quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Todas as Confissões

Eu vivo controlando meus pensamentos e atitudes, com mêdo de estar cerceando a liberdade alheia, com mêdo de oprimir.

Eu não converso muito sobre as dúvidas que tenho em relação a todas as nossas militâncias.

Muitas vezes eu estou em cima do muro, assistindo. Aconteceu uma ou dias vezes de alguém reclamar de algo que eu disse, ou de algo que eu compartilhei ou endorsei. Aconteceu algumas vezes de alguém se ofender com o fato de eu não ter tomado um lado explicitamente.

Essas coisas me perseguem.

Eu queria ter mais convicção nas minhas ideologias, identidades, filosofias. Em vez disso estou constantemente revendo e questionando o que faço. Nunca sei se o que penso não será de fato uma violência ideológica contra outra pessoa. Não consigo escolher ou construir uma corrente de feminismo com a qual me identifique porque minha opinião fundamental sobre como devemos nos identificar politicamente, ou como eu prefiro me identificar, é fluida. Hoje, no Dia da Visibilidade Trans, eu assumi uma identidade cis, politicamente, pois os temas que discuti hoje eu discuti do ponto de vista de uma mulher, de mulher como classe política, de mulher apesar de nossas individualidades e de nossa resistência ao nosso próprio gênero.

Eu sou uma pessoa designada e lida como mulher. Digo designada mulher não apenas porque fui designada assim no nascimento mas também porque assim me designam diariamente, em todas as interações sociais cisgeneristas,  familiares me designam o papel de mulher, mulheres que acabei de conhecer me impõe o papel de mulher, homens desconhecidos na rua me forçam ao papel de mulher. Em dias ímpares me parece que devo me assumir assim, pessoa designada diariamente como mulher, pessoa agrilhoada ao gênero mulher, mas pessoa não resignada a esse gênero, pessoa que se recusa a se identificar como mulher; em dias assim me recuso a me identificar com o gênero que me foi imposto o com o qual sinto nenhuma identificação. Em dias pares tenho a impressão de que ser designada mulher justamente é ser mulher, e que quando me identifico com outras pessoas que sofreram abusos unicamente por serem vistas como mulheres, sinto essa identificação justamente por ser mulher, porque no fundo é o abuso, a opressão, a única coisa que une todas as mulheres.

Não consigo decidir se sou ou não mulher. É verdade que não quero ser, mas não sei o quando disso é disforia e o quanto é femmefobia.

Sou uma pessoa designada diariamente e desde o nascimento como mulher e convictamente feminista. Mas isso não me impede de ter pensamentos e sentimentos de misoginia e femmefobia (o ódio a coisas associadas ao feminino).

Eu dou suma importância ao feminismo interseccional e procuro ao máximo apoiar e reforçar as lutas de pessoas que possuem outras identidades e que sofrem outras discriminações, mas isso não me salva de eventualmente ter pensamentos classistas, racistas, lesbofóbicos, femmefóbicos, transmisóginos, capacitistas. Na verdade isso me coloca justamente em uma situação em que eu posso pegar essas pessoas desprevinidas e reproduzir a opressão sobre elas dentro dos espaços que deveriam ser seguros, agredindo-as quando suas guardas deveriam estar abaixadas. Eu sou uma fonte de opressão, não só potencial como real. Minha pele, meu rosto, minhas roupas, meu cabelo, minha voz, minha erudição, minhas experiências de vida, minhas opiniões, tudo isso é fruto e lembrança de uma opressão. Eu sou parte de tudo o que eu ojerizo. Minha própria presença é possivelmente opressora.

Eu me considero, pelo menos metade do tempo, uma pessoa de gênero não-binário. Ou pelo menos gostaria de me assumir assim. Minha convicção nessa identidade varia com muitas coisas, entre elas qual modalidade de feminismo eu tenho estudado e seguido mais fortemente. Eu desejo que me reconheçam como uma pessoa que não é propriamente mulher, e eu desejo que me tratem sem distinções de gênero. Eu desejo às vezes ocultar ou modificar aspzctos do meu corpo. Outras ezes eu evito sequer pensar no meu corpo. Eu não desejo interagir com meu corpo como uma mulher -- porém eu também não desejo isso a nenhuma mulher.
Ser uma pessoa (eventualmente) não-binária também não me impede de ter pensamentos e atitudes binaristas, e transfóbicas, mesmo contra pessoas com identidades como a minha e, de fato, contra mim.

Eu não consigo entender o mundo e as palavras de forma objetiva. Me parece que me falta um estudo mais profundo de semiologia. Conceitos como "identidade", "gênero", "mulher" parecem vagos, fluidos, mudam de conversa para concersa, de contexto para contexto, de forma que ora eu sou mulher, ora sou trans, ora sou apenas uma pessoa. Possuir uma identidade de gênero bem-definida e arraigada na identidade pessoal me parece insano, incompreensível, impossível de encaixar corretamente na teoria e percepção que eu gostaria de ter sobre gênero.

Eu tento manter a mente aberta.

Eu sinto que passo mais tempo apagando e reescrevendo o que escrevo do que de fato articulando minhas idéias. Me parece que qualquer coisa que eu pense estará inevitávelmente errada. Mas algumas serão úteis. Mas apenas quando eu compartilhá-las. E eventualmente eu repdroduzo uma forma de pensamento opressiva, é raro mas esses momentos me perseguem. Eu reescrevo tudo o que escrevo porque tudo o que escrevo vem com um alvo e uma intenção. E eu gostaria de atingir o alvo de forma limpa e clara, e não espirrar sangue para todos os lados. Eu não quero correr o risco de comprometer outras causas.

Eu não quero perder a clareza. Eu não quero perder a capacidade crítica. Também não quero me manter em silêncio apenas em nome da liberdade de pensamento, que é uma liberdade falsa, pois permite o desenvolvimento do pensamento amoral. Eu não acredito efetivamente na relativização do que se acha certo. Não ter convicções nenhumas não é nenhuma forma de liberdade, antes uma prisão. Ou talvez a prisão seja a necessidade de convicções para tomar uma atitude.

Eu gostaria inclusive de me apegar mais aos extremos, mas eu sou uma pessoa de hesitações e mêdos, e essa é minha frasueza, e essa é minha força. Eu controlo assim meu potencial para a opressão e a ofensa, mas controlo também meu potencial revolucionário. Porém, eu não preciso e não devo tentar mudar o mundo individualmente. Eu não acredito em nenhum momento no individualismo, e nada do que faço faço pensando individualmente. Assim, eu me considero um tipo de peça útil às nossas causas, como também são úteis as pessoas que têm fortes convicções a respeito de suas próprias identidades.

Eu amadureço lentamente, mas não importa muito, nunca me viram como imatura. Eu serei sempre uma pessoa velha e jovem porque não tenho a coragem de viver uma juventude e nem terei a serenidade de resignar-me à velhice.


segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Diálogo sintético sobre feminismo

--- Amor, o que é esse tal de feminismo do qual você tanto fala?
--- Feminismo é a luta das mulheres por direitos que os homens já têm, é a luta contra o machismo, por igualdade de gênero...
--- Ôpa, igualdade de gênero, eu também quero isso! Posso participar?
--- Claro! Quanto mais aliados, melhor!
--- Péra, "aliados"? Mas eu vou ser feminista também, vou lutar junto com você, por que você me chama meramente de "aliado"? Não é uma luta por igualdade?? Eu também quero a minha igualdade, quero poder fazer as coisas que as mulheres fazem...
--- Você quer fazer o que "as mulheres fazem"? Como o quê?
--- Ah, eu quero poder ir na praia só de sunga, usar saia quando tá quente, que as mulheres paguem a conta pra mim, essas coisas...
--- Ahn, sério? Porque o feminismo é mais sobre coisas como, sabe, poder sair sem mêdo de ser estuprada, conseguir emprego, conseguir viver sem depender de um homem, essas coisas...
--- Ah, mas eu também quero o fim do serviço militar obrigatório só pra homens, e que a taxa de morte por violência de homens diminua!
--- Hm, ok, mas essas não são as pautas do feminismo, sabe? Nós lutamos contra a opressão sobre mulheres que privilegia homens, e não contra a violência de homens sobre outros homens. Aliás o feminismo é justamente sobre parar de focar só nos problemas dos homens.
--- Ah. É? Puxa, achei que o feminismo era uma coisa mais ampla, mais abrangente. Pôxa, então não é a minha causa, esse feminismo não tá com nada. Não quero mais ser feminista não.

<baseado em alguns trechos repetidos freqüentemente de conversas reais. A síntese torna o diálogo um pouco exagerado>