sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Rei incógnito

Eu sonhei contigo, Rafael.
Como há anos não sonhava.
É estranho porque às vezes quando acordado é difícil lembrar quem eu sou, e você
Eu sonhei contigo, Rafael, e talvez
sonhar contigo seja sonhar comigo.

O sonho foi assim: você, mais jovem do que eu me lembro
(e, do jeito que as coisas são, provavelmente mais jovem do que parecia)
já Rei, já Senhor, já talvez até cansado de suas muitas e tão confusas responsabilidades, disfarçado, incógnito, em terra estrangeira
-- Ou não? Porque os limites das terras são tão vagos, e o planeta é uma esfera, mas também é uma história, e há tanto que não conhecemos, tanto para ver que é absurdo pensar que duas ou três crianças disfarçadas de adultos (ou mesmo adultos disfarçados de crianças disfarçadas de adultos) poderiam conhecer todas as cidades do mundo,
e há passagens, rios e reinos dentro de montanhas, gigantes e dragões adormecidos, ruínas cobertas de floresta, bibliotecas dentro de livros --

talvez seja até inevitável que um Rei esteja sempre em terra estrangeira dentro de seu próprio reino.

Você tinha raspado o cabelo (afinal um garoto loiro de olho azul chama a atenção) e comprado uns moletons num lugar qualquer (vermelho, marrom e preto, cores nada a ver contigo), e agora estava tentando se alojar numa espécie de hostel enorme, meio hostel meio clube meio universidade, um grande vão no meio de vários corredores abertos em vários andares, uma estética industrial-futurista dessas cheias de vidro e metal branco. Cheirando a junk-food, suor, cheetos e cloro de piscina.

Você procurava um quarto pra dormir e abria uma porta pra encontrar um garoto (?) espantado, escondendo algo (ou -se) no beliche. Mas tudo bem, você também tinha algo a esconder, no caso, um pequeno companheiro, um bichinho, Rafael, como você pretende se esconder levando por aí uma coisa tão sua quanto um passarinho? Se esconda bem, Rafael, ninguém anda por aí com pássaros que nem você, ninguém por aí fala a língüa deles.

Você ri. Eu sinto-ouço sua risada, Rafa. Quando eu te conto isso. Minha preocupação estúpida por você, sendo que eu nem sei o quê você estava fazendo, se escondendo do quê. Me diz.

Você tinha um mestre, acho. Um velho; talvez --
talvez eu esteja assintindo muito Avatar e isso tenha entrado no sonho? --
e você tentava ir no vestiário tomar um banho e ficava errando o vestiário, o que é mesmo isso de homem e mulher? Em qual vestiário se entra? mas talvez
isso seja só eu sendo você sendo eu no meu sonho na minha cabeça.

Às vezes eu sinto uma saudade louca
e é besta porque você sempre está aqui de alguma forma do jeito que sempre esteve
mas eu cresci, Rafael
e eu te abandonei
tantas vezes
tantas vezes eu te abandonei pra conseguir ver este mundo, o mundo Real, sabe, o mundo em que EU vivo
pra fazer amigos que pudessem me levar a lugares que eu nunca poderia imaginar
em vez dos amigos que só podem me levar a lugares que eu imagino.
Mas vocês nunca me abandonaram, sempre
que eu visito vocês
vocês me recebem de braços abertos
é até estranho
como vocês nunca esquecem
É doido como nos sonhos eu nunca tenho tempo pra ser covarde
nos sonhos eu sei exatamente quem sou
no mundo Real as responsabilidades não vêm com os grandes poderes
elas só vêm e vêm e vêm

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Quando nasci

(obs: achei este texto na pilha de rascunhos, e entendendo que o final dele precisa ser reescrito e tal, mas estou numa vibe de publicar coisas mal-escritas, então aqui vai)

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Algumas semanas antes de eu nascer, um homem olhou para o meu corpo e disse: mulher.
Minha vó se alegrou de saber que teria uma netinha.
Minha mãe se recusou a saber, ela disse: já tenho uma menina e um menino, o próximo bebê pode ser o que ele quiser. O que vier é lucro.

Eu sou lucro.

Quando nasci, um homem olhou para o leu corpo e disse: mulher.
Me tiraram do colo de minha mãe. Me mantiveram numa cama estéril. Me devolveram para os braços de meu irmão bebê que gritava: minha! Minha! Minha!

Toda criança não pertence a si mesma.

Minhas tias comemoraram meu corpo chamado mulher. Minhas primas me deram espaço nas brincadeiras dos vestidos, das maquiagens, das fadas. O mundo maravilhoso de ser mulher.

Meus primos (e os outros meninos) me disseram que quem jogava mal era mulherzinha, que mulher era covarde, que mulher era ruim, e assim eu aprendi que me chamavam de mulher para me ofender. Mulher era um palavrão.

Quando eu mudei de escola, as crianças ouviram meu nome e souberam: mulher. As meninas me adotaram, me incluíram, me ensinaram as delicadezas, as brincadeiras, os assuntos de mulher; os meninos se afastaram e me afastaram, e tiraram sarro, e puxaram meu cabelo e me chamaram de muitas coisas, às vezes por nojo, às vezes por interesse; e eu aprendi que eu precisava participar da separação entre homem e mulher.

Quando eu cresci um pouco, eu descobri que meu corpo era proibido, que só podia ser visto por aquelas que tinham um corpo semelhante ao meu; que se eu quisesse interagir com meu corpo, revelar meu corpo, trocar os panos que cobriam meu corpo, eu precisava me esconder de todos os que não eram mulher. Eu não entendi; mas eu entendi que meu corpo era mulher, que meu corpo me separava e me limitava ao conjunto das pessoas que se chamavam mulher.

Nas aulas de educação física, o professor olhou pra mim e disse: mulher. Então ele me fez fazer exercícios mais leves, me obrigou a me esforçar menos, baixou suas expectativas sobre o meu desempenho, e muitas vezes me impediu de jogar futebol, porque eu era mulher; e eu aprendi que mulher era fraca, lenta, incapaz e ruim, que eu não tinha mira, nem força, nem fôlego, nem reflexos, e não adiantava eu tentar mostrar que eu tinha, que eu era, que eu podia fazer, porque mulher não pode, não tem, não é; assim era toda mulher.

Quando eu me senti só, um menino olhou para o meu corpo e disse: mulher. E desejou meu corpo e minha companhia, e fez amizade comigo, porque eu era mulher. E ele me permitiu me sentir importante, e inteligente, e querida, como nenhuma pessoa jamais me fizera sentir. Quando nossa amizade cresceu, eu chamei de amor; não amor daquele tipo proibido que só podia haver entre homem e mulher, mas amor daquele tipo doce que se tem entre irmão, entre irmãs, entre familiares e pessoas amigas. Mas ele me pediu em namoro, porque o amor dele era daquele tipo estranho que significava que ele era homem e eu era mulher e o corpo dele, diferente do meu, desejava o meu corpo, diferente do dele. E eu aprendi que eu poderia ter amigos se eu fosse desejável como mulher.

Conforme cresci, minhas amigas e meus amigos me perguntaram, cada vez mais insistentemente, de que menino eu gostava, e eu entendi que eu precisava gostar dos meninos (daquele jeito estranho que só meninas podiam gostar de meninos, e que envolvia romances e beijos e a separação entre homem e mulher), e que os meninos precisavam gostar de mim (dessa forma estranha que só os meninos podiam gostar das meninas e que envolvia corpos e beijos e a separação entre homem e mulher), mais que das outras meninas, e que competir pela atenção do menino que eu gostava era ser mulher.

Quando meus seios cresceram, meu irmão adolescente olhou pro meu corpo e disse: mulher. E eu percebi seu olhar e senti que ele também me via através das divisões e separações e através dos nossos corpos, e que o amor que ele tinha por mim, aquele amor de irmãos, estava manchado pela sugestão daquele gostar que existe entre homem e mulher.

Quando meus pêlos cresceram, eu fiquei feliz de me aproximar mais de uma fera, de uma lôba -- mas logo descobri que pêlos precisavam ser arrancados, em longas sessões de tortura, e eu aprendi que o sofrimento era parte de ser mulher, e que eu não podia ser um bicho, ser selvagem, ser loba, enquanto eu fosse mulher.

Conforme cresci, eu comecei a valorizar apenas as meninas que faziam amizades com meninos, as que recusavam a separação rígida entre os sexos -- mas porque o mundo adolescente era feito da separação entre homem e mulher, nossas amizades se encheram de cotonações sexuais, porque amizades entre homem e mulher sempre se misturavam com aquele tipo estranho de gostar que vinha da reunião dos sexos separados. E eu soube que eu precisava participar desses jogos, e que só podia jogar na posição de mulher.

Eu tentei resistir.
Com meus amigos de internet, eu brincava que era homem, ou bicho, ou fera. Nós falávamos de não ter sexo, ou de poder alternar entre os sexos. Nós falávamos de abraços masculinos, e de não ter vergonha do corpo um do outro. Nós falávamos de amizade, aquela amizade entre pessoas irmãs, um paraíso perdido anterior à cisão entre os sexos, do passado (que eu imaginava que houvesse existido) onde nós havíamos sido livres das limitantes separações entre homem e mulher. O paraíso, anterior aos sexos.

Adolescente, eu decidi que não ia me impôr a vergonha do corpo, que eu podia sim tirar a roupa na frente do meu melhor amigo, meu amigo-irmão; e o fiz. Mas adolescíamos, e eu senti o olhar do meu amigo, e percebi seu desejo, aquele estranho desejo que só um homem podia ter sobre uma mulher, aquele desejo sobre o corpo, sobre cada pedaço de pele exposta ou sugestão de forma; e entendi que eu nunca mais poderia mostrar diante de um homem meu corpo mulher. Minha amizade com homens, a partir dali, seria sempre limitada pelo meu corpo de mulher.

E quando meus pêlos cresceram tão rápido e tão fortes que removê-los passou a ser um tormento, e eu comecei a usar shorts mesmo com pernas peludas, minhas amigas riram de mim, e eu entendi que a pior coisa que eu podia fazer como mulher era ter características de homem.

Mas quando eu descobri que vários dos meus amigos mais íntimos me amavam e me desejavam como mulher, eu entendi que eu era uma mulher amável e desejável, e que eu podia fazer meus amigos felizes sendo mulher.

Depois disso, quando eu comecei a sonhar com os olhos dourados de uma mulher, eu tive mêdo de sequer interagir com ela, com mêdo de que eu não fosse capaz de atender às expectativas de qualquer mulher
 
Depois disso, quando meu amigo me contou que ele era gay, eu tive o baque de aprender que eu podia partilhar amor com um homem que não desejava meu corpo de mulher; e ao mesmo tempo o baque de desejar um homem que jamais desejaria meu corpo de mulher..

E depois, quando eu comecei a namorar o rapaz que declamava seu amor a princesas de corações gélidos, eu odiei esse amor cortês, e decidi me afastar o mais possível da idealização que ele tinha de mulher. E depois, quando eu decidi me afastar dele, eu decidi começar a explorar o que poderia ser me comportar como uma mulher.

Então eu comecei a usar vestidos, e saias, e toda aquela parafernália que me faria mulher; e depois eu descobri que eu não sabia usar maquiagem, mas que poderia não usar, e que se eu raspasse as pernas, não precisaria depilar, e que haviam formas de escapar a algumas partes do sofrimento de ser mulher.

Quando virei mulher, eu compreendi que eu podia tentar resistir à imposição de ser mulher.

Quando eu consegui assumir minha sexualidade, e ir atrás de vivê-la satisfatoriamente, eu descobri que outras pessoas gostariam até das partes mais bizarras, das partes que eu detestava, do meu corpo de mulher. E eu aceitei que meu corpo não era nojento, errado ou deformado, através do desejo e do sexo e do olhar dos homens.

E quando eu entrei em paz com minha sexualidade, eu consegui fazer amizades tranqüilas e honestas e profundas com outras mulheres, e eu descobri que muitas delas também se revoltavam contra o sofrimento de ser mulher; e eu descobri que eu podia lutar contra cada pequeno pedaço do modelo de mulher.

Depois disso, quando eu deixei meus pêlos crescerem, e eu senti o triunfo de voltar a ter patas de fera, os homens vieram atrás de mim me dizer o quanto eles me admiravam na minha coragem como mulher; e eu não consegui dizer a eles que pouco me interessava ser julgada como mulher.

Quando eu encontrei outra pessoa como eu, e brinquei com ela sentindo que nenhum de nós era homem e nenhuma era mulher, eu me dei conta de que eu nunca estava realmente feliz enquanto eu fosse reconhecide como mulher. Mulher era uma prisão, uma corrente que me atava. A liberdade era a fera, a resistência, e o nada.



Quando nasci, eu olhei para o mundo com meus olhos que não eram nem de homem nem de mulher.

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Viagens

Os dias passaram e afinal era hora de partir. Yakti amarrou os cadarços de sua nova bota de viagem. Seus pés estavam maiores, suas pernas, mais compridas. Yakti se perguntava se isso seria uma vantagem ou desvantagem, em suas viagens. A última excursão parecia uma lembrança de tempos distantes. E tinha sido fantástica! Mas será que a próxima seria igual? Esse sentimento de inadequação, de nunca ser o que as pessoas esperavam, Yakti não sabia mais se era só porque sua vocação mesmo era estar em viagem, e a cidade é que era inadequada, ou se o problema era só que Yakti nunca ia ser o que as pessoas esperavam e pronto.

Pelo menos uma coisa era certa: que a escola e a família e os colegas iam todos ficar para trás por algumas semanas, e com eles boa parte dos seus problemas. E dessa vez, quando voltasse, Yakti ia escolher melhor o que contar e o que não contar no primeiro dia de aula. Talvez, se suas viagens parecessem menos impressionantes, as outras pessoas ficassem mais impressionadas (em vez de descartá-las como invencionisse e pronto). Yakti também tivera tempo pra entender que as pessoas não ficam muito impressionadas com coisas como tipos diferentes de insetos, ou detalhes do dia-a-dia das pessoas, essas coisas pequenas que tendiam a chamar sua atenção. Pelo menos os costumes escatológicos faziam algum sucesso entre as crianças. Tinha feito um certo sucesso sua história sobre as pessoas que tinham um cômodo inteiro da casa só pra fazer xixi.

Coralaimon estava esperando já na Sala de Leitura. Do lado das poltronas estava um carrinho coberto de livros amassados, rasgados, ou descorados, que Coralaimon estava examinando com uma lupa. "Alguns desses até poderiam ser restaurados", disse ele, "mas depois do sucesso que foi a última expedição, achei que podíamos nos dar a liberdade de repôr todos eles. Estes daqui todos devem poder ser comprados em livrarias fáceis de encontrar" - ele apontou para uma pilha de livros de bolso, que pareciam ter desmanchado de tanto uso. "O problema mesmo são estes aqui."

Coralaimon indicou vagamemte toda a prateleira de baixo do carrinho, onde havia dezenas de livros desorganizados. "A enchente danificou toda a seção", resmungou Coralaimon, muito frustrado. Yakti lembrava bem dessa enchente, estivera nela tentando salvar os livros raros do porão, alguns deles possivelmente insubstituíveis (e pensando bem, talvez o porão não fosse o lugar mais próprio para guardar livros raros). Mas algumas salas do nível térreo também tinham ficado alagadas, e todo mundo demorara demais para perceber. Esses livros eram de uma dessas salas, uma sessão de literatura fantástica que Yakti ainda não tinha explorado o suficiente. "O problema é que o único portal para o universo de alguns destes livros também está nesta pilha. É um daqueles gêneros onde há dezenas de livros dentro de livros dentro de livros, você sabe", Coralaimon fez uma expressão de cansada que Yakti tinha aprendido a interpretar da seguinte forma: esse assunto é muito cansativo, e nada me daria mais prazer que lidar com ele eu mesmo, quando eu era jovem. Coralaimon tinha dessas, de fingir que não gostava das coisas que gostava, até a hora em que você descobria os diários de aventura de quando Coralaimon saía em viagens procurando volumes perdidos.

"Enfim", falou Coralaimon, puxando uma caixa com seis ou sete livros de cima da mesa de centro. "É um pouco difícil de determinar para alguns deles, mas com toda a nossa pesquisa, eu acho que estes vão servir de pontos de partida para achar os outros... se não... Bom, com sorte vamos ter restaurado o suficiente alguns destes para que pelo menos fiquem legíveis."

"Certo", disse Yakti, pegando a caixa e sentando na poltrona. Os livros eram de tamanhos e estilos diferentes. Um deles era aparentemente um guia de viagem real. Dentro de cada um deles havia uma lista com títulos de outros livros, com a letra tortuosa de Coralaimon. Ao lado de alguns títulos havia notas sobre onde procurar. "Posso escolher qualquer um deles, então? E só seguir esta lista?"

Coralaimon assentiu, e Yakti rapidamente escolheu um pequeno romance reencadernado em couro. O livro continha ilustrações, e uma delas era de uma enorme biblioteca cheia de artefatos misteriosos. Yakti suspeitava que seus colegas não ficariam nada impressionados com sua opção de viajar para mais uma biblioteca, mas, por outro lado, era a opção perfeita para a primeira viagem. Um aquecimento, por assim dizer. A lista de livros (Yakti imaginava que estariam todos nessa outra biblioteca) ocupava a frente e o verso de uma folha, que Yakti dobrou três vezes para caber no bolso. Então Yakti começou a ler, e em alguns minutos de leitura, se transportou para dentro do livro.

quinta-feira, 22 de março de 2018

Desgaste

Mas estas nossas conversas sempre me desgastam tanto
fico repensando
remoendo
é difícil diferir
difícil ser
se definir em fronteiras
existir como ente

Me sinto esgarçado
desconectado de tudo o que importa
incapaz de amor ou paixão
mas ainda capaz de emoções passageiras

que as emoções peguem carona em mim
que eu as leve de um lado para outro
essa idéia me apraz
mesmo que eu nada forneça
minha fornalha move a maria fumaça
meu fogo apenas consome

que eu seja forja
me tragam metais e os esquentem em mim
que não sou fonte
nem preciso ser

fogo cozinha também
que eu seja forno
que torna as coisas comestíveis
palatáveis
e reconfortantes

essas conversas me desgastam porque eu sigo tentando enxergar tudo por todos os lados
eu coliseu
fazendo o jogo entre todos os papéis
não quero defender ninguém
mas tanto mêdo de te perder
tanto mêdo de te perder
tanto mêdo
tanto

de te perder como já perdi tanta gente

me desgastam porque toda conversa agora a gente tem que entrar como si mesmo
acabou o anonimato
e usar a máscara de Eu faz com que ela comece a desalinhar
tudo o que se usa muito acaba desgastando

seria mais fácil ser Eu como conceito abstrato guardado na estante
como livros bem-conservados porque nunca são lidos
mas ficar levando e usando de todos esses modos
a coisa acabada degenerando
depois de alguns anos, a foto 3x4 está tão apagada aue poderia ser qualquer um
e a película na qual o nome impresso já descascou quase toda
e fica um pouco de vergonha de tentar renovar o documento
será que ainda tenho direito? ou já passou tempo demais, e perdi a vag

terça-feira, 20 de março de 2018

Doesn't fit

We stretch a little and notice we don't quite fit

We stand
as a toddler
in the crib
(quite annoyed)
trying to figure out how to get down and go to the adult's bed

Our clothes, our beds, our shoes
too small
we shed
painfully
Our mothers at our favourite coat: take it off, it doesn't fit!

And at the family lunch
we don't fit at the adults' table, so we sit
with our cousins and siblings
in tiny kid-sized chairs
unconfortably

At the soccer game we can hardly breath
we want so hard to win
a sports bra from the year before is suffocating me

We take it all off

We stand
before so many closets
full of clothes that don't fit

Before a party
trying so many cute dresses
each more hideous than the one before it
none fit.
And we just want to fit in so badly
but I don't know where we fit in
or what to fit in as

So we try
dresses and suits and coats and shirts
we despair
we take it all off

we stumble through life
changing ill-fitting costumes
(such time wasted in changing rooms)
always inappropriate
sometimes naked
towards a final box
made to the measure of our bodies
where we don't quite fit.

---

A gente se estica um pouco e nota que já não cabe

De pé
criança
no berço
(incomodada)
tentando decidir como sair dali e chegar na cama dos adultos

as roupas, as camas, sapatos,
pequenos,
perdemos
com sofrência
A mãe pra blusa favorita: tira isso, não te cabe!

E no almoço de família
A gente não cabe na mesa dos adultos
então senta
com os primos e irmãos
nas cadeiras pequenas da mesa das crianças
desconfortavel.

E no futebol mal dá pra respirar
a gente quer tanto ganhar
mas o top comprado ano passado tá sufocando

Tira essa merda toda

A gente fica parado
na frente de tanto armário
que não serve.
No dia da festa
experimentando tanto vestido bonito
cada um mais horroroso que o outro
nada serve.
E a gente quer tanto se encaixar
sem saber onde é que a gente entra
muito menos
como o quê.

Então fica experimentando vestido
calça terno blusa camisa chapéu sapato
nada cabe
a gente chora
nu

A gente vaga pela festa
se trocando
mas nada nunca serve
(tanto tempo desperdiçado na frente do espelho)
sempre destoante
às vezes nu
pra chegar na última caixa
feita na medida do nosso corpo
que não cabe.

Tempestade

Tenho escrito uns poeminhas, não sei bem se estou feliz com eles nem o que fazer deles, acho que vou deixar aqui.
Segue

---

Uma tempestade
cai a luz com estrondo
e árvores
dentro de casa
lá fora o furacão
janelas cerradas ar abafado
calor parado
silêncio, perante barulho
sozinhos
fora do ar
no escuro.

Opção
abrir -- lá fora respirar
o ar tempestuoso
rir--correr--molhar-se--friagem
(que a idade)
(e também, pra quê?)
e aqui
aconchego na cama e
quem sabe silêncio e
pensar.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Fingir por um instante que estamos em 2003

Derp, eu escrevi esse título pq queria escrever como se fosse o LiveJournal, mas sem perceber o título é exatamente uma descrição do que eu quero falar sobre. Daquilo sobre o que eu quero falar. Isso.

Eu tenho perguntado pros meus amigos se isso é normal. Tenho feito muito isso. Acho que é importante fazer e eu passei os primeiros 25 anos da minha vida praticamente nunca perguntando, e simplesmente supondo ou que eu sou a pessoa difirentona ou que eu sou perfeitamente normal.

Mais ou menos assim:
"Ah, nossa, eu gosto de escrever histórias sangrentas e cheias de gente morrendo e sofrendo, ninguém nunca vai entender por que eu faço isso, todo mundo vai me odiar se ficar sabendo que eu escrevo histórias darks tarde da noite"
"Poxa vida, eu sinto tanta dor antes de dormir, será que todos os adolescentes e jovens adultos sentem dor desse jeito? Provavelmente né, não é como se tivesse algo que eu pudesse fazer a respeito..."

Enfim minha adolescência foi muito besta porque por um lado eu me achava super ~outsider~ por fazer coisas que tipo metade dos adolescentes fazem, e ao mesmo tempo sofrendo pacas com coisas que não são normais e que eu deveria ter ido num médico resolver, e pensando bem acho que é assim com todo mundo porque a gente não se conversa direito.

A coisa da vez é que eu sinto que é meio que um absurdo que eu esteja aqui, agora. Eu fico confuso a respeito de em que ano estou. Meus amigos acharam um pouco bizarro quando descrevi as coisas nesses termos, mas não sei em que outros termos descrever. Eu tenho dificuldade de aceitar que eu esteja morando nesta casa e não na casa que eu morava antes. Ou na anterior. Ou na casa dos meus pais. Às vezes eu tenho uns sonhos como se estivesse em 2010, ou 2008, ou 2006, ou 2003. E é bizarro pensar nisso porque 2010 e 2008 parecem tão próximos em números mas foram tão completamente diferentes, e ao mesmo tempo eu nem sei dizer direito o que aconteceu nos últimos 7 anos. Os anos começaram a se fundir uns aos outros, e eu não consigo entender como. Tudo o que aconteceu parece misturado e ao mesmo tempo parece mentira. Como eu posso ter me afastado dos meus amigos do ginásio? Eu fico sonhando com eles, e às vezes eu acordo de manhã e penso que eu vou pra escola, e aí eu lembro que eu não vou pra escola faz mais de dez anos, e que o tempo que eu fui realmente próximo dessas pessoas foi mais curto do que o tempo que passou desde então. Às vezes o passado parece que foi hoje, ou que é amanhã, e às vezes parece que nunca aconteceu. Não pode ter acontecido. Principalmente tudo o que aconteceu depois desse passado. Eu não acredito que eu perdi a virgindade. Que eu aprendi a derivar. Que eu estou pagando as minhas próprias contas.

O pior de tudo é que parece que estou cada vez mais adulto. Cada vez mais eu meio que sei me comportar, e os problemas das vidas das pessoas parecem coisas que eu já lidei antes. Mas a enormidade de estar morando na minha própria casa, quer dizer, numa casa que eu estou pagando aluguel, junto com uma pessoa que eu conheci depois de grande já, isso não pára de me surpreender. Eu não consigo aceitar que eu pago as minhas próprias contas, que eu decido o destino da minha vida, que eu decidi sair da cidade e eu de fato saí. Ok que eu nunca teria conseguido sozinho, mas eu fiz. Eu que decidi. Eu não sei lidar com isso. Com a enormidade dessas decisões. Parece que eu cheguei no fim, ou no cume da vida: pronto, é isso, chegamos, eu sou uma pessoa adulta que paga suas contas, mora na sua casa, tem as suas coisas, toma suas decisões. O que mais tem pra conquistar na vida? Eu fico tendo impulsos de conquistar riqueza, dinheiro, conforto, mas no fundo acho que é só um desejo de conquistar mais coisas, de não estar aqui ainda, de não ter chegado.

E ao mesmo tempo eu me sinto tão dissociado disso. No começo eu queria jogar video-game todos os dias, pra saber que eu estava curtindo aquilo que eu gosto, que faz parte de mim. Faz meses que eu não jogo video-game. O impulso da novidade vai se perdendo, e eu vou me afogando debaixo de tudo isso, dessa constância, de estar na mesma casa faz um dia, dois dias, uma semana, uma vida. O tempo fica dilatado. Eu morei nesta casa desde sempre. Eu não consigo lembrar do tempo antes disso. Ou eu estou vivendo no passado. Eu perdi tanta coisa, e eu não consigo mais me lembrar de todos que eu perdi. E ao mesmo tempo eu não quero esquecer. E mais que isso, tenho mêdo de mudar, porque depois da mudança sei que o passado vai ser mais uma coisa confusa, que não vou conseguir deixar pra trás, mais umas casa que eu não vou conseguir aceitar que não moro mais, mais uma lembrança que vai parecer que foi hoje, ou amanhã, uma coisa encrustrada que não vai sair e que eu vou ter mêdo de esquecer, até o ponto em que eu vou duvidar das minhas próprias memórias, e não vou conseguir lidar com o quanto eu vou ter esquecido. Mais uma cidade que eu não vou reconhecer direito do quanto vai ter mudado. Eu tenho mêdo de me apegar a pessoas novas porque parece que isso sempre vem com esquecer pessoas antigas, ou que vai ser uma amizade fulgaz, e aí eu vou esquecer essas pessoas.

Às vezes é tão ruim. Às vezes eu não consigo sair de casa e não consigo dormir, e não consigo comer, e tudo vai se embolando. E existem dias bons, dias em que parece que há coisas novas, que existe um futuro, que a vida não é só um presente estático num mar de passado wibbly-wobbly timey-wimey. Que existe uma ordem na qual o futuro vem depois do passado. Só que é tão fulgaz. Tudo acaba, e parece que nunca vai continuar, que nunca vai se encaixar numa trama que faça sentido. Eu não consigo nem escrever direito. Tudo parece tão fútil. Não é como se existisse sucesso.

Pelo menos em 2003 eu conseguia sonhar com um futuro. Agora que estou nele, não, agora que estou muito depois dele, não sei o que fazer a respeito.