terça-feira, 4 de junho de 2013

Ser Homem

O quanto da minha vida foi determinado por eu ser mulher?

Sabe, esta é uma questão pra mim. O que eu seria se eu fosse homem? Essa questão não é fácil de responder. Mas, bem, olha o meu irmão. Ele é um cara legal, e talvez ele seja feminista (eu nunca conversei com ele a respeito disso), mas, é diferente. Tudo é diferente.

Eu às vezes me pego pensando em mim mesma como uma versão gender-bended do meu irmão. Eu acho que "se eu fosse homem", eu seria forte como ele, rápido e ágil como ele. Eu sempre tentei acompanhá-lo, eu sempre corri com ele como se fôssemos iguais. Meu irmão foi uma das pouquíssimas pessoas na minha vida que sempre me tratou como se eu fosse igual a ele, mesmo sendo menina. Eu tenho algumas dificuldades com meu irmão, mas isso eu devo a ele: ele nunca achou que eu ser menina fosse desculpa para não correr, não lutar, não subir em árvore, não fazer barra, não entrar no campeonato de video-game ou na competição de bebida. Meu irmão nunca me mandou parar, e sempre ficou realmente decepcionado quando eu deixava de fazer alguma dessas coisas com ele. Acho que é por isso que me perturba (e fere) tanto quando meu irmão me trata como menina ou mulher. Na maior parte do tempo, parece que nossa relação teria sido exatamente igual se eu fosse homem.

Entretanto, meu irmão é a exceção. O resto do mundo me tratou de formas muito diferentes apenas porque eu era menina (mesmo antes de isso fazer qualquer diferença razoável). Eu acho que nossa relação de irmãos teria sido muito diferente porque eu teria participado de eventos que eram proibidos pra mim --- viagens com meu tio machão e os primos, andar de lancha na tempestade, ou simplesmente fazer alguns exercícios ---, porque meus primos teriam visto a minha força em vez de ver apenas minha fofura, porque eu conseguiria acompenhar mais de perto as capacidades físicas do meu irmão, mesmo se eu não fosse tão forte quanto ele.

Talvez o mundo fosse menos contraditório se eu fosse um garoto. E menos ofensivo. Sabe, quando eu era pequena, eu não entendia que eu não era um menino, que eu era diferente do meu irmão --- até porque nós éramos iguais: minha mãe sempre contou a história das pessoas que passavam e perguntavam "são gêmeos ou gêmeas?". Eu gostava de jogar bola, de lutinha e de salvar o mundo, e minha irmã gostava disso também e nunca foi um problema. Mas eu entendia perfeitamente bem que quando um moleque dizia que alguma coisa era "de menina", que alguém fazia alguma coisa "como uma menina", ou que alguém era "uma menininha", isso era apenas uma ofensa. Chamar alguém de "menina" era sempre um insulto. Então eu não queria, de forma nenhuma, ser uma menina. Minha mãe não entendia isso, nem as tias e as professoras e os professores e as outras crianças, nenhuma delas podia ver que quando me chamavam de "menina", "mocinha", "garotinha", eu tomava aquilo como um insulto.
Enquanto as pessoas me vissem como uma menina, eu estava perdendo. Eu precisava ser forte. Eu precisava ser mais forte do que todos os meninos, pra mostrar que eu era um deles. Eu precisava não desistir nunca, porque desistir significava ser inferior para sempre. Na minha imaginação, eu era uma heroína, uma figura mítica que se transformava em lobos e panteras, que era a maior guerreira do mundo (eu tinha um amigo que era o Rei e um amigo que era um Mago, mas nenhum deles era tão forte quanto eu), que era a líder de um time de esportes marciais com bola, eu freqüentemente salvava meus amigos de perigos terríveis e ora salvava ora enfrentava os garotos por quem eu me interessava, e eu atravessava o mundo num cavalo tão rápido que ele cavalgava sobre as águas,e em algumas histórias eu tinha até uma contra-parte masculina. Minhas histórias eram cheios de personagens masculinos fortes e impressionante, mas todos eles me respeitavam porque eu era mais forte e experiente que eles.

Não ajudou em nada o fato de que, aos cinco anos, enquanto eu queria ser um dos meninos e estava fazendo de tudo para não ser "maricas" nem "menininha", enquanto minha irmã e minha prima faziam sugestões absurda de que eu, sendo uma "menina", estava apaixonada pelo meu amiguinho, enquanto os adultos me chamavam de "fofinha" e "gracinha" e "menina linda" sem nem suspeitar que o que eu queria mesmo era respeito (e, sério, não era difícil ver isso das atitudes que eu tinha), quando eu tinha cinco anos de idade um homem, um adulto retardado, funcionário na escola em que eu estava aprendendo a escrever e multiplicar por 10, me levou, talvez duas ou cinco vezes, para o quarto de brinquedos e me fez pôr a mão numa linguiça quente e suja que ele tinha no bolso.
Eu digo isso assim com todas as palavras porque foi isso que aconteceu. Talvez esse homem tenha me feito acariciar o pênis dele, ou pior. Outras mulheres que conheço talvez tenham histórias piores de abuso durante a infância. Eu me sinto mal por trazer um assunto "pesado" à tona num texto que deveria ser simplesmente sobre a criação de meninos e meninas --- mas, inevitavelmente, não sei exatamente quanto tempo depois, eu cheguei à conclusão de que aquilo aconteceu porque eu era menina. Não aconteceu com meus amigos, meus companheiros de viagens espaciais e aventuras na selva. Aconteceu com uma outra menina (não sei bem quando eu fiquei sabendo disso), uma que, para a minha sorte, gritou, deu o alarme, permitiu que a preocupação da minha mãe com meu comportamento nos levasse a um psicólogo e, com alguma ajuda de professora e avó e mãe (figuras maternas ou figuras femininas não sei), eu contasse o que aconteceu e digerisse de alguma forma toda a experiência. Qualquer religião que eu tivesse não tinha sequer uma tentativa de ajudar. Os livros, as histórias não falam de abusos com garotinhas. Eu fiz o que pude: me tornei um herói e um animal selvagem, uma força da natureza, uma guerreira, uma fera selvagem, assassina. O mundo das minhas histórias era cheio de sangue e violência. De alguma forma minha relação com o mundo exterior, nas minhas memórias, não mudou muito em caráter, apenas em intensidade, já que meu interesse em interagir com o mundo lá fora ficou muito menor, ainda mais depois que eu mudei de escola e perdi todos os amigos e professoras. No mundo lá fora eu tinha meninos que tiravam sarro de mim, professores que me insultavam, pais que tinham mêdo de que eu ficasse louca, e umas meninas que faziam "coisas de menina" e aparentemente achavam isso legal, o que para mim era totalmente incompreensível.

Na minha cabeça eu não era tanto uma menina quanto um animal selvagem --- acho digno de nota que o animal que eu escolhia era em geral um lobo ou uma pantera, que praticamente não tem dimorfismo sexual, ou uma leõa, que é um animal que caça e organiza o bando enquanto o macho é paparicado e embelezado. Eu era fã de Raksha, a Demônia, a mãe-loba do Mogli, porque ela enfrentava o Shere-Khan (e na minha cabeça ela é que tinha enfrentado cinco oponentes para escolher o macho que ela queria), e eu era fã de Buck, o canzarrão de Jack London que se tornava o líder de todos os lobos. Eu me esforçava para ser forte, eu subia nas árvores mais altas, eu corria, eu escalava todas as pedras e me metia no meio do mato sempre que eu podia, porque o mundo humano era feito para maricas, mas eu não era apenas uma criança, eu era uma fera, e eu tinha vivido mais do que os adultos podiam imaginar, e algum dia eles iam ser pegos de surpresa por mim. Eu ia provar que eu não era uma menina, que ninguém podia abusar de mim. Nessa época eu também odiava a única parte decididamente feminina do meu corpo, passava horas puxando e deformando meus lábios, não sei bem se tentando esconder a vagina ou se tentando modelar uma espécie de pênis com o que eu tinha à mão.

Enquanto isso nas aulas de educação física os professores não queriam que eu jogasse bola com os meninos, e eu era obrigada a jogar queimada ou brincar de elástico com as meninas, que para mim eram criaturas alienígenas. Pior que isso, nas aulas em que os meninos faziam flexão eu tinha que fazer "flexão de menina", algo que eu achava desagradável e humilhante. E "barra de menina", que sequer era um exercício para os braços, e sim uma prova de paciência: o desfio era ficar pendurado na barra, sem ter que se mexer, ou levantando os joelhos, pelo máximo de tempo. Naquela época, eu e mais algumas meninas conseguíamos fazer barras e flexões tão bem quanto alguns dos meninos; essas prova eram só uma espécie de humilhação e insulto especial. Depois de introjetar muito bem que fazer qualquer coisa "como uma menina" era uma vergonha, eu era obrigada a fazer esportes "como uma menina". Meus professores estavam me xingando na minha cara, e eu tinha que aceitar, calada, afinal, eu era, mesmo, "uma menina". Minha auto-confiança foi destruída, e eu passei a vida duvidando de tudo o que eu fazia, pensava e dizia.

Eu tinha pouquíssima experiência e empatia com meninas. Eu não mencionei nenhuma atividade "feminina" até agora porque para mim elas não existiam. Na verdade, nós brincávamos de casinha e boneca junto com comandos em ação, junto com meu irmão, e tinha também as coisas que minha prima trazia, por exemplo a brincadeira de desfile da "pakalolo" que fazíamos inventando formas de enrolar toalhas e lençóis, a brincadeira das fadas que vinham de outro mundo contar histórias (minha prima e minha irmã eram muito criativas), brincar de sereia, brincar de comida --- eu gostava dessas brincadeiras, mas por algum motivo eu não dava importância a elas. Acho que o fato de que nunca tinha meninos por perto quando brincávamos de pakalolo ajudava, pois eu podia baixar a guarda, e ao mesmo tempo eu lembro que se a brincadeira começava a derivar pra maquiagens e outras coisas mais "de menina", eu fugia.
Eu tinha amigas meninas na escola (eu não tinha amigos porque eu era incapaz de entender por que os meninos da escola me enchiam tanto o saco), mas pra falar a verdade eu não tinha amizades de verdade, na maior parte do tempo. A maior parte das meninas falava uma língüa que eu mal conseguia entender, até uns 12 anos de idade. Felizmente eu encontrei algumas meninas que se pareciam comigo, que detestavam coisas "de menina" e com quem eu podia jogar bola, andar de bike, e tentar, de alguma forma, procurar uma forma de lidar com toda a humilhação que era ser menina quando a coisa certa a se ser era claramente menino.
Assim, durante a pré-adolescência, quando eu estava começando a fazer amizade com garotos e gente tão deslocada quanto eu, nós descobrimos o paganismo, Brumas de Avalon, bruxas e toda uma mitologia na qual as mulheres eram o centro, na qual cada mulher era uma encarnação da Deusa. Encarar o feminino como divino ajudou muito a sobreviver à adolescência (assim como todas aquelas histórias de heroína e lobos e tudo o mais). E sobreviver à adolescência, previsivelmente, foi o tipo de desafio que requeria ajuda.

Na adolescência meu corpo começou a mostrar que eu era mulher através de peitos e pernas grossas, tudo o que eu nunca quis ter, não tanto porque era coisa de mulher mas mais porque minha irmã não tinha e eu queria ser igual a ela --- mas a mitologia da mulher-deusa me fez aceitar esse corpo como símbolo do meu poder, e cultivá-lo e amá-lo, e eu aos poucos parei de tentar me machucar. Simultaneamente, eu desenvolvi todos os pêlos do mundo, o que eu imediatamente achei o máximo porque me deixava mais parecida com um lôbo (além do mais, minha melhor amiga também era peluda). Por outro lado, eu parei de crescer, desenvolvi problemas do joelho e na coluna que me causavam dor toda vez que eu jogava bola, e rapidamente os meninos começaram a ficar mil vezes melhores que eu em tudo o que eu valorizava. Minhas "amigas" que gostavam de coisas de menina começaram a falar de garotos e romance, meus amigos começaram a se interessar por mim (o que eu detestava), e minha mãe decidiu que eu tinha que fazer todo tipo de coisa agora que eu era "mocinha".
Eu até me divertia com os vestidos de festa e maquiagem que uma amiga de mamãe fazia em mim para os casamentos e afins; mas logo depois começou a tortura de depilação, descoloração, desodorante feminino, e cada vez mais pessoas reclamando do jeito como eu me vestia, das roupas velhas, feias, furadas --- em pouco tempo eu entendi que eu não podia ter pêlos, nem cicatrizes, nem machucados nem furos nas roupas, porque tudo isso era coisa de homem, era coisa que era legal no meu irmão, mas em mim era feio. Mas, como eu disse antes, eu não conseguia entender do fundo do coração que eu era "menina" e que para mim "coisa de menina" era bom e que eu e meu irmão tínhamos que ser diferentes, eu queria as mesmas coisas que ele, eu queria ter cicatrizes legais, eu queria ser foda, eu queria me arriscar e me machucar e disputar a bola e rasgar os joelhos das calças porque isso tudo é sinal de que você tem garra. Então eu não só era chamada de "menina" como ainda levava bronca por fazer tudo o que merecia "respeito", e ainda por cima quando eu estava com meu irmão, que ainda era o cara que me tratava como igual, eu mal conseguia acompanhá-lo. E aos poucos até meus amigos nerds e esquisitos começaram a me dar uma lavada em todas as nossas corridas e lutinhas e what-not. Eu tive que começar a admitir que eu não era mais um dos garotos, e comecei a desejar ser. Meu irmão, nessa época, tinha um melhor amigo super bacana, e eles começaram a conhecer meninas também. Eu tinha uma relação estranha com o amigo do meu irmão, ora ele era como um irmão, ora eu achava que ele me via como uma mulher.

Um dia meu irmão me viu como mulher. Eu sei disso, mas eu nunca falei sobre isso com ninguém, muito menos com ele. Foi uma traição, e eu nunca perdoei meu irmão. Essa parte, essa traição, isso nunca teria acontecido se eu fosse um homem.

Toda essa história foi anos antes de eu realmente me assumir como feminista. Foi anos antes de eu me assumir como qualquer coisa. Foi antes do colegial. A partir dos catorze anos minha vida emocional foi tão intensa que todas as outras questões pareceram menos importantes no momento. O que eu notei foi uma resistência, da deusa-lôba dentro de mim, a me machucar depilando as pernas, a se disfarçar com maquiagens que eu não sabia aplicar e que deixavam ridícula. E uma miríade de sonhos e fantasias, que foram se tornando mais diversos, incluindo romance e sexo e até mesmo filhos (eventualmente netos). Mas eu queria amar e eu aos dezoito decidi fechar o teatro, cancelar todas as aventuras, e viver a "vida real". Depois disso passei mais uns bons dois anos continuando a cometer erros e crimes contra as leis da deusa-lôba, e mais uns três ou quatro numa jornada de auto-conhecimento, que me trouxeram até aqui, nua, sem deusa, sem lôba, sem herói, sem nada além do meu corpo e da minha história, e das minhas convicções políticas. Hoje em dia eu consigo usar vestidos e saias sem me sentir ridícula. Recentemente eu aprendi que posso ter pernas peludas e que posso sair sem sutiã. Eu ainda tenho dificuldades com algumas coisas bestas --- ainda não gosto de ser menina, de ser fofinha, de que me chamem pelo meu nome. Hoje em dia eu sei que eu não sou um homem, que eu jamais poderia ser homem. Por outro lado, eu não tenho mais a menor idéia do que significa ser mulher --- se eu aceitar que eu sou mulher, eu sinto que eu estou dissolvendo completamente o conceito de mulher. Ou talvez essa seja a forma de lidar com a raiva. Talvez eu só queira ser uma mulher masculina e pronto.

Voltando à pergunta: eu seria feminista se eu fosse homem? Bem, eu sei que eu sou feminista não exatamente porque eu sou mulher mas porque eu fui uma menina que queria em primeiro lugar ser um bicho, ou um garoto. Como seria a narrativa acima se eu tivesse nascido com um pintinho? Eu não teria a raiva, a insegurança, os insultos, a convicção de que o mundo estava sendo injusto comigo ao me taxar de menina... Eu acho que se eu tivesse nascido menino, eu teria me encaixado, vivido as aventuras, acompanhado os garotos. Eu não teria sofrido abuso, meu irmão e meus amigos nunca teriam deixado de me ver como um dos caras, eu não teria a pressão para entender o mundo das meninas, nem pra sofrer na mesa de depilação. Minhas calças teriam bolsos! Eu acho que se eu tivesse nascido menino eu simplesmente me sentiria mais encaixado no mundo, e teria menos motivação interna pra ser feminista.

É claro que eu poderia ser feminista mesmo assim. Mas sinto que todos os motivos pessoais que me levaram ao feminismo não estariam mais lá. Eu ainda seria feminista por motivos políticos, provavelmente, mas pra falar a verdade eu não sei se eu teria tanta convicção numa bandeira que não falasse com a minha história de vida (e talvez, também, eu fosse um garoto babaca e auto-centrado que não conseguiria ver a necessidade do feminismo). Talvez com os anos e o esclarecimento eu começasse a querer usar saia ou pintar o cabelo ou beijar garotos ou alguma outra coisa que me jogasse no feminismo. Talvez a história fosse totalmente diferente do que eu imagino. Mas tudo isso é irrelevante, porque esta é a minha história, não a de uma pessoa que nunca existiu. E esta é a minha história. Na minha história eu sou ora uma guerreira, ora uma lôba, ora uma deusa, e na minha história eu sou feminista porquê eu fui menina.

Fim.