segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Gênero existe.

Estou chegando à conclusão de que o problema do feminismo radical transnegativo com o transfeminismo e a transgeneridade em geral é que o radfe acredita que gênero não existe, que gênero é uma criação cultural do patriarcado, a serviço do patriarcado. E como explicar a existência de pessoas que sabem, para si mesmas, que são de um ou outro gênero, a despeito do que lhe impuseram desde nascência, se gênero é apenas um fenômeno social? Dizer que gênero não existe é como dizer que orientação sexual não existe, que uma pessoa não-hétero nasce hétero como todo mundo e decide se tornar gay ou bi. É claro que o feminismo radical não deve estar realmente preocupado com questões de sexualidade, afinal, pessoas não-heterossexuais não constituem um grupo sistemáticamente oprimido e explorado em prol do Patriarcado, não?

Exceto que esse argumento soa realmente estúpido quando lembramos que garotos gays e meninas trans freqüentemente são marginalizadxs por sua identidade e sexualidade e exploradxs sexualmente, ou se tornam proffisionais do sexo de várias formas. Não é à tôa que a palavra "travesti" na linguagem corrente significa um tipo de prostituta.

Eu não acho que dá pra negar que gênero existe. E mesmo que ele seja um fenômeno fundamentalmente social e que interage com as construções sociais de diversas formas, isso não significa que ele possa ser reduzido a "uma imposição do patriarcado". Gênero não é apenas a forma como uma pessoa é criada e tratada como criança, mas também a forma como ela se reconhece em relação a esse tratamento. Gênero interage com sexualidade, com etnia, com credo, com identidade de gênero. Gênero parece uma opressão para a mulher cis a quem o gênero que lhe foi imposto é a sua principal forma de opressão, especialmente para a mulher cis branca de classe média e alta saudável para quem seu gênero é a única forma sistematizada de opressão, mas a opressão está no papel de gênero, nas imposições de gênero, não no gênero em si -- tanto que mesmo as feministas abolicionistas de gênero nunca pretenderam deixar de se considerar mulheres.

Às vezes eu sinto que seria uma traição ao feminismo deixar de me considerar mulher, e eu me pergunto se esse sentimento não é responsável por uma anulação completa das identidades trans-masculinas dentro do feminismo -- um sentimento de traição, pois uma "mulher" (chamada mulher pelo patriarcado, segundo as radfems) se nega a se considerar mulher então ela está abandonando o campo de batalha feminista. Como uma negra que deixasse de se considerar negra. Mas como dizer a um homem trans que ele não é um homem, quando é isso que ele sente dentro de si? Como dizer a um homem trans que independente de como ele se apresenta para o mundo, ele não é um homem porque se chamar de homem seria se apropriar da terminologia patriarcal -- porque permitir a ele se chamar de homem seria admitir que somos mulheres não apenas porque a mulheridade nos foi imposta pelo patriarcado, mas também porque conseguimos nos identificar com outras mulheres, e porque conseguimos viver entre mulheres sem nos sentir alienígenas, e porque nos sentimos, em algum sentido, mulheres. Aceitar a transgeneridade requer que se aceite o gênero, ou que se questione a própria identidade de gênero. Talvez o feminismo seja suficiente para definir sua identidade de gênero, talvez você defina seu gênero como "butch", mas certamente sua identidade pessoal está atrelada ao seu gênero, e se você consegue se considerar mulher e aceitar a segregação entre homens e mulheres se colocando no lado mulher, então você já está numa posição privilegiada em relação a um homem trans que possivelmente vai se sentir dividido entre poder ser homem e poder ser feminista (ainda bem que o transfeminismo existe).

O argumento do privilégio da criação masculina, que supostamente faz das mulheres trans homens, é ainda mais absurdo porque primeiro considera que meninas trans são capazes de atender às expectativas básicas de gênero masculino, quer dizer, passar como homens, e que conseguem internalizar as características da criação masculina que lhes darão vantagens na vida adulta, e segundo porque não considera que a mulher trans é uma mulher e que não recebe, ao se posicionar socialmente como mulher, nenhum dos privilégios masculinos.

E paro por aqui porque meus próximos argumentos seriam para combater imbecilidades e ignorâncias.

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