domingo, 18 de setembro de 2016

Você se acha bonita?

Há dias que a coisa toda vem abaixo.
Normalmente não falamos disso, evitamos o assunto, falamos do tempo, do dia, das plantas que floriram esta semana, das palavras que o bebê está ensaiando falar, do futuro, de dinheiro, do (ex?) marido que não reconhece o valor do seu trabalho, do filho que acabou de se mudar.

Evitamos. Eu eu evito, se me perguntam desconverso, quem, eu? Meu nome? Me chame como quiser, como sempre, "Mali" está bom, finja que nem me viu por dentro, finja que me desconhece, que não vê, através dos olhos, a hesitação, a desfaçatez, a desconexão, que não vê através dos dedos a desidentidade, finja que somos todos nossos nomes, nossas infâncias, vamos continuar jogando os Jogos que jogávamos dez, quinze anos atrás.

Um amigo meu dizia que ele sequer existia antes de chegar ao colegial. Eu achava estranho. Até que, às vezes me ocorre, anos mais tarde, dizer que eu nem existia antes de decidir entrar na segunda faculdade. Mas não digo.
Seria um pouco cruel dizer que eu passei a existir depois de afastar de você.

E seguimos na mentira, uma mentira nova desta vez, feita de suposições sistêmicas, de meias-verdades, de faltar intimidade e confiança ou haver excesso de intimidade pra contar aquelas coisas que podem acabar com uma amizade. As relações seguem em suspenso, com a respiração presa, enquanto dentro de mim se desenrola toda uma ladainha. Tão difícil confiar; e não, os anos não tornaram mais fácil.

Um dia desses minha mãe perguntou, com tom muito sério, muito preocupada. Fálavamos de beleza, de corpo, de mulheres e de ser mulher e de como tudo isso é muito complicado.
Deixe-me abrir um parênteses: minha mãe é daquelas que faz dietas o tempo todo, e de tempos em tempos me acusa de estar demasiado "magra" ou muito "gorda", e sempre tenta me convencer a mudar a dieta, a comer mais carne, a fazer mais exercícios. Ainda assim, minha mãe se preocupa, decerto, com minha saúde mental, com minha auto-confiança, com minha auto-estima. É uma boa mãe, no geral -- nunca vou terminar de agradecer tudo o que ela fez por mim, desde os sacrifícios até o modelo de pessoa que ela foi, que ela é pra mim. Fecha parênteses.

Minha mãe muito precupada muito consternada, num dia em que eu estava mais ou menos de mal com a vida (ou de tpm talvez) e ela falando -- não lembro do quê -- me pergunta: "Você se acha bonita, Marina?"
E desde então tenho revolvido na cabeça essa pergunta, mastigando, digerindo, quebrando nas partes componentes pra poder decidir lentamente a resposta

você se
acha
bonita
Marina

Bonita. Me percorre pela cabeça todas as definições de beleza que uma pessoa pode alcançar. Eu não sou como a luz atravessando as folhas novas de uma ficus na primavera. Ou como o céu emoldurando uma ilha coberta de mata atlântica nativa verdejante. Eu não sou como as pedras empilhadas na beirada do rio, nem eu sou a asa iridescente de uma borboleta. Bonita, essa pessoa. Marina.

Me ocorre que pouco me diz que ela queira saber o que eu acho sobre a beleza dessa pessoa chamada Marina. Que se ela tivesse me perguntado objetivamente, "Marina é bonita?" eu teria respondido, objetivamente, "sim".

Bonita. Marina essa pessoa cuja identidade está uns 50% baseada na idéia de ser bonita. Não bonita porque não tenha nenhum outro valor, nem bonita porque seja modelo de passarela. Mas porque na adolescência, quando se formam as identidades frágeis, Marina fez amizades sempre com os garotos que se apaixonavam, ou um dia se apaixonariam, por ela. Bonita porque todas as suas relações começavam assim, e porque tantas delas se desnaturavam justamente por causa disso. Bonita porque ela detestava depilar perna, e nunca usava maquiagem, mas nas festas de quinze anos usava longo e tudo o mais e dançava a noite toda com garotos que chamava de seus. Bonita porque o homem que passou por ela na rua disse que sim, porque o rapaz mais velho que morava na praia mandou um bilhete pra poder falar a sós com ela à noite, e ela só tinha quatorze anos, mas foi assim mesmo, porque não tinha nem muita certeza se era permitido se recusar sem mais a ir num primeiro encontro.

Bonita sem dúvida, porque quando ela decidiu relaxar das estúpidas convenções sociais e trocar de camisa de costas para os amigos, os amigos moços ficaram de olhos fixos e vidrados e deixaram bem claro que agora era hora de ela se ajeitar nas convenções sociais. Ou porque depois do colegial desenvolveu um mêdo nervoso de interagir com meninos porque quando menos ela esperava eles se apaixonavam por ela e tornavam tudo muito complicado. Bonita porque seu próprio primo se apaixonou por ela e veio questionar porque ela não lhe dava uma chance, porque o rapaz que mestrava rpg para o grupo de escoteiros ficou tão obcecado que a única opção que lhe restou foi [mentir] que ela nunca jamais teria nenhum interesse nele.

Bonita talvez com uma certa resistência, porque evitava usar vestidos e blusinhas justas, porque usava uma jeans largona e uns moletons e umas malhas de velha e umas luvas de mendigo, mas justamente por isso, justamente porque isso nem adiantava, porque ainda assim não conseguia evitar os olhares e os corações dos garotos, especialmente os muito próximos, os muito queridos; porque a maior parte do seu sofrimento de amor vinha de se apaixonarem por ela todos ao mesmo tempo, e os amores dela que não eram correspondidos eram por serem os homens muito velhos ou muito distantes ou muito gays [ou por se apaixonar, sem compreender nominalmente, por pessoas que não se encaixariam na sua presumida heterossexualidade], ou por pessoas inacessíveis de dentro dos seus longos e encadeados relacionamentos monogâmicos. E ainda mais bonita quando se desmonogamizou e se confrontou com todas as suas ilusões e tantas das suas inseguranças, e passou a usar saia curta e blusa justa e cortar o cabelo apenas pra atrair os olhares dos outros. Bonita agora com certeza porque não saberia mais não ser antes de tudo Bonita. Bonita comprando vestidos, experimentando saltos, cortando o cabelo curtinho porque lhe desesperava não ser bonita o bastante pra atrair as meninas, bonita até o último instante, com esforço, cancelando um date porque as pernas não estavam perfeitamente depiladas, gastando horas escolhendo o sutiã que dá a forma perfeita dos seios com a blusa certa, abandonando a aula de dança para não ficar com músculos demais na barriga, parando pra perguntar no meio do sexo se sua cara de gozo era bonita. Sim.

Mas Marina não é como o Mar, que vem e vai e se estende até onde a vista alcança, interminável. Eu abandonei tudo isso, as saias, os sutiãs, os romances impulsivos e os encontros casuais. Não foi exatamente o gênero que eu abandonei - até porque esse me persegue, entranhado nos ossos, nos trejeitos defensivos e no timbre da voz. O que abandonei foi o esforço, foi aquela motivação autoflagelante de horas e suor e sangue pra construir uma persona da qual eu nem gostava. Marina, essa é a verdade, Marina não se acha bonita, não se acha capaz, não se ama. Marina sobrevive integralmente do amor que recebe dos outros. Mas ela não é sequer capaz de corresponder a esse amor, com seu coração volúvel, nômade. Ela deixa atrás de si um rastro de corações partidos, e se desfaz em culpa. Tudo o que Marina pode oferecer é a intensidade, o romance. Quando isso pára de dar resultados, ou quando ela começa a se sentir velha demais, ela silenciosamente morre.

Que me importa o que eu acho da minha beleza? Minha beleza nunca foi realmente minha. Quando criança, as sessões de "embelezamento" nada mais eram que sessões de tortura. Com catorze anos, tudo o que eu queria era raspar a cabeça. Consegui força pra fazer esse experimento apenas dez anos depois. Deixar os pêlos crescerem, fazer piercings na orelha, raspar o cabelo com máquina zero, e depois pintar; experimentos, um por um, sondando as reações, principalmente de minha mãe. Lentamente, e sem sequer perceber, tornando esses pequenos símbolos os pilares da minha identidade.

Quando uso calças, hoje sinto que estou amordaçando minhas pernas. Não é que ache minhas pernas bonitas; é mais que eu não consigo mais existir socialmente sem esse símbolo exagerado de auto-expressão. Eu preciso saber, quando entro num ambiente, que todos ali saberão que eu uso pernas peludas. Mas isso não é o bastante, então eu uso também camisetas largas, bermudas masculinas, e cortes de cabelo um tanto desconjuntados feitos em casa. Eu não sou bonito, quer dizer, não me importa mais tanto ser bonito, não quero nem preciso seduzir ninguém; o que me importa é ser imediatamente fora dos padrões, imediatamente não-feminino. Mas na verdade, acho que também eu não consigo mais me achar bonito.

Nem feio. Porque belezza essa coisa que vem sempre de fora, dos olhos dos outros. E os olhos dos outros já me dizem tanta coisa que machuca, me não me é, que já me divorciei do olhar dos outros mesmo quando olho no espelho. Antes olhava no espelho e via o olhar dos outros; hoje olho no espelho e me pergunto, desesperadamente, "como é que não me vêem assim: como eu sou?!"

Através do espelho é que vejo meu corpo, nem bonito nem feio, nem gordo nem magro, nem masculino nem feminino; meu. Mas apenas através do espelho, e talvez um pouco através do viver, do tato, quando não sinto aquela dor nos peitos me lembrando que eles estão aqui, quando não me atrapalham, quando não sinto meu corpo fraco, mole, torto. Sempre quis ter pernas finas e nunca tive pernas finas. Antes eu morria de inveja de minha irmã, e também de meu irmão; agora não restou espaço para inveja, agora sinto apenas um vazio esquisito, porque não compreendo mais; minha irmã era rosa e meu irmão azul, e eu pegava sempre a toalha amarela.

Mas nas fotos, nos vídeos, nem reconheço meu corpo. Me dá um mêdo de que meu corpo nas fotos seja que nem o retrato de Dorian Gray, ficando velho e deformado e feio enquanto seu corpo de verdade permance jovem e forte. Eu me sinto assim, jovem e belo até que me mostram uma foto minha, e tenho uma voz linda até ouví-la numa gradvação, e aí fico me perguntando como meus amigos conseguem conviver comigo, com minha voz horrível, com minha coluna corcunda, com os ferros nos meus dentes, com meu cabelo desajustado, com minhas piadas ruins, e minha atitude de que sei tudo mas não ligo pra nada, com sempre o meu mesmo sorriso falso e fofinho e essas bochechas e essas tetas gordas caídas.

Uma vez eu vi uma foto bonita minha, numa viagem, no topo do mundo. Por alguns segudos.

Mas, cada vez que vejo uma foto, ou, pior ainda, um vídeo, passo dias lutando contra o nojo do meu próprio corpo -- como posso ser assim se o que eu sinto de dentro é tão melhor, mais fluido, mais forte, mais equilibrado, mais bonito?

Talvez por isso minha mãe tenha me perguntado. Porque ela viu nos meus olhos eu olhando aquela foto e pensando "que pessoa feia eu sou. Nem a fofura do meu sobrinho consegue me fazer ter vontade de olhar pra isso."

...

Uma vez eu vi uma foto minha que até achei bonita. Era eu com ele no colo, depois da minha defesa, dando o maior sorriso que eu já dei em toda a minha vida.