sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Tudo

Esses dias eu estava pensando naquela pergunta que as pessoas às vezes fazem, indignadas, como assim vocês não sabem há quanto tempo estão namorando?! e eu me pergunto, bom, é que é complicado, você quer que eu comece a contar a partir de quando? Eu estava pensando em que data a gente poderia querer comemorar. O primeiro beijo? Ou o primeiro encontro, o primeiro xaveco? O primeiro karaokê? A primeira vez que você quis me jogar na parede; a primeira vez que eu quis te fincar minhas presas? A primeira cheirada, a primeira mordida, o primeiro roçar de lábios, a primeira transa? Ou devemos contar a partir do primeiro olhar mais duradouro? Ou a partir da primeira confissão de amor; ou do primeiro pedido? Ou da primeira vez que dormi na sua casa, ou ainda a primeira vez em que nos beijamos em público? Ou a primeira vez em que você veio aqui? Ou do dia em que eu finalmente admiti que queria ser sua namorada?... Acho que entre umas e outras dessas datas se passaram meses. Por isso sempre me parece mais simples chutar um período ou outro, e aliás não façam contas, eu não as faço de modo geral. Mas esses dias eu estava pensando em todas essas coisas, e em como dizem que faz bem ter um ritual, uma data para comemorar, e embora me pareça que poderíamos comemorar todas, se eu tivesse que escolher uma acho que eu escolheria aquele dia em que deixamos a vida de lado e fomos ver o mar. Sim, eu escolheria a primeira vez em que nós realizamos um sonho juntos, o dia em que você me fez mudar minha vida. Parece uma boa data.

Do som que sai dos teus lábios

texto: Marina Salles
ilustração: Márcio Zamboni
música: Carl Orff


Então eu abro os olhos e meus olhos se enchem de música. Aí está você: nesse som, nesse verde que enche meus olhos quando eu vejo a paz que me invade quando eu ouço esta melodia, estas vozes. Neste momento, eu te amo. Neste momento eu sou o que eu quero, um cavaleiro voando sobre os campos, nada me pára, nada me contém, há coisas que eu salto e há coisas sob as quais me abaixo, mas nada se interpõe à minha vista do céu, porque neste momento eu sou livre, e neste momento eu alcanço o que você quis me dar. Eu alço vôo e o mundo é realmente tão grande!, como você disse... Uma guerra uma poesia se desenrola debaixo de mim. E de repente há silêncio. Acabou uma música.
Você concordou que dizer eu-te-amo era muito complicado e eu tive que me explicar: o que estou dizendo é: (eu te amo é:)


É que você chegou a mim
E num instante você viveu em mim
E sem perceber você entendeu uma parte de mim
Você estendeu a mim a sua chama
Você alegrou meu coração e mudou minha vida
E agora...
E agora eu te dou um passe
Para que entre e saia livremente dessa terra
Um passe-livre por meu coração.


E agora é esta a paisagem dentro de mim: há tapetes vermelhos dentro de um castelo, uma fortaleza, que assoma no topo de uma encosta, eu eu sou o pássaro que circunda a torre mais alta, e eu sou o homem que entra com passos pesados na sala do trono. Tudo é um sonho e tudo se desfaz. A música muda e as faces dos homens mudam. Tudo é energia, um tambor que bate regendo o coração dos homens. E eu estou aqui, eu sou as paredes e os cascos dos navios, eu sou o couro dos tambores, eu estou aqui tentando sentir e entender, procurando a resposta, procurando através dessa música, procurando a lembrança do som que saiu dos teus lábios. Eu procuro (e eu sei que é em vão) o som da tua voz através das trombetas, o som da tua voz cantando pra mim, a lembrança de você olhando nos meus olhos. Tudo é tão suave, e tão pesado, e entretanto de repente eu sou uma pomba, eu vôo sem destino, meus olhos são lágrimas, minha boca é um gosto passado, eu sou um anjo perdido procurando a resposta, procurando o sentido do som que saiu dos teus lábios.


Quem eu sou? Você me pergunta e eu sou a sua pergunta. Mas agora não importa. Quando sair de mim, deixe aberta a porta -- há muito lá fora que eu quero convidar a entrar; há muito no mundo que eu quero habitar, mas que também quero que me habite. Eu devo ser a terra e o viajante (eu devo ser a estrada e o violeiro) e eu devo ser a fonte e o sedento, e eu quero ser bem boi como berrante. Me guia e eu te guio! Eu sou o céu e a estrela. Eu não ouço as palavras desta música, mas pra mim é como o céu cantando, eu ouço a voz dos astros e eu flutuo entre eles. E eu ouço a voz da vala das estrelas. E eu lembro da sua história, e eu tento imaginar a beleza -- como será acenderem-se as estrelas?


Então as estrelas disparam e o mundo vira uma torrente uma avalanche, eu páro no meio da música, olho ao redor, suspiro, respiro fundo e me pergunto: onde estou? Esta é a minha casa, hoje é dia das mães. Mas não significa nada. Minha alma não entende nada de casas e calendários. E eu não entendo nada de música. Eu sou um joguete nas mãos dessa melodia. Finalmente eu lembro da tua voz, a tua voz cantando, a tua voz dizendo declamando com tom grave a thousand kisses deep. Mas eu devo te ouvir, cada canção, cada palavra, e enxergar cada emoção que teu olhar transparece. Eu rio. Porque te leio tão fácil e mesmo assim desconheço. Quem você é? Eu pergunto e eu sou a minha pergunta. Mas só por muito pouco tempo. Num instante eu pisco como uma estrela e eu sou outra coisa, eu sou uma outra vida. Minha alma é uma coisa dispersa, um vento, uma torrente que se divide e volta a se unir. Eu rio, porque eu sou leve agora. Agora eu não posso te ouvir, mas sei o que você fala. Porque através dessa música é você que fala, e é você no meio do mundo de vozes que é o universo. Eu ouço tudo, mas muito pouco eu entendo. E como quero entender! Por isso continuo buscando, eu estou buscando a pergunta, e eu busco todas as coisas através das vozes de todas as bocas.


E como a tua boca me morde, eu enxergo no clarão da dor o grito de todas as coisas. A tua voz nem existe agora, só existe esse terror, esse rosnado. Meu coração dispara e meu sangue urra, no fogo do teu veneno e na explosão dum sors salutis -- e de repente minha alma é fogo, meu mundo é fera, meu sangue é fúria e eu devoro o mundo e nada mais é anjo nada mais é água nada mais é calmaria porque tudo é pura loucura! Eu me levanto contra o frio da noite eu sou o Sol, invicto e irremovível, iluminando e queimando as retinas de todas as coisas eu sou a Luz cuspida de teus lábios eu sou o teu sangue e meu peito cresce num rosnado-desejo que fagocita o mundo e num instante eu sou completamente um tudo demoníaco -- e então minha alma voa.



Do alto do vôo da minha alma eu estou ouvindo palmas, e isso quer dizer que a música acabou. Mas eu me sinto leve, a música me liberta, eu fecho os olhos e a noite me carrega para onde eu quero estar, onde a música é nectar, onde a tua voz existe dentro de mim, no ímpeto de um raio e na candura de uma vela. Eu abro os olhos e você está me olhando, mas já não são olhos de fera. Então eu abro os olhos e estou aqui novamente, e eu estou sozinha.


Eu apoio o rosto nas mãos, e meus olhos são lágrimas, e meu coração ressona e tudo é silêncio através dos pequenos barulhos do dia. Eu caio em mim. Eu olho para o céu, e eu estou buscando a pergunta que eu sei que não existe, e eu queria ser o ar para poder me encher desses sons que saem de todos os lábios

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Daquele texto de carmina burana

Eu sei que todo mundo que lê meu blog também no mínimo faz uns passeios pelo Peçanha, mas mesmo assim achei que era uma boa idéia publicar aqui mesmo a seqüência de ilustrações que ele fez inspirando-se num texto meu; sabe, boa educação. Ele está publicando essa série há um bom tempo, e inclusive no começo ele insistiu bastante para que eu fosse publicando os desenhos no meu blog, não sei precisar exatamente por quê, mas eu fui não fazendo isso em parte por preguiça, em parte por distração, em parte porque sendo ou não autora do texto-inspiração no fundo eu tenho tanto a dizer sobre os desenho quanto qualquer pessoa com poucas opiniões sobre objetos de arte. Não é que eu não tenha comentado, eu gostei dessa parte, achei essa outra meio estranha, mas como o Márcio disse a ilustração é um diálogo e o discurso dele, perto ou longe das minhas metáforas, ainda é uma coisa que não me sabe naturalmente. Eu percebo que as imagens dele não estão extamente tentando representar o que minhas palavras dizem, e sim fazendo um comentário, ou explorando uma sensação ou um pensamento que surgiram nele quando ele leu essas palavras; é difícil ler algo que faz referência a uma imagem que você conhece bem, mas através de lentes que não são simples nem tão conhecidas assim. Também tem o fato de que é muito difćil compreender elementos isolados do conjunto. Com o passar dos quadros fui começando a criar uma vaga compreensão de como é uma linha, uma mancha.



Mas eu ainda não entendo, por exemplo, o que é essa capa?! Quer dizer, é claro que as cores estão certas, mas o que significa essa tipografia, que não tem nada a ver com nada? Essa coisa microondulante, desestruturada, que me faz pensar em amebas dançando? Não consigo entender o que levou o Peçanha a fazer essa entrada, depois de todas as suas mulheres meio deusas, etc.

Do som que sai dos teus lábios
(Carmina Burana, Carl Orff)


Então eu abro os olhos e meus olhos se enchem de música. Aí está você: nesse som, nesse verde que enche meus olhos quando eu vejo a paz que me invade quando eu ouço esta melodia, estas vozes. Neste momento, eu te amo. Neste momento eu sou o que eu quero, um cavaleiro voando sobre os campos, nada me pára, nada me contém, há coisas que eu salto e há coisas sob as quais me abaixo, mas nada se interpõe à minha vista do céu, porque neste momento eu sou livre, e neste momento eu alcanço o que você quis me dar. Eu alço vôo e o mundo é realmente tão grande!, como você disse... Uma guerra uma poesia se desenrola debaixo de mim. E de repente há silêncio. Acabou uma música.
Você concordou que dizer eu-te-amo era muito complicado e eu tive que me explicar: o que estou dizendo é: (eu te amo é:)


Quando eu vi esse desenho, a princípio eu fiquei bestificada com a compreensão súbita de que todas as minhas imagens extremamente orgânicas e naturais, extraídas de lembranças de praias, montanhas, histórias de cavaleiros e noites íntimas em lugares selvagens iam ser comentadas por texturas geométricas que não remetem ao toque, formas planas sem efeitos de luz, sem o claro-escuro das emoções sublimes de leveza e liberdade, e corpos de porcelana, sem a brutalidade pitoresca das lembranças que criaram tudo aquilo. E no entanto eu vejo como essas coisas estão apenas na minha mente, e como a ilustração de fato se relaciona com o texto.
Esse parágrafo na verdade era pra falar de liberdade, aquela ânsia de correr pelo mundo que nos torna incansáveis. A liberdade é o melhor presente que alguém pode dar, seja na forma de uma viagem, de um pensamento ou de uma música. Eu estava falando sobre a fúria de chegar a todos os lugares e viver todas as emoções, sobre não ter limites e ver todas as coisas do mundo (por isso é pitoresco, e complexo). Por isso também, eu tive dificuldade em entender o desenhom que me parecia tão leve, talvez até pacífico, e estático. No entento, ainda estamos falando da mesma coisa: a mulher flutua sobre o mundo e o pega nas mãos, completa e livre. São só visões tão completamente diferentes.
É que você chegou a mim
E num instante você viveu em mim
E sem perceber você entendeu uma parte de mim
Você estendeu a mim a sua chama
Você alegrou meu coração e mudou minha vida
E agora...
E agora eu te dou um passe
Para que entre e saia livremente dessa terra
Um passe-livre por meu coração.


E esta por outro lado, quando eu vi fiquei completamente encantada. Ela tem tudo o que faltava na outra (fora cores) - é detalhista, complexa, orgânica, intimista. Essa é a única que me dá a sensação de estar confessando o poema, de estar falando conosco. Ainda me estranha a delicadeza dos traços, das formas, porque eu leio meu texto sentindo todas as vísceras e é tão esquisito não ver nada disso, mas eu vejo muitas coisas que estão lá só pra mim, e eu sinto que este desenho é Amor, incontestavelmente. Ele grita amor. É curioso porque essa parte do texto não falava exatamente de amor a princípio, ele falava de como é desnecessário entender o amor como amor, mas lendo agora é difícil evitar sentir isso que o desenho transborda, essa majestade meio fantástica de mulher livre e amorosa. Acho que parte da minha surpresa é que eu escrevi o texto de uma perspectiva intimamente infantil.
E agora é esta a paisagem dentro de mim: há tapetes vermelhos dentro de um castelo, uma fortaleza, que assoma no topo de uma encosta, eu eu sou o pássaro que circunda a torre mais alta, e eu sou o homem que entra com passos pesados na sala do trono. Tudo é um sonho e tudo se desfaz. A música muda e as faces dos homens mudam. Tudo é energia, um tambor que bate regendo o coração dos homens. E eu estou aqui, eu sou as paredes e os cascos dos navios, eu sou o couro dos tambores, eu estou aqui tentando sentir e entender, procurando a resposta, procurando através dessa música, procurando a lembrança do som que saiu dos teus lábios. Eu procuro (e eu sei que é em vão) o som da tua voz através das trombetas, o som da tua voz cantando pra mim, a lembrança de você olhando nos meus olhos. Tudo é tão suave, e tão pesado, e entretanto de repente eu sou uma pomba, eu vôo sem destino, meus olhos são lágrimas, minha boca é um gosto passado, eu sou um anjo perdido procurando a resposta, procurando o sentido do som que saiu dos teus lábios.

Eu preciso fazer um comentário antes do desenho (não que faça diferença, porque todos vocês já viram). Para mim, as imagens são importantes. As imagens dão contexto às idéias, cercam-nas de implicações, motivos e sabores. Esta era a parte que falava da majestade, dos sentimentos estruturados, de olhar nos olhos, de ficar frente a frente, de lugar, de presença, e principalmente de busca, de aflição em meio ao caos e à incompreensão.


Eu adoro essas ondas que remetem à xilogravura japonesa, e as colunas. Me parece que o Márcio povoou um cenário que poderia ser o mesmo que o meu com sentimentos praticamente opostos aos meus. Eu acho que esse desenho combina com o começo do próximo parágrafo,
Quem eu sou? Você me pergunta e eu sou a sua pergunta. Mas agora não importa. Quando sair de mim, deixe aberta a porta -- há muito lá fora que eu quero convidar a entrar; há muito no mundo que eu quero habitar, mas que também quero que me habite.

que é mais confiante e tem mais pés no chão. Muito me intriga que nos parágrafos de desespero as mulheres ainda estejam de pé, dominando (sempre tenho a sensação de que a onda é vassala dessa mulher), seduzindo, convidando. Ela parece tão segura de si, não parece estar desesperada por respostas. E há tantas formas de interpretar isso (a começar pela possibilidade dela não estar fazendo o papel do eu-lírico), mas a que mais me interessa é que - bom, talvez as pessoas em geral sejam assim magnas por fora.
Eu devo ser a terra e o viajante (eu devo ser a estrada e o violeiro) e eu devo ser a fonte e o sedento, e eu quero ser bem boi como berrante. Me guia e eu te guio! Eu sou o céu e a estrela. Eu não ouço as palavras desta música, mas pra mim é como o céu cantando, eu ouço a voz dos astros e eu flutuo entre eles. E eu ouço a voz da vala das estrelas. E eu lembro da sua história, e eu tento imaginar a beleza -- como será acenderem-se as estrelas?



Ah, eu gosto desse desenho porque me parece que elas estão criando o mundo, um pouco como aquela velha dos ossos da lenda que canta o lobo. Aliás quando eu disse vala das estrelar eu estava falando de Varda, mas não tive a manha de fazer uma citação mais direta (o que que eu ganho mesmo por citar o Valaquenta?). A propósito os valar também criam o mundo com suas vozes. Mas não sei por que a galinha alada e o polvo, eles têm algum significado especial? Eu só acho muito bonito. É uma coisa de criar a si mesmo também.
Então as estrelas disparam e o mundo vira uma torrente uma avalanche, eu páro no meio da música, olho ao redor, suspiro, respiro fundo e me pergunto: onde estou? Esta é a minha casa, hoje é dia das mães. Mas não significa nada. Minha alma não entende nada de casas e calendários. E eu não entendo nada de música. Eu sou um joguete nas mãos dessa melodia. Finalmente eu lembro da tua voz, a tua voz cantando, a tua voz dizendo declamando com tom grave a thousand kisses deep. Mas eu devo te ouvir, cada canção, cada palavra, e enxergar cada emoção que teu olhar transparece. Eu rio. Porque te leio tão fácil e mesmo assim desconheço. Quem você é? Eu pergunto e eu sou a minha pergunta. Mas só por muito pouco tempo. Num instante eu pisco como uma estrela e eu sou outra coisa, eu sou uma outra vida. Minha alma é uma coisa dispersa, um vento, uma torrente que se divide e volta a se unir. Eu rio, porque eu sou leve agora. Agora eu não posso te ouvir, mas sei o que você fala. Porque através dessa música é você que fala, e é você no meio do mundo de vozes que é o universo. Eu ouço tudo, mas muito pouco eu entendo. E como quero entender! Por isso continuo buscando, eu estou buscando a pergunta, e eu busco todas as coisas através das vozes de todas as bocas.



Ok, eu adoro esse desenho. Eu adoro tudo nele. Eu adoro a expressão pensativa da mulher, eu adoro a cidade, e o fato de que ela não está nem quer estar nela, e sim numa espécie de mundo próprio, num barco, que sempre me remete a flutuar, sonhar, explorar outros mundos e se libertar; eu adoro esse sol que existe nos dois mundos, esse sol de véu que acaba ficando meio personagem, meio mágico também. Aliás eu acho esse sol particularmente simpático. De verdade, eu preciso enquadrar esse desenho e pôr na parede. Eu também acho que ele transmite uma serenidade muito parecida com a do texto. O que me intriga um pouco porque os anteriores foram tão contrastantes.
E como a tua boca me morde, eu enxergo no clarão da dor o grito de todas as coisas. A tua voz nem existe agora, só existe esse terror, esse rosnado. Meu coração dispara e meu sangue urra, no fogo do teu veneno e na explosão dum sors salutis -- e de repente minha alma é fogo, meu mundo é fera, meu sangue é fúria e eu devoro o mundo e nada mais é anjo nada mais é água nada mais é calmaria porque tudo é pura loucura! Eu me levanto contra o frio da noite eu sou o Sol, invicto e irremovível, iluminando e queimando as retinas de todas as coisas eu sou a Luz cuspida de teus lábios eu sou o teu sangue e meu peito cresce num rosnado-desejo que fagocita o mundo e num instante eu sou completamente um tudo demoníaco -- e então minha alma voa.



Eu tenho que dizer: para mim essa é a parte mais importante da Carmina Burana, é o clímax do texto, e é a parte que fala das coisas mais reais que esse texto discute. Acho legal comparar a O Fortuna com esse trecho com o desenho: fortuna, fera, deusa. Não sei se essa ordem é necessária ou se dá para passar direto da fortuna para a deusa. A fortuna na verdade diz que tudo é passageiro e que tudo o que se levanta um dia cai, e a liberdade que cria a fera se levanta além e ao redor disso, ignorando a possibilidade da morte, vivendo intensamente o ápice da vida e da glória e em seguida a liberdade de se desprender de tudo. Não existe melhor ou pior. Da mesma forma não exite melhor ou pior na imagem da deusa, só uma espécie de perenidade momentantânea do poder (porque essa imagem parece prestes a se desfazer, apesar da sua imponência). Acho que tudo é a mesma coisa aqui, o final glorioso da última música, a ascensão da fera, a divindade -- e tudo se desfaz imediatamente, no silêncio, no vôo, na volta ao corpo físico e à realidade mortal e humana.


Do alto do vôo da minha alma eu estou ouvindo palmas, e isso quer dizer que a música acabou. Mas eu me sinto leve, a música me liberta, eu fecho os olhos e a noite me carrega para onde eu quero estar, onde a música é nectar, onde a tua voz existe dentro de mim, no ímpeto de um raio e na candura de uma vela. Eu abro os olhos e você está me olhando, mas já não são olhos de fera. Então eu abro os olhos e estou aqui novamente, e eu estou sozinha.

Eu apoio o rosto nas mãos, e meus olhos são lágrimas, e meu coração ressona e tudo é silêncio através dos pequenos barulhos do dia. Eu caio em mim. Eu olho para o céu, e eu estou buscando a pergunta que eu sei que não existe, e eu queria ser o ar para poder me encher desses sons que saem de todos os lábios


Eu goste deste final. Para mim os finais muito emocionantes são todos assim: passa-se do êxtase à leveza ao vazio. Cai-se da tranqüilidade sonhadora à tranqüilidade vazia. Mas ainda é uma tranqüilidade, embora triste. Ainda é paz. E aqui é a paz de querer algo e saber que é impossível, de perguntar sabendo que não haverá resposta. Essa parte, de volta a si, é a parte mais incorpórea da experiência: quando as palmas já não fazem sentido, nada se sente, porque se desaprendeu a sentir com o corpo, agora tudo é espírito. Já a ilustração me parece ver principalmente a coisa corpórea. Acho que é um momento estranho pra começar a representar literalmente as imagens, agora que a ação e a emoção estão particularmente desconectadas.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Dom.

Acho que eu nunca amei ninguém como eu amo você.

Eu sei que eu sempre penso isso, toda vez que eu me apaixono, mas hoje eu estou me perguntando, será que isso não é verdade toda vez? E eu sei que o amor não deveria ser mais importante que tudo o mais somado, mas você vem e desemaranha todos os meus mêdos e me faz ver mais claramente o quanto eu estou me deixando enganar sem fazer perguntas, e nesse sentido você me faz mais livre, se não mais forte, toda vez. O capítulo da Coragem já acabou, e eu estou começando a compreender a Força. Agora eu preciso encontrar a Sabedoria para enxergar as coisas como elas são.

- Poxa, eu não queria fazer nenhuma referência a Zelda.

Eu quero conseguir sentir o verdadeiro prazer das coisas. Compreender tudo o que foi, tudo o que é, lembrar de cada amor com o brilho próprio que ele tinha. Eu entendo tudo. São só rosas que murcharam, camélias que se despedaçaram, o tempo que passou. Algum dia, isso tudo será um passado distante. Hoje em dia, eu ainda consigo sentir emoções muito fortes
ao ver um desenho
uma foto
uma carta
sua letra, num bilhete
Mas às vezes leio minhas próprias palavras como se fossem de outra pessoa.

Sabe, meu avô morreu esta semana, e eu compreendi, em meio a muito mais dor do que eu esperava, que agora eu finalmente podia lembrar dele como ele era quando ele ainda não estava tão perto da morte. Eu posso lembrar dele rindo, fazendo piadas sem graça, brigando e berrando que não brinca mais, fazendo papel de vô bobo. Eu posso lembrar dele como um velho chato que eu amava e não como um velho deprimente que eu esperava que morresse. Essas lembranças me engolfam e eu começo a me arrepender de não ter ido visitá-lo mais vezes, mas logo me lembro quão terrível era visitá-lo nos últimos meses. Lembro que a pessoa que eu gostaria de ver nem era mais aquela que estava lá.

Da mesma forma ultimamente eu tenho conseguido recuperar a parte dos últimos anos que não foi só dor e frustração e chorar no cantinho e entrar em desespêro. Eu consigo começar a ver as possibilidades, as coisas que aprendi, as portas abertas, o crescimento. Ainda tenho um pouco de mêdo de olhar pra isso, mas quem sabe daqui a pouco eu esteja rindo desse mêdo. Por que, sabe, ainda dói bastante. Mas alguma hora a raiva vai passar. Alguma hora a dor vai acabar. Alguma hora tudo vai se encaixar, e pronto.

Naquela noite eu fui dormir com mêdo.
Naquela noite eu acordei com mêdo.
Mesmo com seus braços me envolvendo
Eu estou apavorada
Mesmo com seu coração batendo perto do meu
Eu acordo no final da noite
em uma das nossas camas
com o seu despertador
e penso em todas as coisas que podiam ter sido diferentes
de forma a não me trazer a onde estou agora.
Você ainda está dormindo
E eu me sinto tão segura aqui
entre os seus livros, seus brinquedos antigos,
e essa janela sem grades que dá prà rua.
Eu acordo no meio da noite
e me pergunto como eu posso ver você dormindo com esse dragão dentro de mim
acordado.
Você se revira na cama e eu sei
que vou enfrentar o mêdo para escapar da dor.
Não há nada de bravo ou de forte nisso
- eu sou só a água que corre pelas depressões do solo -
mas eu tenho mêdo de perder esta cama, estes livros, a paz deste refúgio.
Eu deito do seu lado e tento fechar os olhos
Eu te abraço, meu gato pelado, e me pergunto
Por que é que não podemos permanecer crianças?

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Um pouco de feminismo para chacoalhar a gosma dos ombros

Acho que durante a maior parte da minha vida eu tive uma raiva frustrada de muitas das coisas que tentaram me ensinar. Não, eu não discordei de forma sensata, racional, estruturada, comparando prós e contras, evidências para tese e antítese; eu só detestei a idéia, sofri em silêncio ou me expressando com rosnados a frustração inconformada que aqueles ensinamentos me traziam. Quando a gente é criança, a gente não sabe se defender direito.

Pra mim o exemplo clássico é a tese de que humanos são fundamentalmente diferentes das árvores e dos animais. Sempre me rebelei contra essa idéia, mas toda vez que tentava discordar dela algum adulto me dava uma explicação - tão razoável, e quem discordaria de adultos? - e eu me calava, apenas para sentir a raiva crescendo depois, não sei se contra os adultos ou contra a realidade que era cruel. Passaram-se muitos anos, mas hoje eu consigo argumentar consistentemente e com base em evidências que essa diferença não é tão grande assim. Quem sabe daqui a alguns anos minha rebeldia infantil possa estar apaziguada, todos os seus argumentos ouvidos, sem raiva da realidade.

Sabe, eu tive minha primeira menstruação com nove anos, embora eu tenha tomado hormônios para retardar meu desenvolvimento que adiaram meu amocinhamento para uns onze anos mais ou menos. Com doze eu já tinha um bocado de pêlos e até uns seios pequenos e muito desiguais, e minha mãe arranjou uma mulher que vinha em casa fazer depilação a cera quente nela, em mim e na minha irmã que tinha dezesseis. A primeira vez em que minha mãe me mandou depilar, eu senti um misto de horror e curiosidade. A curiosidade passou bem rápido, até porque eu gostava bastante de ter pêlos nas pernas, mas eu não queria contrariar minha mãe que insistia que uma moça tinha que estar depilada, e o horror foi balanceado com um certo senso de dever filial. Eu era uma criança obendiente, que guardava as revoltas para chorar num canto escondido ou cantar lamentos debaixo do chuveiro. O resultado foi que depilação se tornou a coisa que eu mais odiava, e era especialmente frustrante que minha melhor amiga tivesse pernas adoravelmente felpudas e não fosse obrigada a se submeter àquele sofrimento.

Isso tudo, e eu nem era mulher direito: eu estava muito pouco interessada em namoro, a vida adulta era inimaginável, minhas fantasias todas envolviam selva, bichos e lutas, minhas brincadeiras favoritas eram todas de moleque e era só muito raramente que eu me dispunha a exercitar minha feminilidade, quando as mulheres mais velhas se juntavam pra me vestir e pintar para um bar mistvah ou festa de quinze anos. Passei anos usando quase que só calça comprida e camiseta larga - eu tinha algumas saias, mas achava todas elas horríveis. Durante o colegial eu era tão peluda que durante um alongamento em educação física (num dia em que eu fora obrigada a vestir bermuda) minha amiga chegou a me confundir com um homem. Na verdade, em um mês sem depilar eu ficava tão peluda quanto um garoto, e é claro que eu só agüentava aquela tortura em vésperas de feriados, festas e viagens pra praia.

Tudo isso meio que acabou quando eu descobri creme de barbear para mulheres e de repente minha pele ficava maravilhosa usando isso e uma gilete. O efeito foi tão dramático que eu passei a preferir pernas lisas a felpudas (isso eu devia ter uns 18 ou 19 anos). De lá pra cá, eu fiquei me perguntando por que eu tive que passar por todo aquele inferno, por que eu não podia ter pernas peludas com treze anos, por que eu não descobri antes que cera quente e maquininhas arrancadoras são só violências sem sentido. Sabe?

A minha questão com a pílula foi praticamente posterior a isso tudo, então eu já tinha um mínimo de autoridade pra tomar decisões a respeito do meu corpo. Da primeira vez que eu resolvi tomar pílula, foi sem pensar muito, porque o médico recomendou pra regular meu ciclo (não que eu soubesse porque ele tinha que ser regulado), e eu desisti depois de alguns meses porque eu não conseguia acertar três dias seguidos. O único efeito colateral de que me lembro foi que meus seios ficaram imensos (lembro vagamente de algum namorado achando isso legal). Fiquei algum tempo sem tomar e tentei de novo, e aí eu lembrei todos os dias, e foi horrível: durante exatamente os meses em que tomei, fiquei deprimida, sem ânimo para aventuras e meio incapaz de fazer sexo direito, além de ter mamas tão sensíveis que doía dar um abraço. Parei de tomar e me senti animada, forte e selvagem, como eu já tinha esquecido que eu podia ser. Algum tempo depois eu fui no médico de novo, e apresentei a ele todas as minhas objeções a pílula, mas ele acabou me convencendo a tomar "a mais fraca que tem no mercado" com três argumentos básicos.

Primeiro ele disse que um ciclo que se arrasta pode gerar problemas no ovário a longo prazo. Coisas que dificultariam uma gravidez. Francamente eu não estava tão interessada assim nos meus futuros filhos, mas era a idéia de que minha saúde podia estar se comprometendo sem que eu soubesse.

Além disso ele disse que a pílula ia regular meus hormônios e acabar com as espinhas.

E mais que isso, eu podia sempre ter certeza de que não estava grávida dentro de um mês, e controlar meu ciclo com precisão.

Aí eu voltei a tomar e de novo vieram dores nas mamas e uma depressão bem pior que a anterior. Eu estava já me perguntando o quanto da minha personalidade se perdia quando eu abdicava dos meus hormônios. Eu agüentei três meses disso, tive um mês de pausa, feliz e tranqüilo porém com todas as espinhas doloridas do mundo e acabei voltando, para mais humores desagradáveis. E agora mesmo tomando pílula estou cheia de espinhas, e que significa que meu médico vai me receitar algo mais forte, e, francamente, eu vou dizer não.

Cansei dessa palhaçada, cada vez um efeito diferente, humores horríveis, resultados incertos, fora a aporrinhação de ter que tomar esse troço todo dia.

Sobre o que eu estava falando mesmo?

sábado, 9 de outubro de 2010

Irmão de Caça

Lembro da primeira vez que te vi de pé à beira deste meu mar, de como foi bonito e emocionante. Nunca cheguei a te encontrar, nunca cheguei a falar contigo à beira deste mar. Mas vi que você via; te via às vezes passando ao longe, navegando, domando as velas negras do Sonho, cavalgando vento e ondas. Você cresceu sem mim. Eu estive longe.

Eu estive longe a correr pelas florestas, pelas dunas, pelos espinheiros, eu estive matando monstros e demônios e me cobrindo de sangue. Você esteve conquistando o mundo, longe e perto de mim. Eu passei um tempo longe naquela cidade-fantasma que construí com tamanho carinho e para a qual chamei todos os meus novos amigos, aquele lugar de sonho onde as coisas não se destruíam. Você veio uma vez, olhou para tudo aquilo com curiosidade, depois torceu o nariz, deu de ombro e me chamou para uma aventura no mar, qualquer coisa mais instintiva do que aquela farsa. Eu até fui... mas voltei, saudosa, teu mundo não é mais meu e eu voltei a construir minha cidade, fiquei aqui, sim, sem dúvidas, e feliz até, até o dia em que Ele veio e com um pousar no chão fez tudo virar brasa, fez a cidade arrasada virar pedra, vir ao chão. Aí eu chorei.

Eu chorei e me enterrei junto aos escombros, vazia e fraca, lembrando todas as ruínas que já deixei para trás. Mas o Castelo Abandonado agora é um paraíso de ramos e flores comendo as paredes e derrubando vidraças - tudo se renova - e a À Entrada da Caverna nem existe mais. Eu fiquei aqui, junto a estes escombros, olhando as pedras e as dores e as memórias destruídas, tudo tão caro e tão inútil, tanta dor, e nem sei se um dia você entenderá do que estou falando. Eu olhei para as minhas pedras, machucada, e sequer havia ali a beleza da destruição, a dor da morte, o Sangue. Ele olhou pra mim, imperioso, e eu ao me humilhar bati no fundo da minha ruína e voltei com um jorro de raiva; e pela primeira vez eu lutei contra ele e o expulsei. A cidade estava vazia, já nem parecia cidade, as pedras eventualmente seriam só pedras e eu poderia passar por aqui novamente. Veja, há até uma pequena flor nascendo desta fenda junto aos meus pés!

Então eu saí da cidade, mas você estava tão longe... Eu tinha um mundo de terras a atravessar, e você continuava a navegar, lugares onde eu nunca tinha estado. Tudo pareceu tão diferente agora que a ilusão tinha acabado. Por um tempo eu fechei os olhos e evitei voltar aqui, evitei pensar nestas terras, nesses mares, nas nossas aventuras... Você voltou e tentou me chamar, mas eu tinha tanto a reconstruir, tanto que eu deixara degenerar, e ao mesmo tempo tantas coisas novas que eu precisava criar, erguer, firmar e povoar que eu disse, tantas vezes, não. Suas aventuras eram alguns dos meus sonhos! Mas eu já não sou exatamente aquela pessoa que eu costumava ser, e existem coisas e pessoas às quais eu não posso dar as costas.

Eu queria que tudo se encaixasse, que a gente pudesse ir caçar juntos, mas me parece que por agora nossas caçadas serão em nichos diferentes. Mas não desista, irmão, que ainda voltaremos a correr juntos, que ainda lutaremos na mesma arena. Não me esqueça ainda.

Don't write me off just yet.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Dica do quotidiano - vidro embaçado

Aprendi ontem no cursinho uma técnica bastante simples para impedir o vidro de embaçar: basta passar detergente na superfície e limpar a seco, com pano ou de preferência papel absorvente. O vidro é um composto iônico de sílica, sódio e potássio, que atrai fortemente a água. O detergente se liga a ele por sua ponta polar e cria uma camada apolar, ou seja, hidrofóbica. Estou pensando em experimentar usar isso nos vidros dos carros aqui, embora seja um processo um pouco demorado limpar todo o detergente excedente sem usar água (a água dissolve o detergente o remove completamente do vidro).

Aparentemente, um dos alunos do psor de química usou esse recurso para escrever mensagens secretas no espelho do banheiro, que só apareciam quando o espelho embaçava. Ah, a criatividade =)!