sexta-feira, 28 de setembro de 2007

A Morte de uma História, a Lenda de Black Bellamy e a Mulher dos Ossos - parte 1

Este texto é dedicado ao meu maninho Ugo.



Foi uma sucessão de coisas, naturalmente. Quando eu era pequena, vovó reunia os netos para contar fábulas e contos de fadas que ensinavam pequenos segredos da vida. Quando viajávamos, minha prima inventava histórias alegres balançando na rede da varanda. Quando minha prima parou de contar histórias, achei que deveria assumir seu papel, inventando aventuras de pequenos animais para minhas primas menores. Mesmo quando minhas primas pararam de ouvir minhas histórias, ou eu deixei de querer que ouvissem, meus amigos-irmãos da escola às vezes pediam que eu lhes narrasse alguma coisa; e eu tentava contar-lhes as mesmas passagens fantásticas que vivia a contar para mim mesma. Mais tarde, quando nós nos afastamos, me reaproximei das histórias inventando-as em conjunto com meu atual namorado. Porém, quando, sexta-feira passada, meu maninho pediu que eu contasse uma história, me embaralhei, insegura, e comecei a contar uma história errada, e acabei me calando sem contar coisa alguma. Mas cheguei em casa ligeiramente envergonhada, e durante este última semana não paro de pensar nisso.

Sobre muitas coisas, é preciso dizer que os últimos poucos anos têm sido anos de nascimentos e mortes. Nascimentos e mortes, naturalmente, são indicativos de alguma mudança profunda no funcionamento das coisas. Como, digamos, rituais coletivos de amadurecimento. Não é possível esquecer que todas as árvores paulistanas nas quais subi e sobre as quais sonhei foram impiedosamente desfiguradas. Também paisagens internas, metafóricas, dentro de mim foram esquecidas ou transformadas, perdendo parte de suas características sem que houvesse com isso esclarecimento do seu significado. Em outras palavras, está se tornando cada vez mais difícil discernir a verdade.

E, afinal, quero falar do evento determinante que me trouxe até aqui neste momento.

Há mais ou menos dois dias, eu terminei de ler o último volume da famosíssma coleção das aventuras de Harry Potter. Deixando de lado minhas impressões específicas sobre esse livro (podemos discutir isso depois, né??), ler a última frase da última página do epílogo do último livro foi um choque muito grande, maior do que simplesmente acabar de ler uma história que passou anos se infiltrando nos meus pensamentos, nas minhas referências, na minha visão do mundo, por que foi um final surpreendentemente conclusivo (deixando de lado a incompletude das informações oferecidas pelo epílogo). Foi um daqueles finais que acendem, em uma pessoa como eu, o fogo e o ímpeto de buscar mais, criar mais, ler e compreender e continuar a história, e torná-la completa e infinita, e fundi-la a outras, e criar outras, e explodir e recriar como um peixe mil-bocas todo o universo imaginário que fervilha em algum lugar no fundo de nós. Levei horas assistindo o clarear do céu incapaz de adormecer; e quando adormeci, sonhei com mundos mágicos, e com ler novas e velhas histórias fantásticas; e quando acordei ainda estava passando e repassando em pensamento cada cena do livro, e recorri a ele várias vezes para tirar alguma dúvida, e resisti à vontade de ler de novo a coleção inteira, e não consegui sequer pensar em começar algum outro livro; e assim foi até o dia seguinte (ontem). Ontem foi um dia meio confuso, e lembro que antes de sair de casa, na hora do almoço, olhei para o livro e senti uma leve repulsa, como se estivesse olhando um cadáver ("dead body", no original). Finalmente, lá pelo final da tarde, enquanto Charles passava rapidamente de um site a outro no meu computador, olhei de soslaio para a estante de livros, por cima do cadáver de Harry Potter (que se tornara um ponto para o qual eu simplesmente parara de olhar), e vi, com um fulgor criativo já despertando no peito, um livro me chamar, com voz suave.

Algo chamara minha atenção quando eu lera as anotações de uma velha entrevista com minha avó. Vovó Celma era formada em diversos cursos de psicologia, e invadira diversas palestras pagas na sua inocência e vontade irrefreável de aprender mais e mais. Ela vinha de uma boa escola de Caratinga e de um infância acompanhando com um livro a Hora da Tia Chiquinha, programa educativo da rádio mineira. Seu pai ensinava os passarinhos a cantar. Quando perguntei quais filmes e livros haviam sido importante para ela, ela falara de O Nome da Rosa, Filhos do Paraíso, Sidarta, A Vida é Bela, O Sol é para Todos, Capitães da Areia, Memórias de um Médico e... ah, e ali está, o livro que sorria para mim da estante, o livro que uivava para mim, que eu distraidamente recebera de mamãe havia meses sem lembrar que, anos antes, vovó já me falara sobre ele, quando lembrava dos poucos livros, entre os muitos que já lera, que a haviam marcado profundamente. Mulheres que Correm com os Lobos.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Vamos Fugir?

É a vontade terrível de perseguir o que realmente vale a pena. Uma vela se inflando no meio do mar. Uma vela surgindo por trás de uma ilha; uma praia surgindo por trás de uma ilha. Vontade terrível de esvaziar os bolsos, de descobrir o que é que me prende à esta fraqueza e impotência. Me disseram uma vez que eu tinha o poder para conquistar o mundo... Eu não sorri. Será que não acreditei?
Fiz planos, sabe?
Sairia todos os dias, até um dia não poder voltar. O tipo de coisa que não se planeja, se faz. Minha falta de portifólio me incomoda, mas eu não penso em reclamar. Penso naquele trampo que não fui garimpar. Pensar me perturba. Às vezes sento na cama e leio, leio até que seja tarde demais. O objetivo é justamente cometer erros, para que eu me declare estúpida mais tarde. Não é realmente estupidez. Não é sequer preguiça. É pura e simples falta de interesse. Às vezes me imagino terminando a faculdade e acho engraçado, absurdo, até. Depois tento imaginar o que vai acontecer de verdade. E me assusto. Não sei se o que me assusta mais é a possibilidade de o absurdo se concretizar, ou o fato de eu não ter a menor idéia de o que mais poderia acontecer. Acho que toda essa questão de nunca ter realmente pensado no futuro está pegando agora. Crescer às vezes pode ser parecido com amnésia.

Minha pergunta atual é quanto vale a minha bicicleta. Se eu sair em viagem com ela, e no meio do caminho me encher o saco, por quanto posso vendê-la para algum desconhecido no cominho? É uma pergunta idiota, mas fico pensando nela por bastante tempo. Nunca tive muita referência das coisas. Por enquanto, pelo menos, sobrevivo me aproveitando das opiniões dos outros. Por exemplo, quando me perguntam se eu bebo, digo que meus amigos não bebem. Depois peço um gole da sua cerveja. Penso comigo mesmo de que não vale a pena se enfiar na fila pra conseguir uma só pra mim. Afinal, eu quase nunca bebo. Mas as pessoas olham para mim com uma cara estranha, como se me considerassem ainda menor do que já sou. Ou será que eu é que não percebo como sou pequena? Olhar para o azul do céu já não resolve nada, e está ficando cada vez mais difícil encontrar o que eu sou. Eu decidi o que quero, e é muito maior do que eu imaginava: quero viver de modo a me orgulhar de mim, e que quando eu tiver filhos ou netos eu tenha histórias boas para lhes contar. Uma delas será a de meu bisavô, que se tornou famoso numa cidadezinha ensinando passarinhos a cantar (ou ao menos foi isso que minha avó me contou). Também posso contar histórias da minha família e de meus amigos. Mas eu quero mais que isso: Quero realmente conhecer.

Acho que vivi muito menos do que pretendia... Eu sonhava, quando menor, poder dizer aos mais velhos que eu era mais jovem mas vivera mais; porém agora sinto que vivi muito menos do que muitas pessoas mais jovens. Os obstáculos no caminho -- principalmente minha mãe -- me fizeram abandonar as coisas simples, e eu nunca cheguei a arriscar-me nas grandes empreitadas. Agora me sinto velha demais para me transformar em qualquer coisa que eu queira, como se fosse uma massinha boa que foi guardada por tempo demais, à espera de algo que merecesse seu uso, e endureceu. Como um vestido de casamento de quem nunca encontrou seu par.
Sobre as massinhas velhas, admito que ainda podem ser usadas: com um pouco de fogo se pode amolecê-las, para então rapidamente modulá-las antes que endureçam outra vez. Também os vestidos velhos podem ser usados, também os idosos se casam -- embora eu me pergunte se o casamento de um idoso é tão valioso quanto o de um jovem. Penso naqueles tempo e lugares em que uma moça de vinte anos teria dificuldade em arranjar marido; mas hoje em dia, é claro, tudo é possível. Também é possível sorrir e não temer o futuro; mas também é possível perder-se diante do futuro. Às vezes paro e pergunto, Meu Deus, o que está acontecendo? Algumas respostas são muito difíceis de achar. Outras estão bem debaixo dos nossos olhos, tão óbvias que temos vergonha de olhar para elas. Penso no pássaro Róque sobrevoando um navio de velas negras que nunca existiu. Penso em todas as vezes em que temos mêdo de coisas que não deveriam, segundo a lógica vigente, existir.

Acabei de distraindo com uma pequena formiga que passeou pela tela, às vezes se confundindo com as letras deste texto. Me veio à cabeça Mário Quintana: "Para quê? se por ali já havia passado todo o frêmito e o mistério da vida...". Vou seguir a sabedoria do poeta. Parece que nada me resta a dizer.