossas relações observando o quanto ele se mostra na linguagem usada. E de modo geral usar formas gramaticais que evidenciem o gênero tem parecido esquisito para mim.

A relação com meu corpo, ao mesmo tempo, mudou bastante, mas talvez por outros motivos. Em alguns aspectos, eu tenho sentido menos vontade de transformação, eu tenho sentido menos incômodo por ter poucos pêlos, menos incômodo por não ter barba nem pêlos nos braços (ah, os pêlos nos braços... acho que metade da minha atração por homens vem deles...). Eu parei de usar sutiã, e percebi que a sensação que eu sempre tive com os peitos balançando é bastante parecida ou talvez conectada com disforia --- essa sensação louca de asfixia, de que tudo vai ser insuportável pra sempre, contra qual o único remédio é desviar o olhar e respirar fundo e não pensar a respeito disso. Eu percebo que a sensação de disforia que eu às vezes tenho com meus peitos é muito parecida com o desespêro que eu tive por estar na faculdade errada, ou por não estar levando a vida que eu quero de modo geral. Eu percebo que eu sempre senti isso de certa forma. Esse incômodo do descontrôle, de ter que lidar com algo que você queria que nem existisse. Sempre foi assim.

"Sempre fui assim" é a frase que mais me levou a descobertas nos últimos sete anos.

E por fim, chegamos à identificação com mulheres.

Na verdade essa identificação é algo muito recente. Eu senti um impulso de identificação quando me percebi desejante de mulheres, mas no relacionamento com elas ainda me sentia o patinho feio. Eu senti uma identificação com as histórias de abuso, mas essa identificação não era suficiente para eu me sentir confortável. Eu não vou explicar em detalhes o que me fez começar a me identificar com mulheres porque é um assunto complexo político e teórico e que envolve uma infinidade de tretas e mereceria uma série de posts a respeito. Vou apenas dizer que minha percepção das agressões que eu sofro por ser designada mulher aumentou, e que assuntos específicos de pessoas designadas mulheres têm sido discutidos com freqüência, e que voltei a discutir primeiramente feminismo, mas com essa nova visão que desenvolvi nesse processo, e que afinal notei (esses dias) que me identifico primariamente com outras pessoas designadas mulheres e que sofrem o mesmo tipo de agressão que eu, que temos pensamentos parecidos, e posicionamentos parecidos. Eu desenvolvi nesse tempo a admiração pelas pessoas que assumem "mulher" como identidade política depois de terem sido forçosamente designadas mulheres por toda a vida; eu as admiro porque vejo nisso um ato de lealdade às outras mulheres, àquelas que jamais questionariam seu gênero. Cada vez mais eu me identifico como uma pessoa faab: designada mulher, mas não feliz com isso. Às vezes me ocorre que minha incapacidade de me identificar confortavelmente como mulher seja antes uma fraqueza de caráter, uma dificuldade em resistir, como resistem as mulheres que admiro, uma falta de resiliência; Admitir minha mulheridade seria difícil e doloroso, então deixo de lado, deixo pra outro dia. Escolho não me identificar. Tento, mas nem sempre consigo, evitar esse pensamento desmoralisante.

Mas trabalhamos. Percebo agora que o envolvimento com a transgeneridade, assim como com a não-heterossexualidade e a não-monogamia, me permitiu amadurecer muitas idéias e me dar maior segurança para me relacionar com outras pessoas; mas principalmente, a não-obrigação de me identificar com outras mulheres tornou o convívio com elas muito mais fácil. Poder me identifcar a priori como o outro, o diferente, me torna imune à maior armadilha do convívio com mulheres, que é quando elas supõe que eu, "por ser mulher", penso, ajo e sei coisas que elas sabem. Quando me sinto inseguro em relação à minha habilidade em performar mulher, eu posso me esconder sob o escudo de não ser, de fato, uma mulher.

Talvez seja ilusão minha que mulheres se identificam umas com as outras, não sei; mas talvez não seja, talvez seja só a minha construção de gênero que não foi tão bem feita quanto com as outras mulheres, talvez ela tenha sido quebrada cedo demais pelo abuso; talvez seja só uma conjunção de fatores, de eu ser bissexual, não-monogâmica, por minha mãe nunca ter me ensinado a usar vestidos e pintar a unhas, por eu ter tido vontade de jogar futebol mas nunca ter tido muito talento pelos esportes, por eu ser uma criança exageradamente tímida, mas muito eloquente, talvez sejam apenas todas essas coicidências que fazem minha experiência de gênero funcionar melhor quando eu escolho negar meu gênero designado.

Mas trabalhamos. Talvez isso mude de novo durante este ano.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Sonho sobre o sistema carcerário de um país fictício

Isso.

Talvez tenha sido influência de encontrar o Renex e o Ivan e a galera do IME anteontem e depois ter papeado com Guióda e Julinha e Chalom ontem.

Aí eu tive esse sonho em que eu sonhava com uma mulher que cantava uma música com uma melodia monótona e triste. A mulher estava sendo libertada de uma prisão. A cela em que ela estava era uma selva (talvez fosse uma selva metafórica porque a cena toda parecia muito um teatro). Mas ela não estava feliz por sair; ela estava com raiva, porque ela sabia que quando ela saísse sua vaga na prisão seria imediatamente preenchida por outra pessoa, que a prisão era como um negócio, em que todas as vagas tinham que estar sempre preenchidas. E ela dizia também que ela nem estava tão mal, que haviam outras pessoas vivendo vidas horríveis na mesma prisão.

Aí eu acordava e estava num shopping (o Villa-Lobos provavelmente) com Rê e Ivan e outros imeanos legais, e eu tentava lembrar da música pra cantar pra eles.

Vou tentar reconstruir a música aqui, porque lembrar tá difícil.

Imagine que ela estava cantando em voz baixa, olhando fixamente para frente, de vez em quando dado um passo ou outro para frente, saindo desse cenário de selva, e que haviam umas outras pessoas no fundo, paradas, olhando fixamnte também, e acho que uma delas estava queimando com fogo cênico.

"Neste país, que não vai a nenhum lugar
O Estado diz que hoje irá me libertar

Eu vou sair da minha selva comunal
E vou fingir que escapei de todo o mal

Os meus amigos poderei abandonar
O Estado disse que hoje irá me libertar...

Eu recebi a permissão para sair
Mas sei que alguém virá me substituir

Quando eu sair outra pessoa vai entrar
Alguém precisa ocupar o meu lugar

Alguém precisa então quebrar alguma lei
Ou uma lei precisará quebrar alguém...

Eu já não sei se algum crime ocorrerá
Mas sei que logo alguém me substituirá...

Se o meu lugar aqui terá ocupação
Não serei livre, ainda estarei nesta prisão

Eu não sou livre enquanto houver alguém aqui
Que eu sei que veio para me substituir."

(eu não consegui pensar em mais nada)

gravação cantada

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Todas as Confissões

Eu vivo controlando meus pensamentos e atitudes, com mêdo de estar cerceando a liberdade alheia, com mêdo de oprimir.

Eu não converso muito sobre as dúvidas que tenho em relação a todas as nossas militâncias.

Muitas vezes eu estou em cima do muro, assistindo. Aconteceu uma ou dias vezes de alguém reclamar de algo que eu disse, ou de algo que eu compartilhei ou endorsei. Aconteceu algumas vezes de alguém se ofender com o fato de eu não ter tomado um lado explicitamente.

Essas coisas me perseguem.

Eu queria ter mais convicção nas minhas ideologias, identidades, filosofias. Em vez disso estou constantemente revendo e questionando o que faço. Nunca sei se o que penso não será de fato uma violência ideológica contra outra pessoa. Não consigo escolher ou construir uma corrente de feminismo com a qual me identifique porque minha opinião fundamental sobre como devemos nos identificar politicamente, ou como eu prefiro me identificar, é fluida. Hoje, no Dia da Visibilidade Trans, eu assumi uma identidade cis, politicamente, pois os temas que discuti hoje eu discuti do ponto de vista de uma mulher, de mulher como classe política, de mulher apesar de nossas individualidades e de nossa resistência ao nosso próprio gênero.

Eu sou uma pessoa designada e lida como mulher. Digo designada mulher não apenas porque fui designada assim no nascimento mas também porque assim me designam diariamente, em todas as interações sociais cisgeneristas,  familiares me designam o papel de mulher, mulheres que acabei de conhecer me impõe o papel de mulher, homens desconhecidos na rua me forçam ao papel de mulher. Em dias ímpares me parece que devo me assumir assim, pessoa designada diariamente como mulher, pessoa agrilhoada ao gênero mulher, mas pessoa não resignada a esse gênero, pessoa que se recusa a se identificar como mulher; em dias assim me recuso a me identificar com o gênero que me foi imposto o com o qual sinto nenhuma identificação. Em dias pares tenho a impressão de que ser designada mulher justamente é ser mulher, e que quando me identifico com outras pessoas que sofreram abusos unicamente por serem vistas como mulheres, sinto essa identificação justamente por ser mulher, porque no fundo é o abuso, a opressão, a única coisa que une todas as mulheres.

Não consigo decidir se sou ou não mulher. É verdade que não quero ser, mas não sei o quando disso é disforia e o quanto é femmefobia.

Sou uma pessoa designada diariamente e desde o nascimento como mulher e convictamente feminista. Mas isso não me impede de ter pensamentos e sentimentos de misoginia e femmefobia (o ódio a coisas associadas ao feminino).

Eu dou suma importância ao feminismo interseccional e procuro ao máximo apoiar e reforçar as lutas de pessoas que possuem outras identidades e que sofrem outras discriminações, mas isso não me salva de eventualmente ter pensamentos classistas, racistas, lesbofóbicos, femmefóbicos, transmisóginos, capacitistas. Na verdade isso me coloca justamente em uma situação em que eu posso pegar essas pessoas desprevinidas e reproduzir a opressão sobre elas dentro dos espaços que deveriam ser seguros, agredindo-as quando suas guardas deveriam estar abaixadas. Eu sou uma fonte de opressão, não só potencial como real. Minha pele, meu rosto, minhas roupas, meu cabelo, minha voz, minha erudição, minhas experiências de vida, minhas opiniões, tudo isso é fruto e lembrança de uma opressão. Eu sou parte de tudo o que eu ojerizo. Minha própria presença é possivelmente opressora.

Eu me considero, pelo menos metade do tempo, uma pessoa de gênero não-binário. Ou pelo menos gostaria de me assumir assim. Minha convicção nessa identidade varia com muitas coisas, entre elas qual modalidade de feminismo eu tenho estudado e seguido mais fortemente. Eu desejo que me reconheçam como uma pessoa que não é propriamente mulher, e eu desejo que me tratem sem distinções de gênero. Eu desejo às vezes ocultar ou modificar aspzctos do meu corpo. Outras ezes eu evito sequer pensar no meu corpo. Eu não desejo interagir com meu corpo como uma mulher -- porém eu também não desejo isso a nenhuma mulher.
Ser uma pessoa (eventualmente) não-binária também não me impede de ter pensamentos e atitudes binaristas, e transfóbicas, mesmo contra pessoas com identidades como a minha e, de fato, contra mim.

Eu não consigo entender o mundo e as palavras de forma objetiva. Me parece que me falta um estudo mais profundo de semiologia. Conceitos como "identidade", "gênero", "mulher" parecem vagos, fluidos, mudam de conversa para concersa, de contexto para contexto, de forma que ora eu sou mulher, ora sou trans, ora sou apenas uma pessoa. Possuir uma identidade de gênero bem-definida e arraigada na identidade pessoal me parece insano, incompreensível, impossível de encaixar corretamente na teoria e percepção que eu gostaria de ter sobre gênero.

Eu tento manter a mente aberta.

Eu sinto que passo mais tempo apagando e reescrevendo o que escrevo do que de fato articulando minhas idéias. Me parece que qualquer coisa que eu pense estará inevitávelmente errada. Mas algumas serão úteis. Mas apenas quando eu compartilhá-las. E eventualmente eu repdroduzo uma forma de pensamento opressiva, é raro mas esses momentos me perseguem. Eu reescrevo tudo o que escrevo porque tudo o que escrevo vem com um alvo e uma intenção. E eu gostaria de atingir o alvo de forma limpa e clara, e não espirrar sangue para todos os lados. Eu não quero correr o risco de comprometer outras causas.

Eu não quero perder a clareza. Eu não quero perder a capacidade crítica. Também não quero me manter em silêncio apenas em nome da liberdade de pensamento, que é uma liberdade falsa, pois permite o desenvolvimento do pensamento amoral. Eu não acredito efetivamente na relativização do que se acha certo. Não ter convicções nenhumas não é nenhuma forma de liberdade, antes uma prisão. Ou talvez a prisão seja a necessidade de convicções para tomar uma atitude.

Eu gostaria inclusive de me apegar mais aos extremos, mas eu sou uma pessoa de hesitações e mêdos, e essa é minha frasueza, e essa é minha força. Eu controlo assim meu potencial para a opressão e a ofensa, mas controlo também meu potencial revolucionário. Porém, eu não preciso e não devo tentar mudar o mundo individualmente. Eu não acredito em nenhum momento no individualismo, e nada do que faço faço pensando individualmente. Assim, eu me considero um tipo de peça útil às nossas causas, como também são úteis as pessoas que têm fortes convicções a respeito de suas próprias identidades.

Eu amadureço lentamente, mas não importa muito, nunca me viram como imatura. Eu serei sempre uma pessoa velha e jovem porque não tenho a coragem de viver uma juventude e nem terei a serenidade de resignar-me à velhice.