sábado, 25 de agosto de 2007

Pensamentos...

Acho que não é culpa minha. Digo, por que seria? Fico pensando em coisas do passado, às vezes o passado revela mais, às vezes menos. Algumas lembranças estão cheias de um ressentimento pegajoso que não quer sair. Outras estão vazia, limpas, pingando como louça no escorredor. E o tempo passa num ritmo contraditório, em que todas as coisas se tornam impossíveis. Outras vezes, acho que nós é que passamos pelo tempo, e é por isso mesmo que ele parece tão inatingível. Não é mesmo possível pensar no futuro — o futuro só existirá depois que o presente for totalmente corrompido em função dele. É por isso que tenho mêdo de seguir em frente.
Da mesma forma que as crianças às vezes sentem os ossos crescendo, às vezes sinto a dor do crescimento do meu espírito. Acho que algum dia foi determinado que este ano as coisas mudariam, e eu aceitei sem reclamar. Assim como todas as coisas fúteis que aceitei, sempre sem reclamar. Mamãe reclama, abatida, pensativa (e tanto temos pensado ultimamente), das coisas que planejamos fazer e não fazemos, das coisas que fazemos mal, sem planejar. Mas eu não estou escutando de verdade. Estou rindo das bobagens da vida, criando coragem para algo que acho que nunca terei coragem de fazer. Mas é como se eu já tivesse definido ou decidido meu destino, embora não tenha certeza de que ele me agrada. Hoje estou serena, calma — vocês deviam ter ouvido o que planejava escrever ontem à noite. Às vezes paro no alto das rampas da FAU e fico olhando maravilhada a estrutura do prédio. Sorrio quase sem querer, enquanto as pessoas passam às minhas costas, quase sem me notar. Mas quando me afasto do grupo recebo um sorriso ou um tchau nervoso. Sorrio de volta, aceno, falo qualquer coisa. Penso que preciso ser mais agressiva. Eu nunca planejei de verdade fazer essa faculdade por mais de seis meses. Até agora tudo tem sido um teste, um aprendizado. Fico pensando se terei coragem de fazer agora a grande mudança para o ano que vem. Penso nisso e vejo uma série de desvantagens. De novo, me sinto insuportavelmente pequena.
O começo de tudo está em aceitar todas essas pequenas coisas que não fazem sentido. Quando terminei de ler A Caixa Preta, pensei: "Essa história não faz sentido", e guardei o livro na estante, sentindo que havia algo errado e que eu estava corroborando para com isso. Senti a mesma coisa com o final de Rorouni Kenshin. Mas guardei as duas histórias num cofre no peito, sabendo o quanto elas haviam sido importantes pra mim, independente de seus finais desanimados.
Guardei também os meus dois meses no Senac, embora eles ainda sejam louça suja. Estou pensando em como vou guardar o tempo e os amigos que fiz e ainda pretendo fazer na FAU. Não: ontem eu disse, Nos cumprimentamos, às vezes até nos tocamos. Depois nos afastamos sem despedidas. Ele conversa com seus amigos da faculdade e eu... eu não tenho amigos. Tenho apenas a vontade de que eles sejam meus amigos e a vaga noção de que gostam de mim; mas quando a conversa acaba nunca tenho certeza de que ela recomeçará algum dia, como tenho com meus amigos. E o tempo passa ao mesmo tempo muito rápido e muito devagar, fazendo com que construir qualquer coisa pareça impossível. Todos os momentos parecem demasiado curtos para que possam fazer diferença, e muito distantes para formarem um conjunto. Assim tenho a constante sensação de estar começando sempre um contato novo, nunca se aproximando da situação de conforto — e ainda assim quando nos avistamos parece surgir uma ameaçadora obrigação de familiaridade, de um cumprimento cuja ausência parece determinar o fechamento quase definitivo das possibilidades de uma nova amizade. Como quando se conhece uma pessoa a muito tempo, já notaram como então é mais difícil se tornar próxima dela. Acho que é por isso que decidi que teria apenas seis meses. Se nesses seis meses não conseguir realmente me aproximar de pelo menos um dos meus colegas, vou ficar bastante desanimada. De novo, tenho a sensação de que eles se considerariam meus amigos; mas também tenho o estranho mêdo de que achem que eu não quero ficar perto deles. (acho que nunca descrevi essa questão tão categóricamente — e nem sei o que isso significa).

Chega.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Lettres

Hoje foi um dia vagamente estranho, doce como chuva em dia de sol.
Começou com o sol de fim de inverno, a cor verde das folhas e os olhos doces do meu cão. E o amor inesgotável daquela gata que dorme na minha cama (que não está aqui agora; deve ter ido procurar comida em algum lugar.) Depois foi um vislumbre resquicioso de um sentimento que eu aparentemente já esquecêra. Mas a bem da verdade nem notei, e segui meu caminho tranqüilamente, e esperei o ônibus, levemente aflita, como faço todos os dias.
Mas dessa vez uma mulher de seus vinte e seis anos chegou no ponto, sentou-se, perguntou-me sobre o ônibus que ela procurava e que era o mesmo que eu esperava (e que estava providencialmente atrasado — ela riu, meio aliviada), e foi puxando assunto até que eu tive que aceitar conversar. Olhando para trás, eu fiz o papel do animal sendo domesticado: à princípio longe, meio assustada, mas cada vez mais à vontade, chegando mais perto, até que estávamos dentro do ônibus lutando para permanecer de pé e trocando idéias e experiências (ela bem mais que eu — senti um pouco como se ela já tivesse vivido tudo o que eu vivera e tudo o que eu deveria viver) sobre coisas não tão banais assim, como a vida na faculdade, as festas de Bauru, a importância de sair de casa, as trivialidades do trabalho. Nos separamos sem o sentimentalismo desnecessário, e então a FAU... a FAU. Sabe?
Meio assutadora, como sempre. E um professor, bem, quando entrei na sala me assustei com a contradição entre a voz grossa e o homem franzino. Extremamente simpático; e tinha um nome agradável, de uma região da qual eu já ouvira falar, uma tal de Ilha da Felicidade. E nos ensinou algumas coisas sobre o Oriente e suas linguagens, e sobre o design e o desígnio, e sobre outras coisas que nós precisávemos conhecer. Tanto que eu nem tirei o caderno da mochila, nem me distraí com meus colegas: fiquei ouvindo, embevecida. Digo embevecida pensando na delícia de beber cada palavra. Não sei, como... como estar muito afim de aprender, eu acho. E rabisquei furiosamente na folha do programa, sentindo cada traço, cada fúria, e afinal, foi só aí que me dei conta: rabiscando ágil um rraaahrrna composição de uma fera; só aí me dei conta do que me tomava e me fazia sorrir, subitamente — acabada a aula — sozinha na minha carteira. Que eu podia sentir.
Sentir! Como sentia falta daquilo, daquele prazer estranho, daquela pequena loucura! E ao sair da aula... notei então que eu não queria me isolar, que queria conversar, embora não soubesse como. E olhando para o chão vermelho além da rampa de saída, percebi que eu não queria deixar a FAU. Não ainda. Não por mais algum tempo. Mas talvez. Talvez seja simplesmente necessário.

Como aquela moça me disse, quando o ônibos esvaziou um pouco: fazer faculdade fora, morar em república, sair da casa dos pais — isso é simplesmente necessário. Por quanto tempo mais eu vou ficar negando o que o mundo insiste em me falar?



PS.: Hoje eu comecei a ler um livro.

domingo, 5 de agosto de 2007

Por favor, deixe-me chorar.

Este não é um post sobre como eu terminei com meu namorado e estou destroçada (o que não é verdade); não é um post sobre como estou desiludida com a vida e com tudo o mais e prestes a me suicidar (o que é uma absurda hipérbole da realidade); nem é um post sobre como as coisas todas na verdade não estão fazendo muito sentido (o que é um eufemismo, talvez até uma metonímia da existência humana).


Na verdade é um post sobre algo anterior a isso. Ao menos para mim. Este será um post que eu deveria ter escrito dezesseis dias atrás, mas que não consegui. A vida é assim, cheia de nãoconseguís. Irromperam-me as lágrimas dos olhos quando era de os olhos conseguirem ver. Às vezes penso que a vida é assim, fútil, proposital, eufemística. A vida é sempre uma metáfora para algo maior. O nascimento é metáfora da Criação, e a morte é metáfora para a Perda. Ou é para o Fim, que é metáfora para a Mudança. Tudo o que mais nos perturba é metáfora para a Mudança... Alguém já dissera que "nada se cria, nada se perde; tudo se transforma". A Mudança é a transformação.

Só resta mesmo ao fim ser figura de linguagem, porque na verdade as coisas não acabam; se arrastam, persistem, silentes e talvez invisíveis. Ela, por exemplo. Ainda resiste na voz a vontade de chamar-lhe o nome. Ela se esconde dentro, fundo, em tudo. Está nas estrelas, nos gramados, na solidão. A solidão que se define por falta dela; ela mesma nunca permitiria a solidão.

Porque há algo maior que a Loli ainda está tentando me dizer.

Como se ela quisesse que eu entendesse que ela era metáfora para algo maior. Talvez, se eu conseguir entender, eu me torne também metáfora dessa mesma coisa intangível. Essa entidade. Talvez até mesmo o Amor.
Porque a Loli me ensinou a amar. Antes eu não entendia; diziam-me amor e eu pensava apenas que um dia eu deveria entender o que era que se chamava de Amor. E então eu entendi, olhando naqueles dois castanhos olhos doces. Assim, minha primeira definição de amor foi aquilo que eu sentia pela Loli, e ela por mim. E a minha primeira definição de ser-consolado foi estar triste e desanimada e poder abraçar a Loli assim muito silente e sentir o calor dela e o coração dela batendo fundo (uma coisa sobre os labradores é que eles são muito fundos, como madeira maciça), e a respiração dela, e ela muito quieta e eu muito quieta, muito triste, e pensar, tudo bem, tudo bem, e tudo de repente ficar um pouco melhor, um pouco mais leve, e ficar mais fácil respirar (e então ela se mexer e sair do abraço). E a Lolita me ensinou outras coisas também: me ensinou a brincar, quando eu havia esquecido como; me ensinou a passear em vez de ir-a, me ensinou a me perder.
Principalmente me perder, e esse é um ensinamento pelo qual sou muito grata. Quando o Argus ainda não existia, eu saía com ela na guia meio sem vontade e pedia pra ela me dizer onde ela queria ir. E deixava ela ir tomando as decisões, viramos à esquerda aqui, atravessamos a rua agora, vamos parar porque estamos ambas muito cansadas. Uma vez nos perdemos tão absolutamente que paramos à beira de um murinho para descansar e eu não sabia se havia forma de voltar para casa (estávamos tão exaustas!); até hoje não sei que lugar era aquele, nem como saímos de lá. Andando, acho. Quando se anda muito, parece-nos que a única solução é andar mais. E me lembro vagamente de pegar a guia e arrastar a Lolita para fora dali, porque ela sempre se cansou mais rápido que eu, e lembro de como eu tinha que puxar a guia com força para ela não parar no meio do caminho.
Uma vez também ficamos perdidas no meio da Vila Madalena, o que foi pior porque as ruas lá são horrivelmente íngremes — chegamos a subir na Nitingüi até a Harmonia apenas para que uma moça lá em cima (a primeira que víamos em vários minutos; estava anoitecendo) nos aconselhasse a descer tudo e seguir pela Natingüi até a Praça do Pôr-do-Sol. Para quem não conhece, isso são quatro ou cinco quarteirões de escadarias e ladeiras, e quando chegamos na praça estávamos mortas. E ainda tínhamos que subir a praça inteira. "Que caminho mais estúpido", dirão vocês. Mas por favor lembrem que eu estava completamente perdida. E aí minha amiga Larissa me ligou, perguntando porque eu não estava na festa dela, e eu fiquei sem saber o que dizer. Parecia absurdo contar para aquela menina bonita, bem educada, e nem de longe tão doidinha quanto eu, que eu estava perdida com minha cachorra num bairro desconhecido (não importa quão próximas de casa aquelas ruas sejam para mim hoje). Também não me lembro do estado em que estávamos quando chegamos em casa. Ou melhor, tenho uma lembrança vaga de nem ter energia para pegar dois copos d'água para nós, como eu sempre fazia. E nem ela ter energia para aceitar, quando peguei-os, passados alguns minutos. E de ficar bastante tempo parada, antes de sequer pensar em ir para a tal festa. Mas até hoje lembro desse dia com orgulho, até com uma pontinha de inveja, porque depois vieram os filhotes e o Argus e nunca mais eu pude me perder tão perdidamente quanto que gostava de me perder com a Loli. E depois também eu comecei a me perder sozinha voltando do cabeleleiro (o que nem é tão divertido) e afinal passei a conhecer tão bem o bairro que mesmo quando tento me perder eu sempre acabo sabendo exatamente onde estou. O que me faz pensar que talvez seja hora de mudar de bairro.

Por isso eu penso que talvez a culpa nem seja da Loli, e sim minha. Talvez o papel dela na minha vida tenha mesmo acabado, junto com tudo aquilo que o Santa e infância representaram pra mim. Então ela estava deixando, de qualquer forma, de ser minha cachorra. Talvez até por isso eu tenha me habituado a chamá-la de cã (cabelo branco): porque ela estava ficando velha, branca, e sequer subia nas pedras da Cajaíba, e sempre se cansava tão rápido nos passeios que o pobre do Argus voltava pra casa sem estar nem um pouco ofegante. Mas há algo mais, ou algo menos. Faz duas semanas que eu te vi pela última vez, e agora às vezes acho que você ainda está lá fora no quintal, esperando um pouco de carinho. E às vezes acho também que já faz tanto tempo, já nos acostumamos. Acho que é só isso que me permite escrever aqui, agora: não saber se você ainda vai aparecer em sonhos, não saber se eu nunca mais vou pensar em você. O que você acha, Lô? Devemos atravessar aqui, ou virar a esquina? Voltar? Visitar a Kiki e o Balto? Descansar no próximo banco? O quê, Lô? Como eu vou entender esses seus meneios de cabeça, esse seu ofegar constante, seu passo que hesita e puxa e mostra quem é que manda (eu ou você, Lô? Ainda não sei...), seus latidos para quase todos os outros cachorros (e por que não aquele labrador chocolate, aquela golden-labrador da esquina, por que com eles era tão amável?), seus cheirares os canteiros, seus puxões, corridas, pausas, andar arrastado, escolha da calçada em vez da grama, pisar na sarjeta suja em dias quentes? Eu, que sou apenas humana. E você, também, entendia quando eu te contrariava? Entendia tudo o que eu falava, contando coisas da minha vida, fazendo perguntas, comentando os lugares, os passeios, conversando até com cachorros alheios? Você entendia meu cansaço de segurar a guia firme, de gritar, minha irritação? E qual era a de ficar latindo feito louca toda vez que eu aparecia perto do quintal?! De ficar gritando por comida, sua doida?!!, logo depois do café da manhã!
Não, acho que a doida sou eu. Porque, sabe, eu te amo, Lori. E eu disse isso milhares de vezes, nos últimos meses, quando eu chegava tarde da noite em casa e encontrava você lá, deitada tão tranqüila, tão fofa, e eu pensava ela amadureceu mesmo, não está mais correndo para mim e pulando... mas será que não era já o início da doença? O que sei é que eu te abraçava, doce, quente, fundo, e era quase como chorar, mas melhor, porque não doía, e porque eu não me sentia tão só. E não era porque eu estava triste. Era só porque eu te via e queria te abraçar. Porque você era linda. Porque, sabe, você meio que foi meu primeiro amor. Não Primeiro Amor de verdade, desses que fazem o mundo girar, a gente ficar sem comer, as festas perderem a graça, e o céu ficar mais azul. Você foi meu primeiro amor amigo, assim ágape, assim (não há como explicar), assim cão. Você foi como uma irmã que não fôra sempre da família, que não era sequer minha igual. Não importa: nós duas fomos exemplos de nossas próprias espécies. Ou pelo menos você, Madame Lolita, foi. Acho que quando eu penso que quero ter um amigo para quem eu possa contar tudo, conversar sobre tudo, e que me conte tudo também, e que seja assim um melhor amigo, acho que é isso que estou procurando. Talvez seja por isso que se diga que o cão é o melhor amigo do homem.

Meu mêdo é que eu nunca consiga ter no Argus a mesma confiança que eu tinha em você.

E já que estamos nisso eu temo que nenhum outro cachorro seja tão importante para mim quanto você foi. Que outro cachorro poderia me ensinar tanto? E quando eu poderia ter tanto a aprender? Às vezes acho que a época de aprender já foi, e que agora é tempo de me tornar o que aprendi. Mas, ao mesmo tempo, vivo rezando para que tudo o que já me disseram nesse sentido seja uma grande mentira. Imagine, nunca mais poder mudar meu jeito de ser? Estar presa a essa minha criancice? Imagine nunca mais poder conscientemente alterar minha caligrafia, como fiz uma vez, aos quatorze anos. Impossível.

Mas acho que, somando os tempos bons e os ruins, nós até que tivemos um belo saldo positivo. Acho que eu posso dizer até que cuidei da minha cã, embora não tenha sido tanto quanto eu acho que deveria. Resta saber se eu conseguirei cuidar da mesma forma não apenas dos próximos cães que hão de vir mas também da minha própria vida, sem ela. Porque a presença dela sempre me lembrou de uma porção de coisas boas de lembrar, e agora parece que falta alguma coisa muito importante no meu dia-a-dia.
Inclusive eu me sinto como uma mera sombra do que sou — abalada, confusa e às avessas. Tenho a impressão de que sinto as coisas boas como se fossem ruins, e as coisas ruins me parecem boas. Mas talvez seja apenas o clima que está confuso (aliás, vocês viram que belo dia foi ontem?)
A verdade é que me pego pensando se na verdade a morte dela não foi um pouco providencial. Se não foi, como eu disse antes, algo proposital, e por isso mesmo fútil, comparado ao que seria a nobre desrazão do acaso. Eu fico pensando que nesta época nós precisávamos passar por uma grande mudança, e que a Loli cumprira sua função no mundo na etapa anterior de nossas vidas. Eu fico pensando também que quando a gente adoece a gente muda e cresce, e que talvez a morte seja a maior mudança de todas; que talvez a morte seja um passo maior de crescimento, e que portanto a minha senhora cã está seguindo na sua jornada.E também que minha família precisava mudar e crescer, e que essa morte foi a nossa doença. E que se nós conseguirmos seguir em frente, estaremos mais fortes para enfrentar os próximos desafios. Porque tudo na vida é uma metáfora para algo maior, e todo acontecimento é uma metonímia, e por isso cada coisa que existe ou acontece têm muitas formas de ser compreendida; mas me parece que nenhuma forma é completa, pois as coisas só podem ser explicadas a partir da compreensão de todas as metonímias. Acho que é por isso que é sempre tão difícil entender.

No fundo, acho que nem estou mais falando da minha cã. Porque também a Lolita se tornou agora uma metáfora para a Vida, e essa já é uma forma boa o suficiente de lembrar dela. Independente de como o homem pegou o corpo dela e o jogou dentro do carro para levar para o crematório canino, acho que o Espírito da Loli conseguiu explodir em milhões de pedacinhos e espalhar-se em todas as direções. Muito mais do que qualquer um de nós, agora a Lolita faz parte disto tudo.

A única coisa que resta, engasgada no peito e na boca, é a vontade, é a fome, de gritar, assoviar, chamar, docemente, alegremente, através do quintal ou da praia:

Loli... Lollipops... Lolita... Lolita, vem! Vem, Loli!

...

... e eu quase consigo vê-la correndo, meus olhos se enchem d'água, porque eu a vejo correndo sorrindo pra mim totalmente livre e jovem e parece impossível aceitar que eu nunca mais vou vê-la assim feliz correndo latindo sorrindo brigando gritando correndo sorrindo pra mim vindo depois que eu chamo.

O engraçado é que então eu lembro do Argus e vejo ele latindo sorridente (porque ele é um fofo, sabe?), e penso, Talvez...

E, o rosto molhado de lágrimas, no meu coração a Lolita se tornou algo mais que uma cã muito amada e querida. Algo de que, na verdade, eu nunca vou conseguir falar realmente. Algo assim secreto. Só entre eu e ela.

E só.