terça-feira, 14 de agosto de 2018

Quando nasci

(obs: achei este texto na pilha de rascunhos, e entendendo que o final dele precisa ser reescrito e tal, mas estou numa vibe de publicar coisas mal-escritas, então aqui vai)

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Algumas semanas antes de eu nascer, um homem olhou para o meu corpo e disse: mulher.
Minha vó se alegrou de saber que teria uma netinha.
Minha mãe se recusou a saber, ela disse: já tenho uma menina e um menino, o próximo bebê pode ser o que ele quiser. O que vier é lucro.

Eu sou lucro.

Quando nasci, um homem olhou para o leu corpo e disse: mulher.
Me tiraram do colo de minha mãe. Me mantiveram numa cama estéril. Me devolveram para os braços de meu irmão bebê que gritava: minha! Minha! Minha!

Toda criança não pertence a si mesma.

Minhas tias comemoraram meu corpo chamado mulher. Minhas primas me deram espaço nas brincadeiras dos vestidos, das maquiagens, das fadas. O mundo maravilhoso de ser mulher.

Meus primos (e os outros meninos) me disseram que quem jogava mal era mulherzinha, que mulher era covarde, que mulher era ruim, e assim eu aprendi que me chamavam de mulher para me ofender. Mulher era um palavrão.

Quando eu mudei de escola, as crianças ouviram meu nome e souberam: mulher. As meninas me adotaram, me incluíram, me ensinaram as delicadezas, as brincadeiras, os assuntos de mulher; os meninos se afastaram e me afastaram, e tiraram sarro, e puxaram meu cabelo e me chamaram de muitas coisas, às vezes por nojo, às vezes por interesse; e eu aprendi que eu precisava participar da separação entre homem e mulher.

Quando eu cresci um pouco, eu descobri que meu corpo era proibido, que só podia ser visto por aquelas que tinham um corpo semelhante ao meu; que se eu quisesse interagir com meu corpo, revelar meu corpo, trocar os panos que cobriam meu corpo, eu precisava me esconder de todos os que não eram mulher. Eu não entendi; mas eu entendi que meu corpo era mulher, que meu corpo me separava e me limitava ao conjunto das pessoas que se chamavam mulher.

Nas aulas de educação física, o professor olhou pra mim e disse: mulher. Então ele me fez fazer exercícios mais leves, me obrigou a me esforçar menos, baixou suas expectativas sobre o meu desempenho, e muitas vezes me impediu de jogar futebol, porque eu era mulher; e eu aprendi que mulher era fraca, lenta, incapaz e ruim, que eu não tinha mira, nem força, nem fôlego, nem reflexos, e não adiantava eu tentar mostrar que eu tinha, que eu era, que eu podia fazer, porque mulher não pode, não tem, não é; assim era toda mulher.

Quando eu me senti só, um menino olhou para o meu corpo e disse: mulher. E desejou meu corpo e minha companhia, e fez amizade comigo, porque eu era mulher. E ele me permitiu me sentir importante, e inteligente, e querida, como nenhuma pessoa jamais me fizera sentir. Quando nossa amizade cresceu, eu chamei de amor; não amor daquele tipo proibido que só podia haver entre homem e mulher, mas amor daquele tipo doce que se tem entre irmão, entre irmãs, entre familiares e pessoas amigas. Mas ele me pediu em namoro, porque o amor dele era daquele tipo estranho que significava que ele era homem e eu era mulher e o corpo dele, diferente do meu, desejava o meu corpo, diferente do dele. E eu aprendi que eu poderia ter amigos se eu fosse desejável como mulher.

Conforme cresci, minhas amigas e meus amigos me perguntaram, cada vez mais insistentemente, de que menino eu gostava, e eu entendi que eu precisava gostar dos meninos (daquele jeito estranho que só meninas podiam gostar de meninos, e que envolvia romances e beijos e a separação entre homem e mulher), e que os meninos precisavam gostar de mim (dessa forma estranha que só os meninos podiam gostar das meninas e que envolvia corpos e beijos e a separação entre homem e mulher), mais que das outras meninas, e que competir pela atenção do menino que eu gostava era ser mulher.

Quando meus seios cresceram, meu irmão adolescente olhou pro meu corpo e disse: mulher. E eu percebi seu olhar e senti que ele também me via através das divisões e separações e através dos nossos corpos, e que o amor que ele tinha por mim, aquele amor de irmãos, estava manchado pela sugestão daquele gostar que existe entre homem e mulher.

Quando meus pêlos cresceram, eu fiquei feliz de me aproximar mais de uma fera, de uma lôba -- mas logo descobri que pêlos precisavam ser arrancados, em longas sessões de tortura, e eu aprendi que o sofrimento era parte de ser mulher, e que eu não podia ser um bicho, ser selvagem, ser loba, enquanto eu fosse mulher.

Conforme cresci, eu comecei a valorizar apenas as meninas que faziam amizades com meninos, as que recusavam a separação rígida entre os sexos -- mas porque o mundo adolescente era feito da separação entre homem e mulher, nossas amizades se encheram de cotonações sexuais, porque amizades entre homem e mulher sempre se misturavam com aquele tipo estranho de gostar que vinha da reunião dos sexos separados. E eu soube que eu precisava participar desses jogos, e que só podia jogar na posição de mulher.

Eu tentei resistir.
Com meus amigos de internet, eu brincava que era homem, ou bicho, ou fera. Nós falávamos de não ter sexo, ou de poder alternar entre os sexos. Nós falávamos de abraços masculinos, e de não ter vergonha do corpo um do outro. Nós falávamos de amizade, aquela amizade entre pessoas irmãs, um paraíso perdido anterior à cisão entre os sexos, do passado (que eu imaginava que houvesse existido) onde nós havíamos sido livres das limitantes separações entre homem e mulher. O paraíso, anterior aos sexos.

Adolescente, eu decidi que não ia me impôr a vergonha do corpo, que eu podia sim tirar a roupa na frente do meu melhor amigo, meu amigo-irmão; e o fiz. Mas adolescíamos, e eu senti o olhar do meu amigo, e percebi seu desejo, aquele estranho desejo que só um homem podia ter sobre uma mulher, aquele desejo sobre o corpo, sobre cada pedaço de pele exposta ou sugestão de forma; e entendi que eu nunca mais poderia mostrar diante de um homem meu corpo mulher. Minha amizade com homens, a partir dali, seria sempre limitada pelo meu corpo de mulher.

E quando meus pêlos cresceram tão rápido e tão fortes que removê-los passou a ser um tormento, e eu comecei a usar shorts mesmo com pernas peludas, minhas amigas riram de mim, e eu entendi que a pior coisa que eu podia fazer como mulher era ter características de homem.

Mas quando eu descobri que vários dos meus amigos mais íntimos me amavam e me desejavam como mulher, eu entendi que eu era uma mulher amável e desejável, e que eu podia fazer meus amigos felizes sendo mulher.

Depois disso, quando eu comecei a sonhar com os olhos dourados de uma mulher, eu tive mêdo de sequer interagir com ela, com mêdo de que eu não fosse capaz de atender às expectativas de qualquer mulher
 
Depois disso, quando meu amigo me contou que ele era gay, eu tive o baque de aprender que eu podia partilhar amor com um homem que não desejava meu corpo de mulher; e ao mesmo tempo o baque de desejar um homem que jamais desejaria meu corpo de mulher..

E depois, quando eu comecei a namorar o rapaz que declamava seu amor a princesas de corações gélidos, eu odiei esse amor cortês, e decidi me afastar o mais possível da idealização que ele tinha de mulher. E depois, quando eu decidi me afastar dele, eu decidi começar a explorar o que poderia ser me comportar como uma mulher.

Então eu comecei a usar vestidos, e saias, e toda aquela parafernália que me faria mulher; e depois eu descobri que eu não sabia usar maquiagem, mas que poderia não usar, e que se eu raspasse as pernas, não precisaria depilar, e que haviam formas de escapar a algumas partes do sofrimento de ser mulher.

Quando virei mulher, eu compreendi que eu podia tentar resistir à imposição de ser mulher.

Quando eu consegui assumir minha sexualidade, e ir atrás de vivê-la satisfatoriamente, eu descobri que outras pessoas gostariam até das partes mais bizarras, das partes que eu detestava, do meu corpo de mulher. E eu aceitei que meu corpo não era nojento, errado ou deformado, através do desejo e do sexo e do olhar dos homens.

E quando eu entrei em paz com minha sexualidade, eu consegui fazer amizades tranqüilas e honestas e profundas com outras mulheres, e eu descobri que muitas delas também se revoltavam contra o sofrimento de ser mulher; e eu descobri que eu podia lutar contra cada pequeno pedaço do modelo de mulher.

Depois disso, quando eu deixei meus pêlos crescerem, e eu senti o triunfo de voltar a ter patas de fera, os homens vieram atrás de mim me dizer o quanto eles me admiravam na minha coragem como mulher; e eu não consegui dizer a eles que pouco me interessava ser julgada como mulher.

Quando eu encontrei outra pessoa como eu, e brinquei com ela sentindo que nenhum de nós era homem e nenhuma era mulher, eu me dei conta de que eu nunca estava realmente feliz enquanto eu fosse reconhecide como mulher. Mulher era uma prisão, uma corrente que me atava. A liberdade era a fera, a resistência, e o nada.



Quando nasci, eu olhei para o mundo com meus olhos que não eram nem de homem nem de mulher.