sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Sonho dahora

Hoje eu tive um daqueles sonhos animais que só acontecem quando a pessoa escritora dentro de mim resolve acordar e escrever meus sonhos. Obrigado, Ho-w.

Na primeira cena de que me lembro, eu e alguns amigs estávamos invadindo uma mega-mansão, dessas com salas do tamanho de duas casas, muitos quartos, tapetes, sofás enormes, TVs enormes e móveis de madeira maciça e tal, além de uma área externa fantástica, com varandas, cadeiras de sol, e uma piscina do tamanho de mais uma casa ou duas. Nós entramos quebrando as fechaduras e sem nenhuma preocupação com os alarmes, e exploramos o primeiro e o segundo andar (onde ficavam as suítes luxuosas com camas king-size e banheiros do tamaho do quarto) antes de decidirmos só nos jogarmos na piscina. Claro que o alarme começou a tocar, mas continuamos nadando e nos divertindo porque a água estava ótima. A piscina ficava do lado de um jardim lateral e depois dele tinha um portão gigantesco de grade, de onde dava pra ver a rua tranqüila. Eu entrei na cozinha pra pegar uma água ou algo assim e o telefone começou a tocar -- era a dona da casa, e ela logo percebeu que eu não era da família e chamou a políca.

Eu voltei pra piscina pra chamar a galera pra ir embora, mas a galera tava se divertindo demais. Eu dei mais um mergulho na piscina (eu queria atravessar a piscina por baixo dágua como sempre faço, mas no meio do pulo lembrei que estava com minhas roupas secas na mão e isso atrapalhou tudo), e a polícia chegou, vestida de verde e boné como no exército, correndo e gritando pra pegar a gente. Todos saímos correndo e fugindo da piscina - eu saí pelo fundo, correndo em direção ao portão, e consegui pular no portão e estava atravessando entre as grades, mas o cara que estava me perseguindo me pegou nessa hora. Aí tudo ficou diferente. O cara que estava me perseguindo, um policial todo bonito e gostoso e que já tinha perdido o boné, era um velho conhecido meu e em vez de me prender, ele deu um sorriso pra mim (wtf?), eu beijei ele na boca e perguntei o que ia rolar agora, ele me mandou segurar bem minhas mochilas e me puxou pelo braço, correndo tão rápido que eu literalmente não conseguia encostar no chão (essa coisa do bad-guy ser meu velho amigo e amante me lembra muito as histórias que eu inventava aos treze anos. Ho-w, vc não mudou em nada, gats).

Nessa parte acho que tinha dois "policiais" me puxando, e as mochilas que eu carregava tinham cada uma uma espada animal com uma bainha muito loca que tinha o mesmo padrão do cabo. Aconteceram umas coisas confusas, nós nos perdemos, quase perdi as mochilas várias vezes, acho que um doa policiais se perdeu tb, e o sonho foi ficando bizarro.

Aí eu estava procurando por um dos caras (n tenho certeza se eram ainda os "policiais") que tinha se perdido da gente, o Bryan, que era um cara bonitinho com rosto redondo e cabelo preto meio no rosto assim. E ele tinha superpoderes, mas n lembro quais. Eu fui pedir ajuda pro outro bróder (que talvez fosse o policial bonitão?) que (usem sua imaginação de anime aqui) era color-coded cinza, e tinha cabelos compridos e cinzas, ou talvez fossem grandes orelhas cinzas pq eu fico pensando nele como um coelho apesar de supostamente ser humano. Ele tava num lugar que era uma loja de quadrinhos ou antro nerd ou restaurante japonês com aquelas salinhas com mesas baixas e almofadas, e ele tinha uma vibe de Japão de modo geral. Eu pedi ajuda pra ele e passamos na frente de uma mesinha cheia de miniaturas e uma parecia um super-saiajin nível 3 Vegeta com aquele cabelo compridão cinza e eu perguntei "Isso aqui era pra ser você?" e ele meio que riu e deu de ombros pq era sim, mas fazer o quê.

Então ele disse que eu precisava ir conversar com aqueles cachorros vadios que estavam dormindo ao longo da calçada do outro lado da rua, e que pra me ajudar ele ia me dar os poderes dele (ôbaaa adoro quando me dão mais poderes!). Ele fez alguma coisa, acho que soprou na minha boca ou algo assim, e eu ganhei os poderes dele; mas também ganhei outras características dele, por isso agora eu precisava fumar um charuto estorado cujo gosto não parecia em nada com o de charutos ou coisas de fumar em geral.

Eu fiquei de quatro e galopei até os cachorros, que agora eu enxergava como se fossem pessoas, provavelmente pq eu tinha virado um cachorro. Andar de quatro ela confortável. Os cachorros estavam todos batendo papo uns com os outros e quando eu perguntei do Bryan eles falaram pra eu ir falar com aquele grupinho ali do lado, mais pro canto do grupo de cachorros; eu olhei pra lá e vi que tinha uma rodinha de meus amigos, Erica, Pizza, Iara, Renex, Lulão estavam lá, assim como um guri que parecia o Bryan! Eu corri até eles e batemos um papo, eles me perguntaram sobre o charuto e eu expliquei, mas o cara que parecia o Bryan na verdade era o Oka, ou o Cid, ou uma mistura dos dois. De qualquer forma OkaCid não era o Bryan, mas agora eu sabia que Bryan parecia o OkaCid.

Nessa hora eu acho que acordei e voltei a dormir, por isso o sonho não tem continuidade e eu esqueci um bom pedaço no qual eu lutava com pessoas e usava meus poderes lupinos e tal.

De repente nós estávamos numa escola (minha escola de primário) e precisávamos aprender os poderes, que eram sete, ou nove, algum número mágico assim. Um dos caras que tinham poderes era o cara cinza, inclusive. Mas eu tinha uma vantagem porque eu já tinha os meus poderes inatos de lobo (que é só uma coisa que eu tenho, não pergunte).
Só que os poderes eram muito diferentes do normal, eram mais poderes de invocação do que de transformação, que é mais normal. Por exemplo, quando estávamos no nosso bote que andava pelas ruas da cidade e uns caras do mal tentaram pegar a gente, eu invoquei uns lobinhos que pularam em cima deles. Quando o normal obviamente seria eu virar um lobão e pular em cima deles.

O primeiro professor que ia ensinar poderes pra gente era o do poder de eletrônica. Eu não sei por que tinha um poder de eletrônica, acho que porque eu passei os últimos dias completamente imerso em eletrônica (no mundo real, não no sonho). Então esse cara tinha o poder se invocar uns circuitos elétricos e uns robozinhos, que às vezes ficavam invisíveis quando ele meio que parava de invocar eles completamente. Ele quis fazer um teste com a turma e eu me voluntariei, e seguiu-se uma luta entre eu e ele, na qual ele criava e adaptava seus robozinhos voadores (eles tinham umas hélices na cabeça) e eu me defenda e atacava os robozinhos com aquela minha espada dahora e com meus dedos transformados em garras e com lobinhos invocados.

Eu não me lembro muito do final do sonho, mas acho que acordei antes do final da luta.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Rastro

Apenas três passos e nossas pegadas marcam a terra suavemente, perceptíveos e entretanto mal-definidas de forma que um perseguidor poderia nos rastrear e ao mesmo tempo sentimos que não tivemos efzito sobre a terra. Um cervo passa deixando pegadas forte e bem-definidas. Somos pequenos perante o cervo.

É sempre manhã, de modo que não sabemos medir o tempo. Nossas mãos se fecham no formato de ferramentas primitivas e armas, e nossas mentes se moldam da mesma forma.

Nós nos encontramos num terceiro espaço, espiritual e tátil, formado do toque suave entre nossas peles. Institivamente devoro-te. Nós nos reencontramos no sabor de nossas peles.

Nós nos tornamos os deuses do mundo, e o universo colapsa.





quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Roteiro pra zine [1]

Tema: roupas e estética de gênero.
Possivelmente usar fotos em preto e branco, talvez editadas. Evitar mostrar o rosto, e especialmente os olhos. Quero uma coisa fria e impessoal nas imags, e pessoal nas palavras.

[primeiro quadro]
Eu normalmente passo o dia em casa de bermuda e sem camisa. Ficar sem camisa me dá uma sensação de liberdade tremenda...
<imagem de eu deitade em algum lugar, da cintura pra baixo>

[quadro]
Uma sensação de posse sobre meu próprio corpo.
<imagem completa, mostrando o corpo todo, sem camisa, seios à mostra>
 É só assim que eu sinto que meu corpo é realmente meu, quando estou sozinho e meio nu.

[quadro]
No resto do tempo, meu corpo pertence aos olhares dos outros.

[quadro]
Hoje tava um calor desgraçado. Eu decidi vestir minha regata mais fresca.
<alguma imagem da paisagem, do sol, talvez com um pedaço de corpo, ainda sem rosto>

[quadro]
<Imagem da regata, mostrando as florzinjas e o decote>

[quadro]
As florzinhas não são muito grandes.
Nem o decote.
Eu decidi que não vou deixar isso escolher por mim o que eu visto
Mas eu visto sabendo...
<neste e o próximo sequência de vestir a regata>

[quadro]
"Hoje vão me chamar de mulher".

-- aqui deve mudar a página
[abre com um quadrinho de oz andando pelas ruas do centro, de boas]
[quadrinhos com falas, representando as cenas]
- bom dia, a senhora já foi atendida?
- me apresenta pra sua amiga!
- você é veterana...
- ela é aluna...
- a senhorita...

[quadro]
Não é uma mágica que a florzinha faz. É o contrário.
<continua imagens de oz na rua>
A minha mágica é que se quebra

[quadro]
Normalmente eu ando na rua disfarçado de eu mesmo. Uma máscara frágil, ou um feitiço de revelação. 
<acho que aqui seria legal ter uma imagem bem cisnormativa, sem peitos>

[quadro]
As crianças sempre vêem o meu eu verdadeiro.
<imagem de eu com casaco élfico e criancinha gritando algo como "oi menino"! Outras imagens semelhantes talvez'>

[quadro]
<não sei como ilustrar esse quadro, talvez algo focado em detalhezinhos>

Mas basta

Uma sugestão

Uma

Florzinha

[quadro]
<imagem análoga àquela cisnormativa, mas dessa vez realçando seios, quadril e afins. Seria legal essas duas imagens serem desenhos num estilo diferente>

--- tenho alternativas para o final
--- alternative 1
[quadro]
<em preto>
Hoje vão me chamar de mulher.

--- alternativa 2
[quadro]
<chegando em casa, com a blusinha>

[quadro]
<tirando a blusinha>

[quadro]
<se jogando no sofá, corta na barriga, análogo ao começo>

--- alternativa 3
[quadro]
<outra imagem sem peitos, corpo masculizado, com a mesma roupa, olhando pra baixo em olhar crítico>

------------
Estranhamente conforme eu fui escrevendo isso a imagem foi se transformando na imagem do leão sem juba que representa o homem trans no quadrinho "sashalioness". Talvez eu possa usar essa representação de leão no final, acho bacana o estranhamento.
Outra idéia que me ocorreu foi colocar um quadrinho com amigos usando linguagens apropriadas e tals, mas não consegui encaixar.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Disforia é quando tem um dragão saindo do nosso peito e devorando as almas das pessoas imortais à nossa volta?

O jantar está servido e eu só tenho olhos olhos olhos

Minhas mãos afagam meu coração tem pêlos.

Por que os senhores atiraram suas palavras frias contra mim?

O branco gelo engole minhas panturrilhas

Eu não sou gay, eu não sou viado, eu não sou sapatão, eu não sou mulher
Suas raposinhas são demais pra mim
Cale a sua boca seu menino lindo femme fofo, tão jovem tão... Eu nunca poderia usar raposinhas assim
Eu acho seu vestido lindo em você, não em mim
Eu não sou você, eu não sou dos seus
Eu não sou bofinho, eu jamais serei

Eu não sou bi, eu não sou gay, eu não sou "heterossexual" eu nem sei o que são essas coisas

Às vezes eu sinto tesão olhando o céu, o mar, o tronco de uma árvore, os pelos de um cachorrinho
Eu nem sei do que vocês estão falando

--- Parece que nós somos a minoria aqui, né?
--- Ahn... "nós"? Quem somos nós?

Quem somos "nós"? Nós o quê? Quando você diz "nós", o que é que você vê em mim? Quem eu sou? Quem eu sou? Eu arranco seu coração com as tripas seu coração com os dentes mas é o meu coração e é você quem arranca
Eu quero meter as garras em algum pedaço muito violento de você
Sua boca
Seus olhos

Eu sentei de frente para eles e elas e roí todas as minhas unhas

Eu preciso saber, eu preciso saber
Deixa eu me recompôr, deixa eu me recompôr

No meu sonho minha mãe sabia.
No meu sonho minha mãe sabia.
No meu sonho minha mãe sabia.
No meu sonho minha mãe sabia.
No meu sonho minha mãe sabia.
Ela sabia. Eu contei. Ela sabia sim.
Ela achava que tudo bem.
Ela aceitava naturalmente.
Ela não fazia nenhuma objeção.
Nenhum "é só uma fase"
Nenhum "eu também já senti isso mas"
Nenhum "mas"
Nenhuma objeção.
Cada letra que eu escrevo e eu escrevo letra por letra me faz me sentir um pouco menos dragão demônio violência assassinado dentes
No meu sonho ela achava tudo bem.
Catarse-desabafo.
No meu sonho tava tudo bem.
Só é importante pra mim.

Hoje eu encontrei duas velhinhas que me cederam lugar na mesa delas que tinha menos espaço que todas as outras mesas mas elas eram duas velhinhas muito gente-boas e uma delas tinha problemas nos rins e por isso uma artérias ligada numa veia que fazia um zunido como uma máquinha e eu disse que o meu nome era Marina porque elas eram velhinhas e velhinhas são como se fossem famílias e eu quero família como se fosse família minha família não precisa se envolver com a minha identidade sexualidade e toda a verdade da minha vida e minha família pode me chamar pelo meu nome de família que minha mãe me deu mas eu também não

não quero me esconder.

e mas

Hoje eu encontrei um garoto e ele me perguntou qual era o meu nome pra saber se ele já tinha ouvido falar de mim e eu disse "

meu nome costumava ser Marina

"

E eu digo sempre assim, costumava ser, por favor não me chamem mais por esse nome, a menos que você seja tipo família, ou alguém que já me conheceu com esse nome antes como se fosse família mas pessoas novas simplesmente não podem me chamar assim.

"marina"

As pessoas ficam me perguntando "qual seu nome de verdade" e eu tenho vontade de dar respostas atravessadas mas eu nunca dou.

Uma vez aconteceu de:

--- Meu nome é Oz (e estendi a mão)
--- Mas esse é seu nome de verdade?
--- Bem... meus pais me chamam de Marina. Mas só meus pais, eu prefiro que me chame de Oz.
--- Muito prazer, Marina.

E eu aqui remoendo essa raiva, como se fosse invisível essa gressão medida, deliberada, eu quero mais é mandar você... Mas minha voz se cala porque todos os insultos são errados, eu quero é cagar no seu Deus, cuspir em você, derrubar seu Deus como você sem dúvida derruba o meu. Um dragão que nasce da minha garganta mas não consegue sair e se volta pra dentro devorando as minhas entranhas eu te odeio eu te odeio mas violência gera mais violência mas eu te odeio tanto eu quero tanto que você morra.

Malditos peitos e florzinhas nessa camisa linda que são só o suficiente pra vocês não aceitarem quando eu digo que EU NÃO SOU CIS, pare de me tratar como se fosse minimamente razoável me tratar como você não trataria o seu bróder pára de me tratar como se eu achasse minimamente razoável esse ridículo tratamente diferencial nos seus ridículos gêneros definidos socialmente por ridículas diferenças de uma biologia social que não passa de uma imposição sobre as verdades pessoas das vivências pessoais não acadêmicas de pessoas reais, como se fosse necessário ter um diploma e falar "português correto" e concordar com pelo menos uma escola de autores consagrados e de preferência mortos pra ser capaz de dizer uma coisa que seja verdade e não seja uma tautologia.

Tire as mãos do meu corpo, tire a sua bocas do meu corpo; Tire a sua língua nojenta de dois mil anos de cultura ocidental normatizante generificada impositiva do meu corpo vivo, real, animal, feito da mesma madeira dessa terra fértil que você esterilizaria se pudesse controlar, porque no fundo você não consegue aceitar um mundo que não possa ser contido pela sua cultura científica dentro dessa estrutura de poder intelectual, bom newsflash seu babaca, isso não é ciência, ciência não é saber explicar apenas o que você se digna a ver, ciência é saber aceitar mesmo a magia, o milagre, o absurdo, e explicar mesmo isso, e nunca rejeitar uma coisa que foi de fato observada. Mas meu corpo não é seu objeto de estudo, meu corpo é o meu corpo, meu corpo existe e é real e eu quero mais é que você suma daqui com seus olhos estúpidos que só conseguem me enxergar através do que a sua cultura generista é capaz de identificar no corpo que você só consegue explicar através dos seus ridículos livros de psicosóciobiologia que são só uma faceta, uma redução do real, e induzem ao erro na sua simplicidade. Você diria que a luz do sol está caindo na terra, atraída pela gravidade? Uma única teoria não explica tudo. Mas eu sei que a questão aqui não é científica, é política.

Tire seus olhos desavisados e desconhecidos e normatizados do meu corpo.

Desabafo.
Tautologia.
Catarse.

Hoje o menino me pergunto "E qual é o seu nome hoje?" e eu respondi "Oz. No facebook tá Ozzer". Mas era o menino que estava lá, que tinha ido atráz, um que tinha se disposto minimamenta e entender. Eles são tão raros.

Disforia é quando a gente sente raiva por umas coisas estúpidas tipo não acreditarem quando a gente fala o próprio nome? É quando a gente sente monstros invisíveis devorando todas as partes do nosso corpo por causa de um simples olhar, um jeito de falar, ou perguntar, ou sugerir?

Eu me sinto cansado. Eu mal nasci e já me sinto cansado. Get your act together, Ozzer, stop fooling around.

É assim que a gente se sente? Quando a máscara cai e as pessoas enchergam através de nós, não o que somos de verdade mas os pedaços nus que nos compões e que entretando não nos definem, e são sempore menos que nós? Quando a performance falha e as pessoas enchergam não o que somos mas o que falhamos em ser? Quando o personagem se desmonta e se desmancha numa pilha de entranhas e ossos no chão, um sem sentido, um desconstruído, quando enchergam aquém de nós, e deixamos de ser um todo coeso para sermos um não-ser, uma máquina-monstro-carne que anda e fala apenas por desígnio de um acaso biológico? Quando deixamos de ser um indivíduo para nos tornarmos uma peça num sistema cistêmico onde o que somos é determinado meramente pelas propriedades físicas que apresentados nas mentes proto-científicas de nossos pares que disparam seus olhares contra nos? É assim que a gente se sente, quando se deixa de existir?

(Also, por que bofinhos depilam as pernas?)

sábado, 7 de dezembro de 2013

Das coisas das quais eu às vezes sinto falta

Meu último texto me deu um olé e me fez escrever algo diferente do que eu planejava. Mas talvez fosse necessário colocar aquelas coisas (isto é, eu) em um contexto antes de escrever isto que eu quero escrever. Pois bem, vamos tentar de novo.

Ultimamente tenho pensado com uma certa freqüência naquelas coisas que eu apreciava do tempo (relativamente curto) em que eu me senti plenamente confortável e apropriado como mulher. Aqueles tempos em que eu me vesti de forma totalmente "feminina" e senti prazer nisso, sabe. Aqueles tempos em que eu acreditei que havia algo de mágico, de divino, de sagrado em ser mulher. Tempos muito estranhos.

Pra falar a verdade eu penso pouco nessas coisas; normalmente eu penso mais no mêdo que eu tenho de mudar, de que as mudanças me levem a me afastar de pessoas que eu quero, que sair do armário e arrancar a máscara me desamarre dessa personagem que existe e que é ainda eu, mas não é eu. Eu não quero que meus amigos falem no futuro daquela Eu que eles conheceram e que morreu quando eu nasci. Mas eu normalmente não penso muito nas vantagens intrínsecas dessa antiga Eu, então tenho que aproveitar que estou pensando nisso.
Enfim.

Quando eu me vestia sempre de forma sexy, eu tinha uma confiança ferrenha de que eu era extremamente sexy. Eu era uma pessoa bonita, gostosa, autoconfiante, e eu sabia que eu poderia conquistar qualquer pessoa desde que eu tentasse. Eu fazia muito sexo, muito mais do que eu fazia antes e muito mais do que eu tenho vontade de fazer hoje. O jogo de sedução era a coisa mais empolgante do mundo. Eu me apaixonava o tempo todo também, de uma forma mais sexual do que acontece agora. Eu sabia que eu era a fêmea alfa, a tal ponto que mulheres tão bonitas quanto eu me faziam me sentir ameaçada. Quando eu conhecia homens novos, minha primeira atitude era uma troca sugestiva de olhares. Só para estabelecer as regras. Eu não diria que minha auto-estima era realmente alta, mas eu tinha esse pilar no qual me sustentar -- as pessoas gostavam de mim, se atraíam por mim, e eu sempre podia sair por aí e viver um romance.

Ultimamente eu tenho pensado nisso às vezes, como era confortável saber (nem sei julgar, agora, se era verdade) que eu seria desejada, saber que haveriam flertes, jogos de sedução, saber que a pessoa que eu quisesse me quereria de volta e essas coisas todas. Saber que minha presença não seria notada. Uma pessoa pode sobreviver à base desse conhecimento. Mas eu meio que abri mão disso quando eu decidi deixar pra trás a cisheterossexualidade, e foi uma renúncia mais ou menos consciente. Em boa parte eu cansei da auto-enganação de que bastaria tentar quando eu não tentaria, e talvez uma parte tenha sido a frustração com os homens gays, as mulheres heteras, as mulheres gays, e os homens monogâmicos. Mas uma parte maior foi simplesmente conseguir mudar o foco da minha identidade, da sexualidade para outras coisas mais relevantes, como posicionamento político. De repente eu não preciso mais participar de atividades sexuais ousadas pra ter orgulho de mim. De repente ser a fêmea alfa não é mais importante nem suficiente. E daí se alguns homens heterossexuais se interessaram por mim? Você não tem nada melhor em que basear a sua auto-estima?

Esses questionamentos me levaram a fazer uma pequena análise crítica dessa história toda, e eu me percebi contando a seguinte história:

A história começa com eu sendo uma guriazinha virgem de uns quatro anos. Desde pequena eu tinha uma determinação ferrenha que eu só fui entender anos depois quando minha mãe me explicou, sabe. Eu me achava um lixo na maior parte do tempo, mas a minha culpa por não ser a filha, aluna, pessoa que eu deveria ser não era grande o suficiente pra afogar as coisas que realmente importavam. Eu tinha uma missão. Não tem como desmoralizar uma pessoa que tem uma missão, especialmente se você nem sabe disso. Em algum momento da vida eu tive certeza de que eu ia ganhar o Nobel da literatura quando eu cumprisse minha missão. Eu tinha uma atitude meio vingativa, de que eu ia voltar com meus livros publicados e mostrar como toda a minha inadequação social tinha um Propósito. É claro que, naquela época bizarra e mutante da vida entre os sete e os quatorze anos, eu me achava enorme, desengonçada, feia, e que nenhum garoto ia gostar de mim nunca, muito menos aquele que eu admirava. Na real, a parte mais feliz foi dos doze até o fim dos quatorze, quando eu meio que esqueci de me apaixonar por garotos de tão envolvida que eu estava com meus amigos incríveis e as coisas que a gente fazia. Eu lembro de admirar os joguinhos de sedução das pessoas e de me surpreender toda vez que parecia que eu estava em um deles. Acho que se pá eu não me considerava bem humano.

Mas é claro que os hormônios me alcançaram eventualmente; eles me pegaram no final do ginásio e eu tive aquele momento glorioso de me apaixonar (seguidas vezes) e não ter idéia do que fazer a respeito. Tinha alguns meninos apaixonados por mim também, mas acho que isso não fazia muita diferença pra mim. Só que, embora eu não acreditasse nisso, eu já era uma menina branca magra (embora não tão magra quanto eu fiquei depois) com peitos e bunda e coxas bonitas, e, bom, bonita e legal; acho que eu era exatamente o que os garotos queriam de uma "garota nerd" (embora eu não fosse nerd como a gente imagina hoje em dia). Enfim, o caso é que muito aos pouquinhos isso foi pegando em mim. Isso e o jeito como as pessoas foram me tratando, especialmente depois que eu meio que perdi o contato com esse grupo do ginásio, como uma coisa fofinha e adorável e fácil de se gostar. Isso e estar crescendo e desejando mais do que ser um mascote, e querer ter mais amizades, e conquistar mais pessoas. Em algum momento eu me dei conta de que meus melhores amigos estavam apaixonados por mim. Depois eu namorei com o menino que eu queria mesmo namorar. Eu queria ser foda também na vida sexual, mas aconteceram uns rolos, e eu continuei mais ou menos insegura nessa área, mas depois dessa época eu tive certeza absoluta de que eu era uma pessoa apaixonante. Nessa época eu também decidi abandonar minha missão, e todas as histórias, e viver no mundo real.

Apesar de tudo, eu continuei tendo crises absurdas a respeito do meu corpo até os 21, porque eu achava que eles só me achavam bonita porque eles já estavam apaixonados. Mas aos 21 essa barreira desapareceu e eu resolvi apreciar a vida. Mais ou menos ao mesmo tempo eu mudei de carreira e abandonei boa parte das minhas inseguranças profissionais. Aos poucos eu fui retomando um orgulho de saber fazer alguma coisa, agora somando duas coisas que eu sabia fazer (escrever e programar). Eu resolvi explorar essa idéia de ser sexy e de ser feminina, com grandes efeitos (eu consegui ser feminina sem nunca usar maquiagem, e praticamente sem depilação), inclusive para minha sexualidade. Mas a empolgação de mudar de carreira começou a passar, e muitas vezes eu voltei a pensar coisas como "Bom, eu não tenho muitas habilidades, mas pelo menos as pessoas gostam de mim", mas agora com uma nota mais alta de "Mas pelo menos eu sou a mina mais gata e mais foda de qualquer balada".

Pensando bem, é estranho o quanto a beleza é determinante para uma mulher heterossexual -- eu parei para pensar nisso depois de ler este texto. Minha auto-estima enquanto mulher era dependente de eu ser desejável, e era uma sensação inebriante quando eu era, mas quando eu não me sentia linda, eu era incapaz de sequer conversar com as pessoas direito. Aí no último ano vários eventos me fizeram lutar deliberadamente contra essa corrente. Eu fiz as coisas que eu queria fazer -- furei a orelha, cortei o cabelo, saí de um bocado de armários, e finalmente deixei os pêlos do corpo crescerem até seu tamanho máximo.

Eu tenho me sentido menos sexy, e às vezes ocorre de eu sentir falta disso. Mas eu acho que nunca me senti tão confiante. Não sei se é a idade, se eu só cansei da insegurança, acho mesmo que o número de coisas na lisa de "o que eu sei fazer" está crescendo, e que o meu mêdo das coisas está diminuindo. Eu não me acho bonita com tanta freqüência, e eu tenho essa impressão de que eu devo estar finalmente começando a afastar homens hetero. Eu às vezes me acho bonito; mas também não acho que eu vá atrair mulheres hétero. As pessoas que eu atraio... não quero realmente me perguntar o que as atrai. Na verdade eu não tenho tido vontade de me envolver com muitas pessoas. Eu tenho achado desagradável a idéia de que outras pessoas podem me achar sexy. Simplesmente não é a impressão que eu quero passar.

Às vezes eu saio de casa sem nem me olhar no espelho, sem sutiã, com roupas das quais eu nem gosto tanto. Nos últimos meses tem sido menos estranho não se importar. Acho que estou começando a entender essa coisa masculina de não dar a mínima para a roupa.

Acho que o que eu quero dizer, no final, é que eu tô bem assim, melhor do que eu jamais estive. A vida está boa, eu posso ir em frente. E eu não quero mais ser bonita, porque simplesmente não vale a pena.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Das coisas que nos souberam bem

Aqui estamos, e somos onze. Onde dos quinze que partiram. Onze dentre todos os que se dispuseram.

A Letra.
A Faca.
O broche e a chave.
A pata.
O pingente.
A máscara.
O laço.
O cinto.
O Giz.
O focinho.
O pedal.

E o escudo.

Nós nos voltamos para o passado. Nós perguntamos sobre o passado. A Letra se imprime sobre a Pele do passado. Nossos olhos são espelhos que distorcem a luz do passado. Nós somos lentes. Nós escrevemos.

Um de nós se ergue sobre duas pernas. Um de nós renega nosso antigo nome. Um de nós desce de seu cavalo e corta suas tranças e as joga sobre o chão onde pisa. Um de nós ergue-se novamente.

O Focinho se ergue em direção a ele. Um de nós acaricia o focinho e o abandona. Um de nós abandona nosso antigo nome.

Uma de nós se levanta em oposição a ele. Um de nós oferece seu corpo para a faca, que ela marque seu corpo e o submeta. A Faca o corta. Uma de nós marca nele nosso indelével nome. Um de nós sangra e se reconstitue. A Faca e o Escudo são idênticos. Nossos olhos são espelhados e refletem imagens idênticas, um macho pequeno e coberto de sangue e uma fêmea grande e coberta de sangue. Um de nós ajoelha-se e uma de nós o abraça. Mas por fim se separam. Um de nós apaga nosso único nome.

Somos múltiples. A Máscara o veste e mostra nossa História. A Letra se escreve e conta nossa História. Um de nós aceita em reclusão. A caverna de nossa História é escura e longa e suas paredes contam de muitas coisas. Um de nós ouve em atenção. Nós o mandaremos como nosso mensageiro e como nosso cônsul, para os domínios que nossas vozes falham em alcançar. Nós o mandaremos ao passo em que ele se manda, fugido de nós.

O Focinho o morde.

A Pata o sagra. Uma de nós o olha nos olhos e o absolve e condena. Uma de nós lhe dá uma missão. Uma de nós o ama e o fertiliza, para que ele chegue prenhe ao seu universo. A Máscara o abençoa e o compreende. O Broche e a Chave o vestem e o ornam, mas ele os guarda numa caixa de madeira. Um de nós despe-se e se apresenta nu. O pingente transforma-se e o protege. Um de nós agradece.

O Cinto e o Giz transformam-se em objetos para que um de nós o use. Mas ele os guarda também, em silêncio. Ele os usará quando for a hora.

Finalmente, o Laço o abraça. A Letra abre seu livro e o Laço chama através dele todas as vozes que precisam se ouvir presentes. Um de nós toca cada um de nós em respeito, amor e premonição. Estamos no fim da caverna e há paisagens lá fora. Todas nós nos agrupamos na beirada da caverna. As paisagens nos perturbam e nos confundem. Nós nem sempre podemos transitar no mundo lá fora.

Uma de nós dá alguns passos para fora e invoca o Futuro. Nossos deuses sussuram como árvores balançadas pelo vento.

Um de nós começa sua jornada.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

"I learned to pick locks from the MIT guide to picking locks. I found it on the internet, and you can tell it was written by the sort of queer that doesn't like the word queer. The whole thing is prefaced by an ethics statement, again and again apologizing for being a guide to picking locks. Explaining and apologizing, like those fuckers I'm always seeing on TV talking about gay marriage, about being in love and being just like straight people, just as monogamous and sexually repressed." (Lockpick Pornography)

being just like straight people. being just like. loving true love, marrying true marriage. living true lifes. so we have not come from hell. having true families. just like straight people. just like the rest of them who were never cast aside for their sexualities. just like them who fit the form of marriage, or who didn't fit but conformed anyway. just like fucking straight cis people, who managed to conform to all sorts of sexual repression, emotional repression, gender-based repression, who managed to conform to fucking cisheteronormative patriarchy and form fucking happy families, or unhappy ones for that matter. those who conformed. those who fit the form. straight fucking cis people. being just like them. explaining and apologizing for our misbehaviour, explaining and dreaming the straight dream and apologizing for all we did while we couldn't fit, who could never fit gracefully and peacefully as they did, whose repression didn't burst the bubble, who chased the dream from the start when we were still trying to stand on our fucking feet. and then trying to fit the fucking form so that we can live the fucking fairy-tale straight dream. so we can feel like in a fucking movie. and stop showing me those happy couples 'cause I know you just don't wanna show me the fucked up ones.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Feminilidade à serviço do Machismo (um exemplo claro)

Ontem fui no karaokê para o aniversário do Michel. Foi uma noite muito boa, muito divertida, apesar das muitas coisas muito desgradáveis que ocorreram ao longo da noite. Ocorreram muitas coisas muito desagradáveis, e sinto que todas elas de alguma forma foram culpa do machismo, seja por misoginia seja por hetero(ou mono)normatividade. Mesmo o CreeppyGuy louco que nos atazanou a noite inteira só foi tão incômodo porque ele era tão machista, porque usava termos objetificadores, porque fazia as mulheres se sentirem ameaçadas, porque repetia o comportamento de tantos outros homens machistas e agressores. As coisas que tanto me incomodaram foram na verdade coisas muito normais: apagamento de bissexualidade, coibição de danças homoeróticas (entre dois homens sem nenhum interesse um no outro, olha só), xaveco machista, invasão de espaço pessoal.

Normal. A coisa que me incomodou mais, dadas as circunstâncias, foi a mais normal de todas. As circunstâncias eram que eu tenho cabelo raspado à máquina 2 e estava, ontem, me vestindo e portanto de forma deliberadamente masculina, com calças compridas, coturno e camisa social. Durante as interações com o CreepyGuy (que ganhou esse apelido por nossa amiga americana, Akshata, que foi escolhida por ele como alvo principal por ser gringa), meu comportamento foi se tornando cada vez mais rígido e agressivo. Aproveitando que esse maluco parecia me reconhecer como homem, eu reuni toda minha masculinidade pra ir até ele e pedir pra ele ir embora. No final da noite eu estava sem mais nenhuma paciência.

Nessa hora, eu subo para cantar com Chalom e esse cara desconhecido que queria muito cantar com ele. O cara, que nem conhecia a música, aproveita o tempo para elogiar meu cabelo, passar a mão nele (antes que eu pudesse consentir com isso, é claro) e tentar ganhar minha simpatia. Eu admito que não sei lidar com esse tipo de abordagem "simpática". Eu sorrio, tento me afastar gentilmente, tiro a mão do cara de mim gentilmente, não, não está me ofendendo, só pára com isso, diz meu sorriso embaraçado.

Eu preciso aprender a não sorrir, porque obviamente isso não funciona. O cara finge que acha (porque eu sei que ele não é assim tão ingênuo) que eu estou dando mole. Ele finge que conseguiu minha intimidade. Ele se aproveita do meu sorriso e não-violência para continuar puxando papo, puxando papo com as mãos, tocando meu braço, minhas costas, ele finge que não nota que eu me afasto, que eu corto o assunto, que eu viro a cara e deliberadamente me afasto. Ele dá uns dois minutinhos e vem recomeçar, sempre com as mãos, tocando meu corpo com um sorriso, fingindo que ele está sendo amigável. Normal. Desagradàvelmente, enjoativamente normal. Eu ignoro. Fujo. Meu sorriso vai ficando mais amarelo e as recusas vão ficando mais explícitas, mas é irrelevante, ele (Ele, o Homem, esse personagem que insiste em reaparecer tão freqüentemente em minha vida), Ele sabe ler os meus sinais, ele só finge que não para poder continuar insistindo. Um pouco mais e o cara decide ir embora, isto é, decide se despedir de mim (é claro, ele finge que conquistou minha amizade). Despedir é uma desculpa para tocar mais, com mais liberdade, em especial para dar um beijo no rosto e quem sabe até tentar roubar um canto de lábio. Enojadoramente normal. Ele vem me dar um beijo e eu, eu que já O conheço de muitas outras situações desagradáveis, eu me apoio naquela masculinidade que eu desenvolvi ao longo da noite e estendo a mão, sem hesitar, sem balancear --- Mas ele, acostumado a fingir, finge que houve uma dúvida, finge que foi uma confusão, faz que foi um vai-não-vai, um não-sei-se-ofereço-abraço-ou-beijo, faz que eu dei a mão apenas para me livrar dessa dúvida. Eu não entro no faz-de-conta e mantenho a mão estendida, firme, entre nós. Ele se desaponta por um instante e aperta minha mão como se fosse a mão de uma dama. Eu mudo a posição das mãos e faço um aperto decididamente masculino e afasto o corpo. Ele faz um jogo de corpo, dá um sorriso amigável e diz:

"Você está muito masculinizada!",

como uma reprimenda amigável, um conselho de amigo, aproximando o corpo. Eu endireito o corpo e digo com voz firme: "Me deixa ser masculinizada se eu quiser!" ("me deixa", como se Ele precisasse me permitir qualquer coisa). Ele muda de estratégia rapidamente e diz: "É que eu cumprimento meus amigos assim, com um beijo" e, antes que eu consiga tomar uma atitude, me dá um abraço e um beijo na bochecha. Eu me afasto quase que o empurrando pra longe, não sei se sorrio mas acho que minha cara mostra claramente meus sentimento (não me lembro mesmo), e ele solta a frase da noite:

"Você não é assim!"

e, finalmente, vai embora.
Eu volto para minhas amigas e elas me olham com cara preocupada, o que me garante que tudo foi muito claro pra elas também. Elas me perguntam "quem foi esse cara?!" e "ele disse que você não é assim? Quem é ele pra dizer isso?!". Eu me sinto um pouco melhor, mais em segurança (valeu mil vezes, Keks e Carol!). Eu falo como eu não sei lidar com essas pessoas, que eu não soube quando responder, que ele falou que eu tava muito masculinizada e eu tava com muita raiva. Minha amiga diz que eu podia ter respondido "Eu sou um homem!". Eu fico feliz com a idéia, vou tentar na próxima vez. Porque certamente haverá uma próxima vez.

O pior é que, depois disso, durante o resto da noite eu fiquei notando cada pedacinho de mim que poderia ter atraído esse cara, fiquei pensando que talvez se eu tivesse escondendo os peitos ele nem me reconhecesse como mulher e não viesse atrás de mim, fiquei notando como a calça realça minha bunda de uma forma sexy e pensando em comprar calças masculinas que escondem a bunda, fazendo mil planos de esconder meu corpo para me proteger. Me sentindo ameaçada. E isso por um acontecimento estupidamente normal. Que só foi pior que o normal porque dessa vez eu reagi mais que o normal, talvez. Porque a norma é não reagir. A norma é se submeter, como uma boa menina, ou recorrer ao socorro de machos grandes e ameaçadores. Se mostrar como propriedade deles, para se proteger. Meu namorado me contou que estava batendo papo com esse cara depois e que ele ficou muito confuso e pediu desculpas quando descobriu que eu era namorada dele. Claro, pediu desculpas pra ele. Normal.

E afinal chegamos à moral da história. Eu não contei essa história para falar da agressão dos xavecos, que é uma coisa super comum e que todo mundo já deve saber como é. Eu contei porque ela mostra o quanto alguns preceitos de feminilidade estão a serviço do machismo. O homem em questão deliberadamente tentou evocar a feminilidade como forma de se apropriar de mim, de me controlar para ter acesso ao meu corpo. Ele me acusou de ser muito "masculinizada" quando eu resisti a ele, quando me defendi. A masculinidade aqui era uma muralha entre eu e ele, e ele usou os papéis de gênero para tentar me derrubar. Algumas vezes a "utilidade" dos papéis de gênero parecem coisa de gente que teoriza demais e que vê intencionalidade em coisa que não tem -- mas às vezes, e essa história é um exemplo claríssimo disso, as pessoas usam os papéis de gênero de forma maliciosa, deliberadamente, para controlar o comportamento dos outros em seu favor. A feminilidade obriga uma mulher a sorrir, a ser gentil, a dar beijo no rosto e a se submeter ao toque de homens, exceto quando acompanhada. A feminilidade serve para transformar a mulher desacompanhada numa presa fácil. A masculinidade pode ser usada como resistência, mas será prontamente desautorizada. O Homem tentará de todas as formas coagir sua presa a abandonar essa resistência e, em defesa de sua feminilidade, se expôr a ele. Assim a feminilidade serve ao homem machista.

Meu objetivo atual é ser capaz de abandonar todas as feminilidades que me tornam frágil e que me expõe, e nunca me sentir na obrigação de ser "feminina". Quero poder ser feminina apenas como e quando isso me fizer bem e quando EU quiser.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Estrutura

Eu estou num momento da vida em que eu estou mais ou menos satisfeita com as coisas como estão, num âmbito pessoal, é claro, e com minhas perspectivas de futuro. Tem problemas, tem dificuldades, e certamente não é o meu sonho de criança --- mas quando criança eu nunca teria imaginado que matemática era tão legal, e eu não sabia de tanta coisa que existe; e embora tenha sonhos que eu ainda gostaria de cumprir, eu percebo que para investir neles eu teria que abrir mão de outras coisas. Eu consigo decidir e escolher fazer o que estou fazendo.

Apesar de eu ainda ter consciência do quanto a vida é feita de coincidências, acasos e pormenores, agora eu sinto que eu tenho controle sobre minhas decisões, e que estou escolhendo entre as opções o que realmente me agrada e me faz sentido. Eu comecei a sentir isso muito recentemente, e talvez isso esvaia novamente, mas por enquanto é isso -- as coisas se encaixam de um jeito que faz sentido até demais. E as coisas caminham tranqüilamente, coisas interessantes acontecem, tudo é novo e empolgante, e aos poucos eu tenho conseguido me ligar a coisas mais externas a mim, e começar novos projetos e conhecer cada vez mais novas pessoas.

Mas tem um preço. Eu consegui uma estabilidade emocional que eu não tinha antes, mas eu também me sinto estranhamente distanciada de tudo. Eu não sinto mais uma inveja debilitante, mas eu sinto uma estranha desilusão em relação ao futuro. Parece que nada será incrível, fascinante e mágico --- será só o mundo, como ele é. Meus amigos terão vidas estáveis. Quando as vidas deles forem empolgantes demais eu me sentirei ligeiramente incomodada com a falta de empolgação que eu estou sentindo. Eu tomarei decisões racionais, e às vezes as coisas serão incríveis.

O preço é que quando eu vou escrever eu planejo a história, eu projeto os personagens. O preço é que faz meses que eu não faço um desenho. O preço é que faz meses que eu não vejo o mar. O preço é me tornar um bicho da cidade, com amigos da cidade. Eu me sinto livre para tomar minha vida nas mãos... e entretanto eu me sinto tão pouco livre.

Eu sinto o mundo como um peso, uma inevitabilidade. Como se não houvesse mais para onde fugir. Tudo é humano, tudo é controlado. Eu me emociono quando eu vejo uma erva daninha crescendo entre as pedras quebradas de um piso. Eu tenho achado difícil me descontrair, esquecer dessa prisão que me cerca. Eu tenho vontade de quebrar carros na rua. Eu me sinto permanentemente doente. Semana passada eu tirei uma barata delicadamente de dentro do banheiro. A barata, horrível e repulsiva, me repugna menos do que o piso de cimento embaixo dela.

Aos poucos o mêdo paralizante do dia em que você descobrirá a pessoa inútil que eu sou está se dissipando, mesmo enquanto você me critica pelas coisas exatas que eu temo que você me critique. Eu aos poucos tenho me sentido mais e mais competente, razoável, correta. Eu me torno isso sob uma chuva de agressões e críticas. Eu sempre me senti um tanto alienígena. Quanto mais eu exponho minha alienidade, mais eu comprovo que ela é incompreendida. Nós vivemos num extremo, e entretanto sou eu que sempre sou acusada de ser extremista. Mas eu sou sim. Eu tive que optar entre o cinismo e o sentimento, entre a curiosidade fria e a empatia desmedida. Eu não deixarei que pessoas bem-ajustadas a este mundo desajustado façam julgamento de mim. Eu não me sinto nada.

Entretanto parece-me que sentir, e ser, algo que eu sou e sinto, é por si só uma agressão. Meu corpo é subversivo, meus sentimentos são subversivos. Minha incapacidade de me conformar é subversiva. Minha capacidade de me sentir bem na verdade me perturba.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Vento e Morte

Antes costumava ser só vento, sonho e aventura, mas agora toda vez que eu ando de bicicleta eu tenho mêdo da morte. É um mêdo que eu combato usando cuidado, racionalidade e uma dose grande de coragem. Andar de bicicleta não vai me fazer morrer mais cedo do que de carro, eu me digo.

Ser ciclista faz com que imediatamente todo mundo te odeie. Inclusive, e isso é o que me dói mais, pedestres. Eu em particular me porto, como ciclista, de forma cuidadosa e educada. Faço sinais com os braços, me mantenho atenta aos arredores, ocupo a faixa apropriada. Eventualmente, em dúvida entre me entalar entre ônibus ou me arriscar nas faixas de carros, subo na calçada, mas sempre faço isso na marcha mais lenta e dou passagem para todos os pedestres. Hoje inclusive pus um pé no chão e parei esperando pacientemente as pessoas saírem do ônibus. Inclusive quando uma mulher se assustou com a minha presença e pediu desculpas, eu respondi "Não, desculpa eu". Tudo poderia ter ficado por ali, exceto que a mulher se deu conta do que ela falou (ou do que eu falei) e imadiatamente se corrigiu "Quer dizer, não, você é que tem que se desculpar! Você não deveria estar aqui!" e começou um sermão e eu só fui embora. Quando a gente é ciclista todo mundo achar que tem que nos educar, que não sabemos o que estamos fazendo. Por incrível que pareça, nós sabemos. Somos nós que melhor sabemos o que temps que fazer.

Outra coisa insuportável a respeito de ser ciclista em São Paulo é como a bicicleta parece despertar o machismo em todos os homens na rua. Eu dificilmente recebo cantadas de rua quando estou a pé -- quando estou de bike, é comum. E com "cantadas" eu quero dizer coisas simplesmente ofensivas. Parece que nenhum homem consegue falar comigo sem sugerir que vou cair da bicicleta, que vou me machucar, de modo geral que a rua é um lugar perigoso para mim -- de novo, como se eu não soubesse o que estou fazendo. Hoje um pedestre na Augusta me mandou um olhar nojento e falou algo sobre eu estar sem sutiã, o que me perturbou porque eu nem tinha notado que eu estava sem sutiã, e também porque eu levei uns 10 anos pra juntar coragem de sair sem sutiã de vez em quando e para de noiar com meus peitos, porra! E mais tarde um homem saiu do seu caminho pra me acompanhar, usando a bicicleta como desculpa para xavecos, ao mesmo tempo dizendo que bicicleta não é meio de transporte, e me falando pra tomar cuidado. Por acaso a bicicleta tem uma aura de fragilidade e vulnerabilidade em volta dela? Pessoas em bicicletas parecem mais sucetíveis a machismo e paternalismo pra vocês?

Mas enfim, é claro que essas coisas não são o motivo principal para que a maior parte das pessoas não queira andar de bicicleta. Essas coisas são periféricas, mecanismos auxiliares de desistímulos, acompanhadas por aquelas ridículas campanhas na internet exigindo que ciclistas "respeitem os direitos dos outros", ameaçando ciclistas de não ter seus direitos respeitados (e não há nada que cada ciclista possa fazer para evitar essa ameaça, já que se uma pessoa ciclista queba qualquer uma das regras arbitárias, a classe toda é vista como agressora). Essas são as campanhas tranqüilas e de boinhas contra ciclistas. Como toda discriminação injusta e arbitrária, a discriminação contra ciclistas vem acompanhada de violência física e ameaças de morte.

Eu sei que com este texto eu vou desestimular pessoas a serem ciclistas, mas ao mesmo tempo eu já tentei e tentei estimular pessoas ao ciclismo, e eu sei que só posso fazer isso através do incentivo e exemplo e não fingindo que o mundo do ciclismo é um mar de rosas. Não. Como ciclista, eu coloco minha vida nas mãos de outras pessoas a cada viagem. Eu faço isso como pedestre também, é verdade, e às vezes andar de bike é bastante mais seguro que andar a pé. A diferença clara é que boa parte das agressões que sofro como ciclista são propositais. Sempre há os carros que nos ultrapassam deixando nenhuma margem para desequilíbrios ou desvios. Sempre há o ultrapassamento por ônibus. Há o motociclista que nos ultrapassa naquele espacinho entre duas faixas. Uma vez um carrão enorme e preto atravessou três faixas numa ponte vazia apenas para me tirar uma fina (e quase me joguei na contramão de mêdo). Hoje dois carros decidiram me ultrapassar ao mesmo tempo -- enquanto eu xingava o que me tirava uma fina pela esquerda e me desviava ligeiramente dele, me surge pelo lado direito, o lado para o qual eu me desviava, um babaca em alta velocidade, a uns quinze centímetros de mim, xingando e gritando ainda por cima. E tudo isso só porque eu me recusei a ficar na faixa de ônibus. Recentemente ouvi uma história de um amigo que estava dividindo a faixa de ônibus e um motorista de ônibus jogou o veículo em cima dele, obrigando-o a ir para a calçada ou morrer. Eu realmente queria que motoristas parassem de ameaçar nossas vidas, seja por raiva, seja por distração, seja por diversão.

Isso faz com que toda viagem de bicicleta acabe se tornando uma viagem de adrenalina, e quando eu chego em casa eu morro no sofá. Alguns caminhos são melhores que outros: Alto de Pinheiros é inteiramente horrível quase sempre; a Rebouças é mais ou menos tranqüila, e ajuda o fato de que é plana.

Às vezes andar de bicicleta é absolutamente maravilhoso. Hoje foi um desses dias: o sol estava bonito, mas não forte demais, a temperatura estava perfeita, o trânsito estava suportável, e eu pedalei da Vila Madalena para USP, da USP para o MASP (via Eusébio Matoso e Rebouças), da Paulista para a Vila Madalena (via Dr. Arnaldo). A princípio eu queria ir de bike até o metrô butantã e levar a bike comigo para a Paulista via metrô, para pegar mais leve no exercício e experimentar a hospitalidade da ViaQuatro (afinal, eles têm esses cartazinhos nojentos dizendo "aqui sua bicicleta é bem vinda", não é mesmo?). Eu poderia ter previsto que eu não poderia usar a bike no metrô durante um dia de semana. E que eu não poderia deixar a bici no bicicletário porque eu estava sem corrente. Então num impulso eu decidi pegar altas avenidas e subir pra Paulista usando minha própria força motriz. Não me arrependo de nada.

Quando eu estava pedalando na Paulista, num momento de calmaria entre as múltiplas agressões a que ser ciclista me expõe, eu me peguei pensando o quanto eu adoro isso, o quanto andar de bicicleta é muito melhor que qualquer outro meio de transporte, exceto, alumas vezes, andar à pé. Eu me sinto livre, leve, real, em contato com o mundo. Eu parei num farol ao lado de uma outra ciclista e ela me cumprimentou com um "Oi". Eu gosto muito mais de bicicleta do que de ônibus, e eu gosto de ônibus muito mais do que de carro. E além de ser um meio de transporte gostoso e um bom esporte, eu ainda me sinto bem por não estar contribuindo pra poluição, pra hegemonia do transporte privado, pra violência do trânsito. Eu não tenho nenhuma vergonha de admitir que quando eu estou de bike eu me sinto muito superior a todas as pessoas que podem usar bike e optam por usar carro. A sensação de andar de bike pelas ruas da cidade pe quase tão poderosa quanto a de andar a pé: a sensação de que a cidade nos pertence, e de que merecemos estar nela. Merecemos estar nela, apesar de todos acharem e dizerem o contrário.

E aí acontece aquele momento perfeito, às vezes logo depois de um fina entre dois carros que te deixam com o coração disparado e cheio de ódio, eu continuo pedalando, xingando em voz alta, e o sol continua batendo, e aquele vento na cara vai me acalmando, e de repente, quando eu menos espero, estou no viaduto sobre a Sumaré, e me assola a vista gloriosa da cidade, onde, por alguns instantes, eu consigo enxergar os morros feitos de parques, cobertos de um verde que para nós na metrópole é quase um mito. E por um momento eu tenho um lampejo de uma esperança que me evade durante todos os outros momentos da vida.

Nessa hora eu me pergunto como podem as outras pessoas não andar de bicicleta. Por esses breves momentos de glória em que estou usando o melhor meio de transporte jamais inventado, fazendo parte do vento, estando além da Cidade. Vento.

Nessa hora eu chego no túnel e o caos retorna por mais alguns minutos.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Gênero existe.

Estou chegando à conclusão de que o problema do feminismo radical transnegativo com o transfeminismo e a transgeneridade em geral é que o radfe acredita que gênero não existe, que gênero é uma criação cultural do patriarcado, a serviço do patriarcado. E como explicar a existência de pessoas que sabem, para si mesmas, que são de um ou outro gênero, a despeito do que lhe impuseram desde nascência, se gênero é apenas um fenômeno social? Dizer que gênero não existe é como dizer que orientação sexual não existe, que uma pessoa não-hétero nasce hétero como todo mundo e decide se tornar gay ou bi. É claro que o feminismo radical não deve estar realmente preocupado com questões de sexualidade, afinal, pessoas não-heterossexuais não constituem um grupo sistemáticamente oprimido e explorado em prol do Patriarcado, não?

Exceto que esse argumento soa realmente estúpido quando lembramos que garotos gays e meninas trans freqüentemente são marginalizadxs por sua identidade e sexualidade e exploradxs sexualmente, ou se tornam proffisionais do sexo de várias formas. Não é à tôa que a palavra "travesti" na linguagem corrente significa um tipo de prostituta.

Eu não acho que dá pra negar que gênero existe. E mesmo que ele seja um fenômeno fundamentalmente social e que interage com as construções sociais de diversas formas, isso não significa que ele possa ser reduzido a "uma imposição do patriarcado". Gênero não é apenas a forma como uma pessoa é criada e tratada como criança, mas também a forma como ela se reconhece em relação a esse tratamento. Gênero interage com sexualidade, com etnia, com credo, com identidade de gênero. Gênero parece uma opressão para a mulher cis a quem o gênero que lhe foi imposto é a sua principal forma de opressão, especialmente para a mulher cis branca de classe média e alta saudável para quem seu gênero é a única forma sistematizada de opressão, mas a opressão está no papel de gênero, nas imposições de gênero, não no gênero em si -- tanto que mesmo as feministas abolicionistas de gênero nunca pretenderam deixar de se considerar mulheres.

Às vezes eu sinto que seria uma traição ao feminismo deixar de me considerar mulher, e eu me pergunto se esse sentimento não é responsável por uma anulação completa das identidades trans-masculinas dentro do feminismo -- um sentimento de traição, pois uma "mulher" (chamada mulher pelo patriarcado, segundo as radfems) se nega a se considerar mulher então ela está abandonando o campo de batalha feminista. Como uma negra que deixasse de se considerar negra. Mas como dizer a um homem trans que ele não é um homem, quando é isso que ele sente dentro de si? Como dizer a um homem trans que independente de como ele se apresenta para o mundo, ele não é um homem porque se chamar de homem seria se apropriar da terminologia patriarcal -- porque permitir a ele se chamar de homem seria admitir que somos mulheres não apenas porque a mulheridade nos foi imposta pelo patriarcado, mas também porque conseguimos nos identificar com outras mulheres, e porque conseguimos viver entre mulheres sem nos sentir alienígenas, e porque nos sentimos, em algum sentido, mulheres. Aceitar a transgeneridade requer que se aceite o gênero, ou que se questione a própria identidade de gênero. Talvez o feminismo seja suficiente para definir sua identidade de gênero, talvez você defina seu gênero como "butch", mas certamente sua identidade pessoal está atrelada ao seu gênero, e se você consegue se considerar mulher e aceitar a segregação entre homens e mulheres se colocando no lado mulher, então você já está numa posição privilegiada em relação a um homem trans que possivelmente vai se sentir dividido entre poder ser homem e poder ser feminista (ainda bem que o transfeminismo existe).

O argumento do privilégio da criação masculina, que supostamente faz das mulheres trans homens, é ainda mais absurdo porque primeiro considera que meninas trans são capazes de atender às expectativas básicas de gênero masculino, quer dizer, passar como homens, e que conseguem internalizar as características da criação masculina que lhes darão vantagens na vida adulta, e segundo porque não considera que a mulher trans é uma mulher e que não recebe, ao se posicionar socialmente como mulher, nenhum dos privilégios masculinos.

E paro por aqui porque meus próximos argumentos seriam para combater imbecilidades e ignorâncias.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Ser mulher

Passar na banca ou no supermercado, na casa da tia ou no consultório, e ver uma revista "para mulheres" sempre me desagradou profundamente. Digo, houve aquele momento na adolescência em que elas me despertaram alguma curiosidade, porque todas as revistas de notícias eram chatas, e revistas femininas falavam de coisas mais humanas, e eu estava tentando descobrir qual era o meu papel no mundo e o que era essa coisa que eu deveria ter chamada "gênero". Por um momento breve eu gostei de ler as MarieClaires e as Cláudias que mães e tias levavam para as férias na praia e fins de semana no sítio. Mas a curiosidade passou e rapidamente virou asco. Com o tempo revistas femininas começaram a me dar engulhos de longe, só de vislumbrar as caras e roupas e poses que as modelos e celebridades faziam nas capas cheias de promessas de curas milagrosas para as doenças da gordura, da feiúra, da falta de tesão, da falta de homem, da falta de perfeição e dinheiro e adequação aos padrões. Aquela coisa de sempre, do mundo ao redor. Com o tempo eu passei a odiar revistar femininas com paixão, a ponto de achá-las mais desagradáveis que as revistas masculinas. Curioso como revistas masculinas são revistas de mulher pelada, enquanto revistas femininas ensinam mulheres a como ficarem peladas.

É um pouco difuso pra mim por que eu sinto uma repulsa tão forte por revista de mulher. Eu não consigo simplesmente passar por cima das capas, reconhecendo que eu não sou o público alvo da revista. Talvez porque seria falso, e fácil demais, descartar qualquer expressão midiática com o argumento de que "eu não sou o público alvo". Como dizer que eu não sou exatamente o público alvo de uma TPM ou de uma Nova, assim como fui o público alvo de Witch e Capricho, e serei, na idade apropriada, o público alvo da MarieClaire? Se você perguntasse a qualquer pessoa da minha família ela poderia me descrever como uma mulher de classe média-alta, entre 20 e 30 anos, buscando sua independência e interessada em homens, ainda por cima branca, e bonita; gosto de me vestir bem e me preocupo com meu corpo. Como mais a editora de uma revista dessas descreve seu público? E entretanto ao escrever essas palavras fica claro, gritantemente claro, que eu estou completamente fora desse suposto público-alvo.


No fundo tudo é uma questão de pertencimento. Provavelmente o que me dói mesmo nas revistas femininas é o quanto elas simbolizam tudo a que eu não pertenço e nunca pertencerei -- e nem quero pertencer. Quase nenhuma pessoa minha amiga de fato lê qualquer uma dessas revistas -- eu imagino minha irmã me dizendo agora como ela também odeia essas revistas, como a imagem de mulher que elas constroem é errada, como é mesmo ofensivo que elas sejam "voltadas para mulheres" quando uma parte tão grande das mulheres se sente enojada com os ideais que perpassam essas revistas que, como eu disse, insistem demais em ensinar como ficar pelada. Pra mim as revistas de mulher são o símbolo máximo dessa feminilidade que eu odeio, dessa femilidade que me rejeita e que ao mesmo tempo, com muito mais violência, tenta me assimilar.

No fundo tudo é uma questão de pertencimento. O que me dói mesmo, mais fundo, é o quanto essas revistas simbolizam todo um gênero que tenta me pertencer, me engolir. Essas revistas não existem num vácuo onde eu poderia esquecer de sua existência como eu esqueço da existência de um pornô bizarro japonês. Essas revistas são apenas uma entre muitas expressões desse feminino simpático, amoroso, que quer o meu bem, que quer me fazer melhor, que quer me fazer me vestir melhor, parecer melhor, falar melhor. Todo um gênero que quer me assimilar com sorrisos e reprimandas gentis. Conselhos. Elogios. Aquela coisa que elas chamam de empatia entre mulheres ou algo assim. Logo passará a chamar sororidade, espera o termo pegar no feminismo de manicure. As mulheres estão aqui para você. Estão aqui pra tudo, somos todas uma grande união, sorrateiramente longe dos olhares dos homens, aqui no espaço feminino onde podemos conversar sobre "coisa de mulher".

Coisa de mulher. A mulher da revista feminina pode até ser feminista ou não, pode ser lésbica ou não, pode ser bi, pode ser japonesa, pode fazer tae-kwon-dô, pode ser empresária e até mesmo cientista. Mas a mulher de revista sempre depila as pernas, mesmo se ela não tiver quase nada de pêlos, e se acontecer de ela ficar peluda mesmo ela usa calça jeans independente do calor. A mulher de revista vai no cabelereiro conversar com as amigas e pintas as unhas. A mulher de revista adora esse momento de intimidade feminina.

Eu detesto esse momento de intimidade feminina. Aliás eu detesto intimidade feminina. Pra mim é como uma cusparada na cara, depois de crescer aprendendo todos os detalhes repressores desse seu modelo de mulher, espera-se ainda que eu me identifique com mulheres, que eu me sinta confortável entre mulheres. De alguma forma eu deslizei pra fora do cistema nessa, pra mim "mulher" virou sinônimo de repressão, "mulher" como uma roupa apertada, como um sutiã que machuca, "mulher" como uma manicure desajeitada arrancando pedaços das minhas unhas, "mulher" como castração, "mulher" como depiladora arrancando pele e sangue e pêlos e variados pedaços de mim. Empatia de gênero como uma facada que me desespera mais do que misoginia. "Mulher" como assimilação, "mulher" como colonização.

Nada me desestabiliza tanto quanto ser colocada num grupo de pessoas que se identificam confortavelmente como mulheres. Mesmo que não sejam essas mulheres familiares, mulheres que pintam as unhas, que se depilam, que lêm revista feminina. Existe pelo menos um outro grupo de mulheres que me aflige: mulheres feministas, lésbicas, que quebram os padrões de gênero, masculinizadas, butch, punk, roqueiras, que mantém aquele impressionante orgulho feminista de gênero, aquele orgulho de ser mulher que resulta da ressignificação da palavra "mulher" em "aquilo que eu sou". Aliás as mulheres feministas em geral, com sua sororidade e whatnot (especialmente as muito definitivamente lésbicas), quando têm muita confiança na sua mulheridade, como me perturbam. Me perturbam quando me assimilam, quando me reconhecem como uma igual, quando dão a mim um tratamento amigável que recusam a amigos meus que me são mais próximos do que qualquer uma delas jamais será, quando negam às pessoas que são como minha família um carinho que dispensam a mim, mesmo quando me desejam seu desejo me perturba, talvez porque sinto muito profundamente que nossa relação é falsa, que nossa intimidade é falsa e ruirá quando elas enxergarem meu eu real, quando elas enxergarem que não sou uma delas (e me perturbam também quando vejo refletidos comportamentos meus iguais aos delas. Me perturbam pela semelhança, me afastam pela proximidade).

Me perturbam, todas as mulheres que sabem que são mulheres, me perturbam com uma certa inveja ruim, de quem não quer fazer parte de um grupo, apenas lhe inveja os privilégios. O privilégio de conseguir ser mulher. O privilégio de terem umas às outras. Tenho uma inveja louca, sempre tive, das mulheres para quem é fácil fazer amizade com outras mulheres. Eu por mim não tenho muita fé sequer na minha capacidade de fazer amizade com seres humanos. Eu sempre me senti um estranho no ninho entre mulheres, me esforçando para me assemelhar a elas, assimilando alguns comportamentos, fazendo toda uma farsa. Eu nunca entendi como era possível que elas pudessem conviver comigo. Eu ria de suas piadas, mas não conseguia entender a graça. E quando de fato fiz amizade com mulheres, me dei conta de que não era diferente de fazer amizade com homens. Anos depois, porém, descobri que muitos homens ainda mantinham a maior parte de sua masculinidade social escondida de mim, num lugar de macho onde podiam ficar as escrotices de moleques.

"Sororidade" é uma palavra que engasga na garganta. Sororidade entre pessoas que se desconhecem. É uma palavra que se usa com liberdade demais. Ou que eu não entendo. Talvez, como mil coisas no universo feminino, a idéia de sororidade esteja além da minha compreensão. O feminismo da sororidade está além de mim, um feminismo de mulheres não me abarca, não me carrega. Eu sinto os discursos de sororidade como assimilação, como colonização -- de mim, que não me sinto nada, de mim que tenho sangue branco, sangue europeu, sangue laçador de índia, sangue também, disperso talvez, de índia laçada, sangue de imigrante, sangue de bandeirante, entretanto me sinto uma etnia própria, muito selvagem para ser branca, muito branca para deixar de sê-lo -- mas tento imaginar como espera-se que todas as mulheres do mundo se unam, se sintam comuns. Uma palavra que ignora as diferenças, que nos supõe unidas e juntas por um ideal únicos, e nos une por nossos gêneros não me abarca, por mais que tente me assimilar.

Ou talvez seja apenas uma questão de pertencimento, insolúvel. Talvez eu sinta que o feminino tenta me assimilar justamente porque ele falha. Entretanto um sentimento de irmandade não é impossível, mesmo uma irmandade de gênero. O quanto me dói receber uma simpatia que não me cabe, que é negada às pessoas que são como eu, talvez seja justamente mais dolorosa pela imensa empatia que tenho pelas pessoas que reconheço que são, sim, como eu, e que entretanto são excluídas dessa simpatia.

Eu não faço parte do seu público-alvo, por mais que a revista feminina e a simpatia feminina e todas as feminilidades continuem tentando me assimilar. É hora de eu mandar as feminilidades todas pro espaço e parar de tentar ser mulher.

Sacrifíco Animal (post no facebook)

Esses dias eu estava pensando sobre sacrifício animal, por causa da discussão a respeito de macumba, cabeça de bode, tourada. Assim até fica parecendo que nossa sociedade considera um absurdo imperdoável matar animais inocentes. É claro que isso não é verdade. Consideramos (bem, vocês, eles, consideram) perfeitamente aceitável matar animais em muitos casos.

Acham perfeitamente normal matar porco, frango, boi, veado, alce, camarão, peixe, tubarão, carangueijo, e muitos outros tipos de bicho, com métodos que às vezes são dolorosos, para que possam comer uma parte de seus corpos. Inclusive comem alguns animais ainda meio vivos.

Aliás come-se peru assassinado no Natal, mata-se o peru, jogam-se fora os pedaços menos apetitosos do corpo dele e come-se algumas partes da carne. Esse tipo de ritual pode, deve, é amplamente aceito por todos. Usa-se o discurso de que "pode porque é de comer", mas vamos lembrar de toda a carne que já jogamos fora na vida, de toda a carne que apodrece no supermercado, que apodrece no caminho, que não é comprada porque o preço da carne não é baixo o suficiente, nós sabemos que isso existe e muito.

É engraçado como pessoas que comem carne de boi, porco e frango, que acham normal matar rato e gambá, e que vão pra Europa comer carne de veado, às vezes ficam horrorizadas quando vêm alguém comendo coelho ou cachorro ou algum bicho que eles acham bonitinho. Enquanto isso muitos veganos vêm a mesma cena e dão de ombros. Estamos acostumados a sentir aflição ao ver animais sendo mortos por motivos que consideramos absurdos. Hoje mesmo apareceu na minha timeline uma foto de ratinhos mortos, falando de um novo método "ecológico" de matar ratinhos. Eu não quero ver foto de bicho fofo morto, entendeu?

Vocês acham que é certo e necessário, e matam com as próprias mãos ou com venenos de todo tipo barata, rato, gambá, guaxinim, morcego, pombo, abelha, vespa, marimbondo, lesma, caracol, mariposa e qualquer outro animal que cometa o crime hediondo de fazer um ninho nas paredes de um prédio habitado por humanos, ou na terra abaixo dele, ou no terreno ao lado, ou dentro dele, e que ouse mostrar sua cara!

Acham normal matar animais o tempo todo por mil razões diferentes.

Acham normal matar, com venenos que afetam todas as formas de vida do lugar, animais que querem comer as plantas que produzimos para nos alimentar, ou para nos dar prazer, ou para alimentar nossos animais, ou para qualquer outro fim.

Acham necessário e piedoso matar animais domésticos e mesmo de estimação se constraírem alguma doença contagiosa perigosa, ou alguma doença terminal, ou se cometerem alguma violência contra humanos. No caso de animais rurais, uma pata quebrada já é às vezes suficiente para que sejam "sacrificados".

Acham normal e inevitável matar diversos animais para treinamento e pesquisa em diversas áreas, especialmente na área de saúde.

Acham aceitável matar TODAS as espécies de seres vivos (animais, plantas, fungos, microoosganismos, etc) indiscriminadamente para fazer represas para gerar energia para a indústria, ou para abrir espaço para pastos e plantações de monocultura, ou para o cultivo de madeira, ou para a instalação de indústrias, ou para a construção de moradia, ou para a construção de portos ou estradas, por outra razão qualquer que pareça importante na hora para quem pode tomar essa decisão.

Matam com armadilhas e armas de fogo raposas, lobos, onças, jacarés, tubarões e outros animais considerados "maus" e "perigosos", mesmo enquanto entidades ambientalistas tentam proteger estes animais da extinção (matam estes animais de forma não muito diferente da que mata-se índios, aliás, e por motivos semelhantes também).

E aí, dado tudo isso, eu acho muito suspeito que venham me falar em resgatar galinhas de macumba. Não que eu queira que galinhas morram, mas porque estamos atacando esse ritual de fundo de quintal, esse ritual de religião invisível afro-brasileira, e não os massacres que estão acontecendo agora mesmo, de milhões de espécies nativas, muitas vezes apenas para nosso prazer e conforto e lucro do capital?

terça-feira, 9 de julho de 2013

Monogamia/Mononormatividade e nóis com isso.

Ontem participei de uma primeira roda de discussão que se propunha a ser a respeito de "não-monogamia" (se isso se concretizou ou não é outra discussão). Sinto, pessoalmente, que a discussão foi particularmente pouco organizada e confusa, de forma que nós não tínhamos controle a respeito de que assuntos nós abordaríamos ou não, e que nós falhamos no objetivo basal de entender os problemas que nós enfrentamos e de estabelecer uma comunicação entre nós, os não-monogâmicos, que pudesse levar à criação de um vocabulário comum, à união política ou a qualquer coisa mais que uma confraternização intelectual e troca de contatos --- não que essas coisas não sejam de grande importância. Eu decidi escrever este texto antes da próxima roda de discussão com o intuito de começar uma discussão formal, teórica, organizada. O mais importante deste texto provavelmente não serão as respostas e explicações que darei, mas as perguntas que sucitarão essas respostas. Sintam-se tods livres para oferecer suas próprias respostas.

P: Quem nós somos?

Nós somos pessoas que desejam ter experiências sexuais ou afetivas, mas que não querem viver relacionamentos monogâmicos. Eu irei me referir a nós como não-monogâmicos.

Existem vários termos associados à não-monogamia: relacionamentos abertos, amor livre, poliamor, poliafeto, relações livres, etc.. Porém, me parece que atualmente não há nenhum termo que agrade a todas as pessoas não-monogâmicas. Não vejo isso como um grande problema -- também não há um nome único para o movimento que atualmente se denomina "LGBTQ+", e nao acho que isso enfraqueça o movimento. O que acho é que somos muito diversos em experiências e reivindicações, e que devemos fazer um esforço consciente de nos unirmos apesar dessas diferenças. Por exemplo, existem pessoas entre nós que gostariam de se casar com uma ou mais pessoas, enquanto outros entre nós rejeitam completamente o conceito de casamento. Eu particularmente não acho que esse seja um bom motivo para uma cisão.

P: O que é monogamia?

Monogamia é uma característica de certas relações afetivas ou sexuais entre duas pessoas. Uma relação é monogâmica quando ambas as pessoas se comprometem a não se envolver romanticamente ou sexualmente com outras pessoas que não seu par monogâmico. Ou seja, existem aspectos da relação entre essas duas pessoas, aspectos emocionais e sexuais, que são exclusivos àquela relação. Em geral numa relação monogâmica os aspectos exclusivos mais importante são "se apaixonar" e "fazer sexo", sendo que é uma traição gravíssima se envolver dessas formas com outras pessoas.

Na verdade, relacionamentos monogâmicos são bastante diversos entre si, de acordo com o que as pessoas envolvidas encaram como "romântico" e "sexual" no próprio comportamento e no de seu par monogâmico, das razões pessoais pelas quais essas pessoas são monogâmicas e principalmente, a meu ver, da quantidade de ciúmes que as pessoas sentem.

P: Nós somos contra a monogamia?

Eu jamais apontaria para um outro casal e diria "você não pode ser monogâmico!", e imagino que a maior parte de nós não faria isso. Porém, acho que alguns de nós acreditam que relações monogâmicas são ruins em si, mesmo para as pessoas que escolhem deliberadamente se envolver nelas. Eu discordo dessa postura. Embora tenhamos críticas à construção social da monogamia e à mononormatividade, não acho que podemos julgar as razões pessoais pelas quais as pessoas escolhem a monogamia.

O argumento principal contra a monogamia é que ela é uma regra e uma imposição sobre outra pessoa, e que se a exclusividade é de fato feita por amor, ela não precisaria ser imposta como uma regra. Entretanto, muitos de nós vivem em relacionamentos que possuem regras, e eu acredito que essas regras são importantes para o relacionamento funcionar. Não cabe a mim aprovar ou desaprovar as regras escolhidas por outras pessoas para seus próprios relacionamentos.

Porém, me parece que na maior parte das relações monogâmicas, devido a uma idéia mononormativa de como funcionam as pessoas, exige-se uma "monogamia de sentimentos", quer dizer, a pessoa está proibida não apenas de se relacionar com outras, mas também de se interessar por elas, ou mesmo de olhar para elas. Esse tipo maluco de monogamia leva, a meu ver, inevitavelmente, ou a acessos de culpa e auto-flagelação, ou a mentiras e segredos entre o casal.

P: Por que as pessoas são monogâmicas?

É óbvio para a maior parte de nós que, em primeiro lugar, grande parte das pessoas é apenas "socialmente monogâmica", no sentido de que "traem" seus parceiros, e em segundo lugar, quase todas as pessoas são monogâmicas apenas porque é essa é a norma social (falarei do conceito de mononormatividade em seguida). Além disso, uma parte grande das pessoas opta por não ser monogâmica simplesmente se mantendo "solteira".

Por outro lado, quando confrontadas com pessoas não-monogâmicas, as pessoas monogâmicas quase sempre procuram justificar porque elas, pessoalmente, preferem viver em monogamia.
A bem da verdade, a maior parte dessas explicações soam absurdas e até mesmo ofensivas para nós --- por exemplo "sou monogâmicx porque quero amor de verdade" ou porque "se o relacionamento está bom e cheio de amor, a pessoa não precisa de mais ninguém". A conclusão é que essas pessoas "escolheram" ser monogâmicas por completa ignorância do que significa não ser monogâmico.

Outras pessoas dão explicações mais razoáveis. Algumas pessoas entram em relações monogâmicas apenas porque su parceire é monogâmicx e ela realmente não considera a monogamia um sacrifício. Outras pessoas sentem que a exclusividade torna seus momentos íntimos mais especiais. Muitas pessoas simplesmente não acreditam que uma relação não-monogâmica possa dar certo (o que eu também atribuo à nossa invisibilidade e à ignorância geral).

E, é claro, muitas pessoas são monogâmicas porque são extremamente ciumentas. A meu ver, o ciúmes é uma exacerbação de insegurança e mêdo que nada têm a ver com a outra pessoa, mas que são projetados na outra pessoa, como se ela fosse responsável pela sua insegurança. O ciúmes é um sentimento negativo e danoso para o relacionamento, e eu acho que qualquer pessoa ciumenta deveria se esforçar para resolver esse problema. A glorificação do ciúmes, na minha opinião, é a forma mais absurda e torpe de mononormatividade, porque se glorifica uma atitude de controle sobre a vida do outro. Além disso, algumas pessoas são monogâmicas porque elas sabem que é socialmente inaceitável não ter ciúmes e não exigir a "fidelidade" de su parceire, e assim essas pessoas exercem controle sobre a vida de parceire por pressão social.

P: O que é "mononormatividade"?

Eu imagino que essa palavra tenha surgido como uma referência à "heteronormatividade". Veja, a heteronormatividade é a norma que favorece casais cis heterossexuais. Casais cis heterossexuais podem se casar, não têm mêdo de sair em público, são representados em histórias, em todas as mídias, e de modo geral se espera que uma pessoa seja cis heterossexual desde o momento em que ela nasce. Ser cis heterossexual implica em uma série interminável de vantagens sociais, jurídicas e econômicas, especialmente para pessoas casadas. Da mesma forma, ser monogâmico implica em uma série parecida de vantagens em oposição a ser não-monogâmico. Em primeiro lugar, o casamento oferece muitas vantagens, e essas vantagens apenas estão disponíveis para pessoas monogâmicas. Além disso, trocar carícias com mais de uma pessoa em público é considerado uma "depravação", mais ou menos da mesma forma que o é trocar carícias com uma pessoa do mesmo sexo. A não-monogamia é retratada em histórias, mas quase sempre como uma situação de conflito, traição, instabilidade.

A mononormatividade também é expressa nas opiniões ignorantes da maior parte das pessoas a respeito de nós, quando as pessoas acreditam que apenas na monogamia existe amor, e que apenas a monogamia é uma forma correta e pura de se relacionar; e também na ignorância das pessoas em relação a seus próprios relacionamentos uma vez que, acreditando que uma pessoa não deve ser capaz de se interessar por mais outra, assume-se que quando um membro do casal se sente atraído por outra pessoa a relação está comprometida. E quando duas pessoas começam a se relacionar, elas quase sempre assumem que a outra é monogâmica. Mais grave ainda, a mononormatividade glorifica atitudes de imposição da monogamia e de controle da vida alheia, glorifica o ciúmes e justifica inclusive a agressão física (até mesmo assassinato) da pessoa que incorre em "traição" (muitas vezes mesmo que a suposta "traição" tenha ocorrido depois do término da relação). Finalmente, a mononormatividade condena todas as pessoas não-monogâmicas (exceto talvez homens cis heterossexuais), chamando-as de "vadias", e esse rótulo é muitas vezes usado para justificar agressões e crimes cometidos contra essas pessoas, apenas porque seu "valor como pessoa" é considerado menor do que o de uma pessoa monogâmica.

Evidentemente, a mononormatividade está intrinsecamente ligada à heteronormatividade e de modo geral ao machismo, de modo que ela é especialmente cruel com mulheres, cis ou trans, pessoas trans* de modo geral e gays/bis. De fato, muitas vezes é aceito e até esperado que homens cis heterossexuais se comportem pessoalmente de forma não-monogâmica. Mas vamos falar de machismo em outro tópico.

P: Por que nós dizemos que "somos" não-mono/poli/rli/etc?

Essencialmente, é porque nós não queremos, não conseguimos, não aturamos, não suportamos viver em situações de monogamia. A monogamia é opressora para nós. Nossas opções de como viver experiências afetivas e sexuais fazem parte da nossa identidade, da mesma forma que orientações sexuais.

Existem outras pessoas que consideramos que "são" monogâmicas, porque elas só aceitam relacionamentos monogâmicos. Existem também pessoas que aceitam ambos e que não "são" nem uma coisa nem outra.

P: Por que nossa movimentação é política e não apenas pessoal?

Porque nós vivemos num mundo que ora acredita que nós não existimos, ora que estamos fadados à infelicidade, ora que somos depravads e vadias. Porque se ficarmos calados e separados, não poderemos mudar esta situação. Porque o pessoal é político.

P: É um problema nossa movimentação ser contra alguma coisa em vez de a favor de algo?

Claro que não! Nós somos a favor do direito de viver com os mesmos privilégios que o resto da sociedade, mas nosso grupo provavelmente não existiria se não houvesse uma imposição social opressiva que nos exclui. Da mesma forma que o feminismo é contra o machismo e a misoginia e o movimento LGBTQ+ é contra (o machismo e) a homofobia e a heteronormatividade, nós também nos unimos contra algo que nos oprime. É tipo a ordem natural das coisas.:wq

terça-feira, 4 de junho de 2013

Ser Homem

O quanto da minha vida foi determinado por eu ser mulher?

Sabe, esta é uma questão pra mim. O que eu seria se eu fosse homem? Essa questão não é fácil de responder. Mas, bem, olha o meu irmão. Ele é um cara legal, e talvez ele seja feminista (eu nunca conversei com ele a respeito disso), mas, é diferente. Tudo é diferente.

Eu às vezes me pego pensando em mim mesma como uma versão gender-bended do meu irmão. Eu acho que "se eu fosse homem", eu seria forte como ele, rápido e ágil como ele. Eu sempre tentei acompanhá-lo, eu sempre corri com ele como se fôssemos iguais. Meu irmão foi uma das pouquíssimas pessoas na minha vida que sempre me tratou como se eu fosse igual a ele, mesmo sendo menina. Eu tenho algumas dificuldades com meu irmão, mas isso eu devo a ele: ele nunca achou que eu ser menina fosse desculpa para não correr, não lutar, não subir em árvore, não fazer barra, não entrar no campeonato de video-game ou na competição de bebida. Meu irmão nunca me mandou parar, e sempre ficou realmente decepcionado quando eu deixava de fazer alguma dessas coisas com ele. Acho que é por isso que me perturba (e fere) tanto quando meu irmão me trata como menina ou mulher. Na maior parte do tempo, parece que nossa relação teria sido exatamente igual se eu fosse homem.

Entretanto, meu irmão é a exceção. O resto do mundo me tratou de formas muito diferentes apenas porque eu era menina (mesmo antes de isso fazer qualquer diferença razoável). Eu acho que nossa relação de irmãos teria sido muito diferente porque eu teria participado de eventos que eram proibidos pra mim --- viagens com meu tio machão e os primos, andar de lancha na tempestade, ou simplesmente fazer alguns exercícios ---, porque meus primos teriam visto a minha força em vez de ver apenas minha fofura, porque eu conseguiria acompenhar mais de perto as capacidades físicas do meu irmão, mesmo se eu não fosse tão forte quanto ele.

Talvez o mundo fosse menos contraditório se eu fosse um garoto. E menos ofensivo. Sabe, quando eu era pequena, eu não entendia que eu não era um menino, que eu era diferente do meu irmão --- até porque nós éramos iguais: minha mãe sempre contou a história das pessoas que passavam e perguntavam "são gêmeos ou gêmeas?". Eu gostava de jogar bola, de lutinha e de salvar o mundo, e minha irmã gostava disso também e nunca foi um problema. Mas eu entendia perfeitamente bem que quando um moleque dizia que alguma coisa era "de menina", que alguém fazia alguma coisa "como uma menina", ou que alguém era "uma menininha", isso era apenas uma ofensa. Chamar alguém de "menina" era sempre um insulto. Então eu não queria, de forma nenhuma, ser uma menina. Minha mãe não entendia isso, nem as tias e as professoras e os professores e as outras crianças, nenhuma delas podia ver que quando me chamavam de "menina", "mocinha", "garotinha", eu tomava aquilo como um insulto.
Enquanto as pessoas me vissem como uma menina, eu estava perdendo. Eu precisava ser forte. Eu precisava ser mais forte do que todos os meninos, pra mostrar que eu era um deles. Eu precisava não desistir nunca, porque desistir significava ser inferior para sempre. Na minha imaginação, eu era uma heroína, uma figura mítica que se transformava em lobos e panteras, que era a maior guerreira do mundo (eu tinha um amigo que era o Rei e um amigo que era um Mago, mas nenhum deles era tão forte quanto eu), que era a líder de um time de esportes marciais com bola, eu freqüentemente salvava meus amigos de perigos terríveis e ora salvava ora enfrentava os garotos por quem eu me interessava, e eu atravessava o mundo num cavalo tão rápido que ele cavalgava sobre as águas,e em algumas histórias eu tinha até uma contra-parte masculina. Minhas histórias eram cheios de personagens masculinos fortes e impressionante, mas todos eles me respeitavam porque eu era mais forte e experiente que eles.

Não ajudou em nada o fato de que, aos cinco anos, enquanto eu queria ser um dos meninos e estava fazendo de tudo para não ser "maricas" nem "menininha", enquanto minha irmã e minha prima faziam sugestões absurda de que eu, sendo uma "menina", estava apaixonada pelo meu amiguinho, enquanto os adultos me chamavam de "fofinha" e "gracinha" e "menina linda" sem nem suspeitar que o que eu queria mesmo era respeito (e, sério, não era difícil ver isso das atitudes que eu tinha), quando eu tinha cinco anos de idade um homem, um adulto retardado, funcionário na escola em que eu estava aprendendo a escrever e multiplicar por 10, me levou, talvez duas ou cinco vezes, para o quarto de brinquedos e me fez pôr a mão numa linguiça quente e suja que ele tinha no bolso.
Eu digo isso assim com todas as palavras porque foi isso que aconteceu. Talvez esse homem tenha me feito acariciar o pênis dele, ou pior. Outras mulheres que conheço talvez tenham histórias piores de abuso durante a infância. Eu me sinto mal por trazer um assunto "pesado" à tona num texto que deveria ser simplesmente sobre a criação de meninos e meninas --- mas, inevitavelmente, não sei exatamente quanto tempo depois, eu cheguei à conclusão de que aquilo aconteceu porque eu era menina. Não aconteceu com meus amigos, meus companheiros de viagens espaciais e aventuras na selva. Aconteceu com uma outra menina (não sei bem quando eu fiquei sabendo disso), uma que, para a minha sorte, gritou, deu o alarme, permitiu que a preocupação da minha mãe com meu comportamento nos levasse a um psicólogo e, com alguma ajuda de professora e avó e mãe (figuras maternas ou figuras femininas não sei), eu contasse o que aconteceu e digerisse de alguma forma toda a experiência. Qualquer religião que eu tivesse não tinha sequer uma tentativa de ajudar. Os livros, as histórias não falam de abusos com garotinhas. Eu fiz o que pude: me tornei um herói e um animal selvagem, uma força da natureza, uma guerreira, uma fera selvagem, assassina. O mundo das minhas histórias era cheio de sangue e violência. De alguma forma minha relação com o mundo exterior, nas minhas memórias, não mudou muito em caráter, apenas em intensidade, já que meu interesse em interagir com o mundo lá fora ficou muito menor, ainda mais depois que eu mudei de escola e perdi todos os amigos e professoras. No mundo lá fora eu tinha meninos que tiravam sarro de mim, professores que me insultavam, pais que tinham mêdo de que eu ficasse louca, e umas meninas que faziam "coisas de menina" e aparentemente achavam isso legal, o que para mim era totalmente incompreensível.

Na minha cabeça eu não era tanto uma menina quanto um animal selvagem --- acho digno de nota que o animal que eu escolhia era em geral um lobo ou uma pantera, que praticamente não tem dimorfismo sexual, ou uma leõa, que é um animal que caça e organiza o bando enquanto o macho é paparicado e embelezado. Eu era fã de Raksha, a Demônia, a mãe-loba do Mogli, porque ela enfrentava o Shere-Khan (e na minha cabeça ela é que tinha enfrentado cinco oponentes para escolher o macho que ela queria), e eu era fã de Buck, o canzarrão de Jack London que se tornava o líder de todos os lobos. Eu me esforçava para ser forte, eu subia nas árvores mais altas, eu corria, eu escalava todas as pedras e me metia no meio do mato sempre que eu podia, porque o mundo humano era feito para maricas, mas eu não era apenas uma criança, eu era uma fera, e eu tinha vivido mais do que os adultos podiam imaginar, e algum dia eles iam ser pegos de surpresa por mim. Eu ia provar que eu não era uma menina, que ninguém podia abusar de mim. Nessa época eu também odiava a única parte decididamente feminina do meu corpo, passava horas puxando e deformando meus lábios, não sei bem se tentando esconder a vagina ou se tentando modelar uma espécie de pênis com o que eu tinha à mão.

Enquanto isso nas aulas de educação física os professores não queriam que eu jogasse bola com os meninos, e eu era obrigada a jogar queimada ou brincar de elástico com as meninas, que para mim eram criaturas alienígenas. Pior que isso, nas aulas em que os meninos faziam flexão eu tinha que fazer "flexão de menina", algo que eu achava desagradável e humilhante. E "barra de menina", que sequer era um exercício para os braços, e sim uma prova de paciência: o desfio era ficar pendurado na barra, sem ter que se mexer, ou levantando os joelhos, pelo máximo de tempo. Naquela época, eu e mais algumas meninas conseguíamos fazer barras e flexões tão bem quanto alguns dos meninos; essas prova eram só uma espécie de humilhação e insulto especial. Depois de introjetar muito bem que fazer qualquer coisa "como uma menina" era uma vergonha, eu era obrigada a fazer esportes "como uma menina". Meus professores estavam me xingando na minha cara, e eu tinha que aceitar, calada, afinal, eu era, mesmo, "uma menina". Minha auto-confiança foi destruída, e eu passei a vida duvidando de tudo o que eu fazia, pensava e dizia.

Eu tinha pouquíssima experiência e empatia com meninas. Eu não mencionei nenhuma atividade "feminina" até agora porque para mim elas não existiam. Na verdade, nós brincávamos de casinha e boneca junto com comandos em ação, junto com meu irmão, e tinha também as coisas que minha prima trazia, por exemplo a brincadeira de desfile da "pakalolo" que fazíamos inventando formas de enrolar toalhas e lençóis, a brincadeira das fadas que vinham de outro mundo contar histórias (minha prima e minha irmã eram muito criativas), brincar de sereia, brincar de comida --- eu gostava dessas brincadeiras, mas por algum motivo eu não dava importância a elas. Acho que o fato de que nunca tinha meninos por perto quando brincávamos de pakalolo ajudava, pois eu podia baixar a guarda, e ao mesmo tempo eu lembro que se a brincadeira começava a derivar pra maquiagens e outras coisas mais "de menina", eu fugia.
Eu tinha amigas meninas na escola (eu não tinha amigos porque eu era incapaz de entender por que os meninos da escola me enchiam tanto o saco), mas pra falar a verdade eu não tinha amizades de verdade, na maior parte do tempo. A maior parte das meninas falava uma língüa que eu mal conseguia entender, até uns 12 anos de idade. Felizmente eu encontrei algumas meninas que se pareciam comigo, que detestavam coisas "de menina" e com quem eu podia jogar bola, andar de bike, e tentar, de alguma forma, procurar uma forma de lidar com toda a humilhação que era ser menina quando a coisa certa a se ser era claramente menino.
Assim, durante a pré-adolescência, quando eu estava começando a fazer amizade com garotos e gente tão deslocada quanto eu, nós descobrimos o paganismo, Brumas de Avalon, bruxas e toda uma mitologia na qual as mulheres eram o centro, na qual cada mulher era uma encarnação da Deusa. Encarar o feminino como divino ajudou muito a sobreviver à adolescência (assim como todas aquelas histórias de heroína e lobos e tudo o mais). E sobreviver à adolescência, previsivelmente, foi o tipo de desafio que requeria ajuda.

Na adolescência meu corpo começou a mostrar que eu era mulher através de peitos e pernas grossas, tudo o que eu nunca quis ter, não tanto porque era coisa de mulher mas mais porque minha irmã não tinha e eu queria ser igual a ela --- mas a mitologia da mulher-deusa me fez aceitar esse corpo como símbolo do meu poder, e cultivá-lo e amá-lo, e eu aos poucos parei de tentar me machucar. Simultaneamente, eu desenvolvi todos os pêlos do mundo, o que eu imediatamente achei o máximo porque me deixava mais parecida com um lôbo (além do mais, minha melhor amiga também era peluda). Por outro lado, eu parei de crescer, desenvolvi problemas do joelho e na coluna que me causavam dor toda vez que eu jogava bola, e rapidamente os meninos começaram a ficar mil vezes melhores que eu em tudo o que eu valorizava. Minhas "amigas" que gostavam de coisas de menina começaram a falar de garotos e romance, meus amigos começaram a se interessar por mim (o que eu detestava), e minha mãe decidiu que eu tinha que fazer todo tipo de coisa agora que eu era "mocinha".
Eu até me divertia com os vestidos de festa e maquiagem que uma amiga de mamãe fazia em mim para os casamentos e afins; mas logo depois começou a tortura de depilação, descoloração, desodorante feminino, e cada vez mais pessoas reclamando do jeito como eu me vestia, das roupas velhas, feias, furadas --- em pouco tempo eu entendi que eu não podia ter pêlos, nem cicatrizes, nem machucados nem furos nas roupas, porque tudo isso era coisa de homem, era coisa que era legal no meu irmão, mas em mim era feio. Mas, como eu disse antes, eu não conseguia entender do fundo do coração que eu era "menina" e que para mim "coisa de menina" era bom e que eu e meu irmão tínhamos que ser diferentes, eu queria as mesmas coisas que ele, eu queria ter cicatrizes legais, eu queria ser foda, eu queria me arriscar e me machucar e disputar a bola e rasgar os joelhos das calças porque isso tudo é sinal de que você tem garra. Então eu não só era chamada de "menina" como ainda levava bronca por fazer tudo o que merecia "respeito", e ainda por cima quando eu estava com meu irmão, que ainda era o cara que me tratava como igual, eu mal conseguia acompanhá-lo. E aos poucos até meus amigos nerds e esquisitos começaram a me dar uma lavada em todas as nossas corridas e lutinhas e what-not. Eu tive que começar a admitir que eu não era mais um dos garotos, e comecei a desejar ser. Meu irmão, nessa época, tinha um melhor amigo super bacana, e eles começaram a conhecer meninas também. Eu tinha uma relação estranha com o amigo do meu irmão, ora ele era como um irmão, ora eu achava que ele me via como uma mulher.

Um dia meu irmão me viu como mulher. Eu sei disso, mas eu nunca falei sobre isso com ninguém, muito menos com ele. Foi uma traição, e eu nunca perdoei meu irmão. Essa parte, essa traição, isso nunca teria acontecido se eu fosse um homem.

Toda essa história foi anos antes de eu realmente me assumir como feminista. Foi anos antes de eu me assumir como qualquer coisa. Foi antes do colegial. A partir dos catorze anos minha vida emocional foi tão intensa que todas as outras questões pareceram menos importantes no momento. O que eu notei foi uma resistência, da deusa-lôba dentro de mim, a me machucar depilando as pernas, a se disfarçar com maquiagens que eu não sabia aplicar e que deixavam ridícula. E uma miríade de sonhos e fantasias, que foram se tornando mais diversos, incluindo romance e sexo e até mesmo filhos (eventualmente netos). Mas eu queria amar e eu aos dezoito decidi fechar o teatro, cancelar todas as aventuras, e viver a "vida real". Depois disso passei mais uns bons dois anos continuando a cometer erros e crimes contra as leis da deusa-lôba, e mais uns três ou quatro numa jornada de auto-conhecimento, que me trouxeram até aqui, nua, sem deusa, sem lôba, sem herói, sem nada além do meu corpo e da minha história, e das minhas convicções políticas. Hoje em dia eu consigo usar vestidos e saias sem me sentir ridícula. Recentemente eu aprendi que posso ter pernas peludas e que posso sair sem sutiã. Eu ainda tenho dificuldades com algumas coisas bestas --- ainda não gosto de ser menina, de ser fofinha, de que me chamem pelo meu nome. Hoje em dia eu sei que eu não sou um homem, que eu jamais poderia ser homem. Por outro lado, eu não tenho mais a menor idéia do que significa ser mulher --- se eu aceitar que eu sou mulher, eu sinto que eu estou dissolvendo completamente o conceito de mulher. Ou talvez essa seja a forma de lidar com a raiva. Talvez eu só queira ser uma mulher masculina e pronto.

Voltando à pergunta: eu seria feminista se eu fosse homem? Bem, eu sei que eu sou feminista não exatamente porque eu sou mulher mas porque eu fui uma menina que queria em primeiro lugar ser um bicho, ou um garoto. Como seria a narrativa acima se eu tivesse nascido com um pintinho? Eu não teria a raiva, a insegurança, os insultos, a convicção de que o mundo estava sendo injusto comigo ao me taxar de menina... Eu acho que se eu tivesse nascido menino, eu teria me encaixado, vivido as aventuras, acompanhado os garotos. Eu não teria sofrido abuso, meu irmão e meus amigos nunca teriam deixado de me ver como um dos caras, eu não teria a pressão para entender o mundo das meninas, nem pra sofrer na mesa de depilação. Minhas calças teriam bolsos! Eu acho que se eu tivesse nascido menino eu simplesmente me sentiria mais encaixado no mundo, e teria menos motivação interna pra ser feminista.

É claro que eu poderia ser feminista mesmo assim. Mas sinto que todos os motivos pessoais que me levaram ao feminismo não estariam mais lá. Eu ainda seria feminista por motivos políticos, provavelmente, mas pra falar a verdade eu não sei se eu teria tanta convicção numa bandeira que não falasse com a minha história de vida (e talvez, também, eu fosse um garoto babaca e auto-centrado que não conseguiria ver a necessidade do feminismo). Talvez com os anos e o esclarecimento eu começasse a querer usar saia ou pintar o cabelo ou beijar garotos ou alguma outra coisa que me jogasse no feminismo. Talvez a história fosse totalmente diferente do que eu imagino. Mas tudo isso é irrelevante, porque esta é a minha história, não a de uma pessoa que nunca existiu. E esta é a minha história. Na minha história eu sou ora uma guerreira, ora uma lôba, ora uma deusa, e na minha história eu sou feminista porquê eu fui menina.

Fim.