quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Estrutura

Eu estou num momento da vida em que eu estou mais ou menos satisfeita com as coisas como estão, num âmbito pessoal, é claro, e com minhas perspectivas de futuro. Tem problemas, tem dificuldades, e certamente não é o meu sonho de criança --- mas quando criança eu nunca teria imaginado que matemática era tão legal, e eu não sabia de tanta coisa que existe; e embora tenha sonhos que eu ainda gostaria de cumprir, eu percebo que para investir neles eu teria que abrir mão de outras coisas. Eu consigo decidir e escolher fazer o que estou fazendo.

Apesar de eu ainda ter consciência do quanto a vida é feita de coincidências, acasos e pormenores, agora eu sinto que eu tenho controle sobre minhas decisões, e que estou escolhendo entre as opções o que realmente me agrada e me faz sentido. Eu comecei a sentir isso muito recentemente, e talvez isso esvaia novamente, mas por enquanto é isso -- as coisas se encaixam de um jeito que faz sentido até demais. E as coisas caminham tranqüilamente, coisas interessantes acontecem, tudo é novo e empolgante, e aos poucos eu tenho conseguido me ligar a coisas mais externas a mim, e começar novos projetos e conhecer cada vez mais novas pessoas.

Mas tem um preço. Eu consegui uma estabilidade emocional que eu não tinha antes, mas eu também me sinto estranhamente distanciada de tudo. Eu não sinto mais uma inveja debilitante, mas eu sinto uma estranha desilusão em relação ao futuro. Parece que nada será incrível, fascinante e mágico --- será só o mundo, como ele é. Meus amigos terão vidas estáveis. Quando as vidas deles forem empolgantes demais eu me sentirei ligeiramente incomodada com a falta de empolgação que eu estou sentindo. Eu tomarei decisões racionais, e às vezes as coisas serão incríveis.

O preço é que quando eu vou escrever eu planejo a história, eu projeto os personagens. O preço é que faz meses que eu não faço um desenho. O preço é que faz meses que eu não vejo o mar. O preço é me tornar um bicho da cidade, com amigos da cidade. Eu me sinto livre para tomar minha vida nas mãos... e entretanto eu me sinto tão pouco livre.

Eu sinto o mundo como um peso, uma inevitabilidade. Como se não houvesse mais para onde fugir. Tudo é humano, tudo é controlado. Eu me emociono quando eu vejo uma erva daninha crescendo entre as pedras quebradas de um piso. Eu tenho achado difícil me descontrair, esquecer dessa prisão que me cerca. Eu tenho vontade de quebrar carros na rua. Eu me sinto permanentemente doente. Semana passada eu tirei uma barata delicadamente de dentro do banheiro. A barata, horrível e repulsiva, me repugna menos do que o piso de cimento embaixo dela.

Aos poucos o mêdo paralizante do dia em que você descobrirá a pessoa inútil que eu sou está se dissipando, mesmo enquanto você me critica pelas coisas exatas que eu temo que você me critique. Eu aos poucos tenho me sentido mais e mais competente, razoável, correta. Eu me torno isso sob uma chuva de agressões e críticas. Eu sempre me senti um tanto alienígena. Quanto mais eu exponho minha alienidade, mais eu comprovo que ela é incompreendida. Nós vivemos num extremo, e entretanto sou eu que sempre sou acusada de ser extremista. Mas eu sou sim. Eu tive que optar entre o cinismo e o sentimento, entre a curiosidade fria e a empatia desmedida. Eu não deixarei que pessoas bem-ajustadas a este mundo desajustado façam julgamento de mim. Eu não me sinto nada.

Entretanto parece-me que sentir, e ser, algo que eu sou e sinto, é por si só uma agressão. Meu corpo é subversivo, meus sentimentos são subversivos. Minha incapacidade de me conformar é subversiva. Minha capacidade de me sentir bem na verdade me perturba.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Vento e Morte

Antes costumava ser só vento, sonho e aventura, mas agora toda vez que eu ando de bicicleta eu tenho mêdo da morte. É um mêdo que eu combato usando cuidado, racionalidade e uma dose grande de coragem. Andar de bicicleta não vai me fazer morrer mais cedo do que de carro, eu me digo.

Ser ciclista faz com que imediatamente todo mundo te odeie. Inclusive, e isso é o que me dói mais, pedestres. Eu em particular me porto, como ciclista, de forma cuidadosa e educada. Faço sinais com os braços, me mantenho atenta aos arredores, ocupo a faixa apropriada. Eventualmente, em dúvida entre me entalar entre ônibus ou me arriscar nas faixas de carros, subo na calçada, mas sempre faço isso na marcha mais lenta e dou passagem para todos os pedestres. Hoje inclusive pus um pé no chão e parei esperando pacientemente as pessoas saírem do ônibus. Inclusive quando uma mulher se assustou com a minha presença e pediu desculpas, eu respondi "Não, desculpa eu". Tudo poderia ter ficado por ali, exceto que a mulher se deu conta do que ela falou (ou do que eu falei) e imadiatamente se corrigiu "Quer dizer, não, você é que tem que se desculpar! Você não deveria estar aqui!" e começou um sermão e eu só fui embora. Quando a gente é ciclista todo mundo achar que tem que nos educar, que não sabemos o que estamos fazendo. Por incrível que pareça, nós sabemos. Somos nós que melhor sabemos o que temps que fazer.

Outra coisa insuportável a respeito de ser ciclista em São Paulo é como a bicicleta parece despertar o machismo em todos os homens na rua. Eu dificilmente recebo cantadas de rua quando estou a pé -- quando estou de bike, é comum. E com "cantadas" eu quero dizer coisas simplesmente ofensivas. Parece que nenhum homem consegue falar comigo sem sugerir que vou cair da bicicleta, que vou me machucar, de modo geral que a rua é um lugar perigoso para mim -- de novo, como se eu não soubesse o que estou fazendo. Hoje um pedestre na Augusta me mandou um olhar nojento e falou algo sobre eu estar sem sutiã, o que me perturbou porque eu nem tinha notado que eu estava sem sutiã, e também porque eu levei uns 10 anos pra juntar coragem de sair sem sutiã de vez em quando e para de noiar com meus peitos, porra! E mais tarde um homem saiu do seu caminho pra me acompanhar, usando a bicicleta como desculpa para xavecos, ao mesmo tempo dizendo que bicicleta não é meio de transporte, e me falando pra tomar cuidado. Por acaso a bicicleta tem uma aura de fragilidade e vulnerabilidade em volta dela? Pessoas em bicicletas parecem mais sucetíveis a machismo e paternalismo pra vocês?

Mas enfim, é claro que essas coisas não são o motivo principal para que a maior parte das pessoas não queira andar de bicicleta. Essas coisas são periféricas, mecanismos auxiliares de desistímulos, acompanhadas por aquelas ridículas campanhas na internet exigindo que ciclistas "respeitem os direitos dos outros", ameaçando ciclistas de não ter seus direitos respeitados (e não há nada que cada ciclista possa fazer para evitar essa ameaça, já que se uma pessoa ciclista queba qualquer uma das regras arbitárias, a classe toda é vista como agressora). Essas são as campanhas tranqüilas e de boinhas contra ciclistas. Como toda discriminação injusta e arbitrária, a discriminação contra ciclistas vem acompanhada de violência física e ameaças de morte.

Eu sei que com este texto eu vou desestimular pessoas a serem ciclistas, mas ao mesmo tempo eu já tentei e tentei estimular pessoas ao ciclismo, e eu sei que só posso fazer isso através do incentivo e exemplo e não fingindo que o mundo do ciclismo é um mar de rosas. Não. Como ciclista, eu coloco minha vida nas mãos de outras pessoas a cada viagem. Eu faço isso como pedestre também, é verdade, e às vezes andar de bike é bastante mais seguro que andar a pé. A diferença clara é que boa parte das agressões que sofro como ciclista são propositais. Sempre há os carros que nos ultrapassam deixando nenhuma margem para desequilíbrios ou desvios. Sempre há o ultrapassamento por ônibus. Há o motociclista que nos ultrapassa naquele espacinho entre duas faixas. Uma vez um carrão enorme e preto atravessou três faixas numa ponte vazia apenas para me tirar uma fina (e quase me joguei na contramão de mêdo). Hoje dois carros decidiram me ultrapassar ao mesmo tempo -- enquanto eu xingava o que me tirava uma fina pela esquerda e me desviava ligeiramente dele, me surge pelo lado direito, o lado para o qual eu me desviava, um babaca em alta velocidade, a uns quinze centímetros de mim, xingando e gritando ainda por cima. E tudo isso só porque eu me recusei a ficar na faixa de ônibus. Recentemente ouvi uma história de um amigo que estava dividindo a faixa de ônibus e um motorista de ônibus jogou o veículo em cima dele, obrigando-o a ir para a calçada ou morrer. Eu realmente queria que motoristas parassem de ameaçar nossas vidas, seja por raiva, seja por distração, seja por diversão.

Isso faz com que toda viagem de bicicleta acabe se tornando uma viagem de adrenalina, e quando eu chego em casa eu morro no sofá. Alguns caminhos são melhores que outros: Alto de Pinheiros é inteiramente horrível quase sempre; a Rebouças é mais ou menos tranqüila, e ajuda o fato de que é plana.

Às vezes andar de bicicleta é absolutamente maravilhoso. Hoje foi um desses dias: o sol estava bonito, mas não forte demais, a temperatura estava perfeita, o trânsito estava suportável, e eu pedalei da Vila Madalena para USP, da USP para o MASP (via Eusébio Matoso e Rebouças), da Paulista para a Vila Madalena (via Dr. Arnaldo). A princípio eu queria ir de bike até o metrô butantã e levar a bike comigo para a Paulista via metrô, para pegar mais leve no exercício e experimentar a hospitalidade da ViaQuatro (afinal, eles têm esses cartazinhos nojentos dizendo "aqui sua bicicleta é bem vinda", não é mesmo?). Eu poderia ter previsto que eu não poderia usar a bike no metrô durante um dia de semana. E que eu não poderia deixar a bici no bicicletário porque eu estava sem corrente. Então num impulso eu decidi pegar altas avenidas e subir pra Paulista usando minha própria força motriz. Não me arrependo de nada.

Quando eu estava pedalando na Paulista, num momento de calmaria entre as múltiplas agressões a que ser ciclista me expõe, eu me peguei pensando o quanto eu adoro isso, o quanto andar de bicicleta é muito melhor que qualquer outro meio de transporte, exceto, alumas vezes, andar à pé. Eu me sinto livre, leve, real, em contato com o mundo. Eu parei num farol ao lado de uma outra ciclista e ela me cumprimentou com um "Oi". Eu gosto muito mais de bicicleta do que de ônibus, e eu gosto de ônibus muito mais do que de carro. E além de ser um meio de transporte gostoso e um bom esporte, eu ainda me sinto bem por não estar contribuindo pra poluição, pra hegemonia do transporte privado, pra violência do trânsito. Eu não tenho nenhuma vergonha de admitir que quando eu estou de bike eu me sinto muito superior a todas as pessoas que podem usar bike e optam por usar carro. A sensação de andar de bike pelas ruas da cidade pe quase tão poderosa quanto a de andar a pé: a sensação de que a cidade nos pertence, e de que merecemos estar nela. Merecemos estar nela, apesar de todos acharem e dizerem o contrário.

E aí acontece aquele momento perfeito, às vezes logo depois de um fina entre dois carros que te deixam com o coração disparado e cheio de ódio, eu continuo pedalando, xingando em voz alta, e o sol continua batendo, e aquele vento na cara vai me acalmando, e de repente, quando eu menos espero, estou no viaduto sobre a Sumaré, e me assola a vista gloriosa da cidade, onde, por alguns instantes, eu consigo enxergar os morros feitos de parques, cobertos de um verde que para nós na metrópole é quase um mito. E por um momento eu tenho um lampejo de uma esperança que me evade durante todos os outros momentos da vida.

Nessa hora eu me pergunto como podem as outras pessoas não andar de bicicleta. Por esses breves momentos de glória em que estou usando o melhor meio de transporte jamais inventado, fazendo parte do vento, estando além da Cidade. Vento.

Nessa hora eu chego no túnel e o caos retorna por mais alguns minutos.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Gênero existe.

Estou chegando à conclusão de que o problema do feminismo radical transnegativo com o transfeminismo e a transgeneridade em geral é que o radfe acredita que gênero não existe, que gênero é uma criação cultural do patriarcado, a serviço do patriarcado. E como explicar a existência de pessoas que sabem, para si mesmas, que são de um ou outro gênero, a despeito do que lhe impuseram desde nascência, se gênero é apenas um fenômeno social? Dizer que gênero não existe é como dizer que orientação sexual não existe, que uma pessoa não-hétero nasce hétero como todo mundo e decide se tornar gay ou bi. É claro que o feminismo radical não deve estar realmente preocupado com questões de sexualidade, afinal, pessoas não-heterossexuais não constituem um grupo sistemáticamente oprimido e explorado em prol do Patriarcado, não?

Exceto que esse argumento soa realmente estúpido quando lembramos que garotos gays e meninas trans freqüentemente são marginalizadxs por sua identidade e sexualidade e exploradxs sexualmente, ou se tornam proffisionais do sexo de várias formas. Não é à tôa que a palavra "travesti" na linguagem corrente significa um tipo de prostituta.

Eu não acho que dá pra negar que gênero existe. E mesmo que ele seja um fenômeno fundamentalmente social e que interage com as construções sociais de diversas formas, isso não significa que ele possa ser reduzido a "uma imposição do patriarcado". Gênero não é apenas a forma como uma pessoa é criada e tratada como criança, mas também a forma como ela se reconhece em relação a esse tratamento. Gênero interage com sexualidade, com etnia, com credo, com identidade de gênero. Gênero parece uma opressão para a mulher cis a quem o gênero que lhe foi imposto é a sua principal forma de opressão, especialmente para a mulher cis branca de classe média e alta saudável para quem seu gênero é a única forma sistematizada de opressão, mas a opressão está no papel de gênero, nas imposições de gênero, não no gênero em si -- tanto que mesmo as feministas abolicionistas de gênero nunca pretenderam deixar de se considerar mulheres.

Às vezes eu sinto que seria uma traição ao feminismo deixar de me considerar mulher, e eu me pergunto se esse sentimento não é responsável por uma anulação completa das identidades trans-masculinas dentro do feminismo -- um sentimento de traição, pois uma "mulher" (chamada mulher pelo patriarcado, segundo as radfems) se nega a se considerar mulher então ela está abandonando o campo de batalha feminista. Como uma negra que deixasse de se considerar negra. Mas como dizer a um homem trans que ele não é um homem, quando é isso que ele sente dentro de si? Como dizer a um homem trans que independente de como ele se apresenta para o mundo, ele não é um homem porque se chamar de homem seria se apropriar da terminologia patriarcal -- porque permitir a ele se chamar de homem seria admitir que somos mulheres não apenas porque a mulheridade nos foi imposta pelo patriarcado, mas também porque conseguimos nos identificar com outras mulheres, e porque conseguimos viver entre mulheres sem nos sentir alienígenas, e porque nos sentimos, em algum sentido, mulheres. Aceitar a transgeneridade requer que se aceite o gênero, ou que se questione a própria identidade de gênero. Talvez o feminismo seja suficiente para definir sua identidade de gênero, talvez você defina seu gênero como "butch", mas certamente sua identidade pessoal está atrelada ao seu gênero, e se você consegue se considerar mulher e aceitar a segregação entre homens e mulheres se colocando no lado mulher, então você já está numa posição privilegiada em relação a um homem trans que possivelmente vai se sentir dividido entre poder ser homem e poder ser feminista (ainda bem que o transfeminismo existe).

O argumento do privilégio da criação masculina, que supostamente faz das mulheres trans homens, é ainda mais absurdo porque primeiro considera que meninas trans são capazes de atender às expectativas básicas de gênero masculino, quer dizer, passar como homens, e que conseguem internalizar as características da criação masculina que lhes darão vantagens na vida adulta, e segundo porque não considera que a mulher trans é uma mulher e que não recebe, ao se posicionar socialmente como mulher, nenhum dos privilégios masculinos.

E paro por aqui porque meus próximos argumentos seriam para combater imbecilidades e ignorâncias.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Ser mulher

Passar na banca ou no supermercado, na casa da tia ou no consultório, e ver uma revista "para mulheres" sempre me desagradou profundamente. Digo, houve aquele momento na adolescência em que elas me despertaram alguma curiosidade, porque todas as revistas de notícias eram chatas, e revistas femininas falavam de coisas mais humanas, e eu estava tentando descobrir qual era o meu papel no mundo e o que era essa coisa que eu deveria ter chamada "gênero". Por um momento breve eu gostei de ler as MarieClaires e as Cláudias que mães e tias levavam para as férias na praia e fins de semana no sítio. Mas a curiosidade passou e rapidamente virou asco. Com o tempo revistas femininas começaram a me dar engulhos de longe, só de vislumbrar as caras e roupas e poses que as modelos e celebridades faziam nas capas cheias de promessas de curas milagrosas para as doenças da gordura, da feiúra, da falta de tesão, da falta de homem, da falta de perfeição e dinheiro e adequação aos padrões. Aquela coisa de sempre, do mundo ao redor. Com o tempo eu passei a odiar revistar femininas com paixão, a ponto de achá-las mais desagradáveis que as revistas masculinas. Curioso como revistas masculinas são revistas de mulher pelada, enquanto revistas femininas ensinam mulheres a como ficarem peladas.

É um pouco difuso pra mim por que eu sinto uma repulsa tão forte por revista de mulher. Eu não consigo simplesmente passar por cima das capas, reconhecendo que eu não sou o público alvo da revista. Talvez porque seria falso, e fácil demais, descartar qualquer expressão midiática com o argumento de que "eu não sou o público alvo". Como dizer que eu não sou exatamente o público alvo de uma TPM ou de uma Nova, assim como fui o público alvo de Witch e Capricho, e serei, na idade apropriada, o público alvo da MarieClaire? Se você perguntasse a qualquer pessoa da minha família ela poderia me descrever como uma mulher de classe média-alta, entre 20 e 30 anos, buscando sua independência e interessada em homens, ainda por cima branca, e bonita; gosto de me vestir bem e me preocupo com meu corpo. Como mais a editora de uma revista dessas descreve seu público? E entretanto ao escrever essas palavras fica claro, gritantemente claro, que eu estou completamente fora desse suposto público-alvo.


No fundo tudo é uma questão de pertencimento. Provavelmente o que me dói mesmo nas revistas femininas é o quanto elas simbolizam tudo a que eu não pertenço e nunca pertencerei -- e nem quero pertencer. Quase nenhuma pessoa minha amiga de fato lê qualquer uma dessas revistas -- eu imagino minha irmã me dizendo agora como ela também odeia essas revistas, como a imagem de mulher que elas constroem é errada, como é mesmo ofensivo que elas sejam "voltadas para mulheres" quando uma parte tão grande das mulheres se sente enojada com os ideais que perpassam essas revistas que, como eu disse, insistem demais em ensinar como ficar pelada. Pra mim as revistas de mulher são o símbolo máximo dessa feminilidade que eu odeio, dessa femilidade que me rejeita e que ao mesmo tempo, com muito mais violência, tenta me assimilar.

No fundo tudo é uma questão de pertencimento. O que me dói mesmo, mais fundo, é o quanto essas revistas simbolizam todo um gênero que tenta me pertencer, me engolir. Essas revistas não existem num vácuo onde eu poderia esquecer de sua existência como eu esqueço da existência de um pornô bizarro japonês. Essas revistas são apenas uma entre muitas expressões desse feminino simpático, amoroso, que quer o meu bem, que quer me fazer melhor, que quer me fazer me vestir melhor, parecer melhor, falar melhor. Todo um gênero que quer me assimilar com sorrisos e reprimandas gentis. Conselhos. Elogios. Aquela coisa que elas chamam de empatia entre mulheres ou algo assim. Logo passará a chamar sororidade, espera o termo pegar no feminismo de manicure. As mulheres estão aqui para você. Estão aqui pra tudo, somos todas uma grande união, sorrateiramente longe dos olhares dos homens, aqui no espaço feminino onde podemos conversar sobre "coisa de mulher".

Coisa de mulher. A mulher da revista feminina pode até ser feminista ou não, pode ser lésbica ou não, pode ser bi, pode ser japonesa, pode fazer tae-kwon-dô, pode ser empresária e até mesmo cientista. Mas a mulher de revista sempre depila as pernas, mesmo se ela não tiver quase nada de pêlos, e se acontecer de ela ficar peluda mesmo ela usa calça jeans independente do calor. A mulher de revista vai no cabelereiro conversar com as amigas e pintas as unhas. A mulher de revista adora esse momento de intimidade feminina.

Eu detesto esse momento de intimidade feminina. Aliás eu detesto intimidade feminina. Pra mim é como uma cusparada na cara, depois de crescer aprendendo todos os detalhes repressores desse seu modelo de mulher, espera-se ainda que eu me identifique com mulheres, que eu me sinta confortável entre mulheres. De alguma forma eu deslizei pra fora do cistema nessa, pra mim "mulher" virou sinônimo de repressão, "mulher" como uma roupa apertada, como um sutiã que machuca, "mulher" como uma manicure desajeitada arrancando pedaços das minhas unhas, "mulher" como castração, "mulher" como depiladora arrancando pele e sangue e pêlos e variados pedaços de mim. Empatia de gênero como uma facada que me desespera mais do que misoginia. "Mulher" como assimilação, "mulher" como colonização.

Nada me desestabiliza tanto quanto ser colocada num grupo de pessoas que se identificam confortavelmente como mulheres. Mesmo que não sejam essas mulheres familiares, mulheres que pintam as unhas, que se depilam, que lêm revista feminina. Existe pelo menos um outro grupo de mulheres que me aflige: mulheres feministas, lésbicas, que quebram os padrões de gênero, masculinizadas, butch, punk, roqueiras, que mantém aquele impressionante orgulho feminista de gênero, aquele orgulho de ser mulher que resulta da ressignificação da palavra "mulher" em "aquilo que eu sou". Aliás as mulheres feministas em geral, com sua sororidade e whatnot (especialmente as muito definitivamente lésbicas), quando têm muita confiança na sua mulheridade, como me perturbam. Me perturbam quando me assimilam, quando me reconhecem como uma igual, quando dão a mim um tratamento amigável que recusam a amigos meus que me são mais próximos do que qualquer uma delas jamais será, quando negam às pessoas que são como minha família um carinho que dispensam a mim, mesmo quando me desejam seu desejo me perturba, talvez porque sinto muito profundamente que nossa relação é falsa, que nossa intimidade é falsa e ruirá quando elas enxergarem meu eu real, quando elas enxergarem que não sou uma delas (e me perturbam também quando vejo refletidos comportamentos meus iguais aos delas. Me perturbam pela semelhança, me afastam pela proximidade).

Me perturbam, todas as mulheres que sabem que são mulheres, me perturbam com uma certa inveja ruim, de quem não quer fazer parte de um grupo, apenas lhe inveja os privilégios. O privilégio de conseguir ser mulher. O privilégio de terem umas às outras. Tenho uma inveja louca, sempre tive, das mulheres para quem é fácil fazer amizade com outras mulheres. Eu por mim não tenho muita fé sequer na minha capacidade de fazer amizade com seres humanos. Eu sempre me senti um estranho no ninho entre mulheres, me esforçando para me assemelhar a elas, assimilando alguns comportamentos, fazendo toda uma farsa. Eu nunca entendi como era possível que elas pudessem conviver comigo. Eu ria de suas piadas, mas não conseguia entender a graça. E quando de fato fiz amizade com mulheres, me dei conta de que não era diferente de fazer amizade com homens. Anos depois, porém, descobri que muitos homens ainda mantinham a maior parte de sua masculinidade social escondida de mim, num lugar de macho onde podiam ficar as escrotices de moleques.

"Sororidade" é uma palavra que engasga na garganta. Sororidade entre pessoas que se desconhecem. É uma palavra que se usa com liberdade demais. Ou que eu não entendo. Talvez, como mil coisas no universo feminino, a idéia de sororidade esteja além da minha compreensão. O feminismo da sororidade está além de mim, um feminismo de mulheres não me abarca, não me carrega. Eu sinto os discursos de sororidade como assimilação, como colonização -- de mim, que não me sinto nada, de mim que tenho sangue branco, sangue europeu, sangue laçador de índia, sangue também, disperso talvez, de índia laçada, sangue de imigrante, sangue de bandeirante, entretanto me sinto uma etnia própria, muito selvagem para ser branca, muito branca para deixar de sê-lo -- mas tento imaginar como espera-se que todas as mulheres do mundo se unam, se sintam comuns. Uma palavra que ignora as diferenças, que nos supõe unidas e juntas por um ideal únicos, e nos une por nossos gêneros não me abarca, por mais que tente me assimilar.

Ou talvez seja apenas uma questão de pertencimento, insolúvel. Talvez eu sinta que o feminino tenta me assimilar justamente porque ele falha. Entretanto um sentimento de irmandade não é impossível, mesmo uma irmandade de gênero. O quanto me dói receber uma simpatia que não me cabe, que é negada às pessoas que são como eu, talvez seja justamente mais dolorosa pela imensa empatia que tenho pelas pessoas que reconheço que são, sim, como eu, e que entretanto são excluídas dessa simpatia.

Eu não faço parte do seu público-alvo, por mais que a revista feminina e a simpatia feminina e todas as feminilidades continuem tentando me assimilar. É hora de eu mandar as feminilidades todas pro espaço e parar de tentar ser mulher.

Sacrifíco Animal (post no facebook)

Esses dias eu estava pensando sobre sacrifício animal, por causa da discussão a respeito de macumba, cabeça de bode, tourada. Assim até fica parecendo que nossa sociedade considera um absurdo imperdoável matar animais inocentes. É claro que isso não é verdade. Consideramos (bem, vocês, eles, consideram) perfeitamente aceitável matar animais em muitos casos.

Acham perfeitamente normal matar porco, frango, boi, veado, alce, camarão, peixe, tubarão, carangueijo, e muitos outros tipos de bicho, com métodos que às vezes são dolorosos, para que possam comer uma parte de seus corpos. Inclusive comem alguns animais ainda meio vivos.

Aliás come-se peru assassinado no Natal, mata-se o peru, jogam-se fora os pedaços menos apetitosos do corpo dele e come-se algumas partes da carne. Esse tipo de ritual pode, deve, é amplamente aceito por todos. Usa-se o discurso de que "pode porque é de comer", mas vamos lembrar de toda a carne que já jogamos fora na vida, de toda a carne que apodrece no supermercado, que apodrece no caminho, que não é comprada porque o preço da carne não é baixo o suficiente, nós sabemos que isso existe e muito.

É engraçado como pessoas que comem carne de boi, porco e frango, que acham normal matar rato e gambá, e que vão pra Europa comer carne de veado, às vezes ficam horrorizadas quando vêm alguém comendo coelho ou cachorro ou algum bicho que eles acham bonitinho. Enquanto isso muitos veganos vêm a mesma cena e dão de ombros. Estamos acostumados a sentir aflição ao ver animais sendo mortos por motivos que consideramos absurdos. Hoje mesmo apareceu na minha timeline uma foto de ratinhos mortos, falando de um novo método "ecológico" de matar ratinhos. Eu não quero ver foto de bicho fofo morto, entendeu?

Vocês acham que é certo e necessário, e matam com as próprias mãos ou com venenos de todo tipo barata, rato, gambá, guaxinim, morcego, pombo, abelha, vespa, marimbondo, lesma, caracol, mariposa e qualquer outro animal que cometa o crime hediondo de fazer um ninho nas paredes de um prédio habitado por humanos, ou na terra abaixo dele, ou no terreno ao lado, ou dentro dele, e que ouse mostrar sua cara!

Acham normal matar animais o tempo todo por mil razões diferentes.

Acham normal matar, com venenos que afetam todas as formas de vida do lugar, animais que querem comer as plantas que produzimos para nos alimentar, ou para nos dar prazer, ou para alimentar nossos animais, ou para qualquer outro fim.

Acham necessário e piedoso matar animais domésticos e mesmo de estimação se constraírem alguma doença contagiosa perigosa, ou alguma doença terminal, ou se cometerem alguma violência contra humanos. No caso de animais rurais, uma pata quebrada já é às vezes suficiente para que sejam "sacrificados".

Acham normal e inevitável matar diversos animais para treinamento e pesquisa em diversas áreas, especialmente na área de saúde.

Acham aceitável matar TODAS as espécies de seres vivos (animais, plantas, fungos, microoosganismos, etc) indiscriminadamente para fazer represas para gerar energia para a indústria, ou para abrir espaço para pastos e plantações de monocultura, ou para o cultivo de madeira, ou para a instalação de indústrias, ou para a construção de moradia, ou para a construção de portos ou estradas, por outra razão qualquer que pareça importante na hora para quem pode tomar essa decisão.

Matam com armadilhas e armas de fogo raposas, lobos, onças, jacarés, tubarões e outros animais considerados "maus" e "perigosos", mesmo enquanto entidades ambientalistas tentam proteger estes animais da extinção (matam estes animais de forma não muito diferente da que mata-se índios, aliás, e por motivos semelhantes também).

E aí, dado tudo isso, eu acho muito suspeito que venham me falar em resgatar galinhas de macumba. Não que eu queira que galinhas morram, mas porque estamos atacando esse ritual de fundo de quintal, esse ritual de religião invisível afro-brasileira, e não os massacres que estão acontecendo agora mesmo, de milhões de espécies nativas, muitas vezes apenas para nosso prazer e conforto e lucro do capital?