quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Estrutura

Eu estou num momento da vida em que eu estou mais ou menos satisfeita com as coisas como estão, num âmbito pessoal, é claro, e com minhas perspectivas de futuro. Tem problemas, tem dificuldades, e certamente não é o meu sonho de criança --- mas quando criança eu nunca teria imaginado que matemática era tão legal, e eu não sabia de tanta coisa que existe; e embora tenha sonhos que eu ainda gostaria de cumprir, eu percebo que para investir neles eu teria que abrir mão de outras coisas. Eu consigo decidir e escolher fazer o que estou fazendo.

Apesar de eu ainda ter consciência do quanto a vida é feita de coincidências, acasos e pormenores, agora eu sinto que eu tenho controle sobre minhas decisões, e que estou escolhendo entre as opções o que realmente me agrada e me faz sentido. Eu comecei a sentir isso muito recentemente, e talvez isso esvaia novamente, mas por enquanto é isso -- as coisas se encaixam de um jeito que faz sentido até demais. E as coisas caminham tranqüilamente, coisas interessantes acontecem, tudo é novo e empolgante, e aos poucos eu tenho conseguido me ligar a coisas mais externas a mim, e começar novos projetos e conhecer cada vez mais novas pessoas.

Mas tem um preço. Eu consegui uma estabilidade emocional que eu não tinha antes, mas eu também me sinto estranhamente distanciada de tudo. Eu não sinto mais uma inveja debilitante, mas eu sinto uma estranha desilusão em relação ao futuro. Parece que nada será incrível, fascinante e mágico --- será só o mundo, como ele é. Meus amigos terão vidas estáveis. Quando as vidas deles forem empolgantes demais eu me sentirei ligeiramente incomodada com a falta de empolgação que eu estou sentindo. Eu tomarei decisões racionais, e às vezes as coisas serão incríveis.

O preço é que quando eu vou escrever eu planejo a história, eu projeto os personagens. O preço é que faz meses que eu não faço um desenho. O preço é que faz meses que eu não vejo o mar. O preço é me tornar um bicho da cidade, com amigos da cidade. Eu me sinto livre para tomar minha vida nas mãos... e entretanto eu me sinto tão pouco livre.

Eu sinto o mundo como um peso, uma inevitabilidade. Como se não houvesse mais para onde fugir. Tudo é humano, tudo é controlado. Eu me emociono quando eu vejo uma erva daninha crescendo entre as pedras quebradas de um piso. Eu tenho achado difícil me descontrair, esquecer dessa prisão que me cerca. Eu tenho vontade de quebrar carros na rua. Eu me sinto permanentemente doente. Semana passada eu tirei uma barata delicadamente de dentro do banheiro. A barata, horrível e repulsiva, me repugna menos do que o piso de cimento embaixo dela.

Aos poucos o mêdo paralizante do dia em que você descobrirá a pessoa inútil que eu sou está se dissipando, mesmo enquanto você me critica pelas coisas exatas que eu temo que você me critique. Eu aos poucos tenho me sentido mais e mais competente, razoável, correta. Eu me torno isso sob uma chuva de agressões e críticas. Eu sempre me senti um tanto alienígena. Quanto mais eu exponho minha alienidade, mais eu comprovo que ela é incompreendida. Nós vivemos num extremo, e entretanto sou eu que sempre sou acusada de ser extremista. Mas eu sou sim. Eu tive que optar entre o cinismo e o sentimento, entre a curiosidade fria e a empatia desmedida. Eu não deixarei que pessoas bem-ajustadas a este mundo desajustado façam julgamento de mim. Eu não me sinto nada.

Entretanto parece-me que sentir, e ser, algo que eu sou e sinto, é por si só uma agressão. Meu corpo é subversivo, meus sentimentos são subversivos. Minha incapacidade de me conformar é subversiva. Minha capacidade de me sentir bem na verdade me perturba.

2 comentários:

Lori disse...

Às vezes, eu imagino a nossa percepção do mundo como uma sucessão de molduras - como naquelas ilustrações que, quanto mais você se aproxima, mais ela se transforma em novas paisagens.

Pelo o que você disse, Mali, me parece que você está naquele momento tenso de mudança de uma moldura para outra mais confortável, como uma troca de exoesqueleto.

Obviamente, é difícil para mim generalizar assim sobre você, faz muito tempo que a gente não conversa comme il faut... E eu sempre acho horrendo quando estou presa em um mindset e aparece alguém pirilampeando e diz que aquilo vai passar, porque algumas idéias e sensações soam tão permanentes...

Você precisa de um pouco de mar, Marina?
A sensação de que tudo é humano, tudo é controlado, se apresenta mesmo como prisão; pior, apresenta-se como verdade inescapável em um mundo que talvez esteja mesmo se dirigindo nesse sentido. Agora, o que fazer em relação a isso?
Você precisa acampar um pouco?
Eu sei que eu preciso dessas coisas. E preciso não só em alguns momentos, mas preciso mesmo acreditar que no futuro posso me desvencilhar da cidade São Paulo, morar noutro lugar mais aberto. Eventualmente, os preços se tornam impagáveis.

Ao que me parece, você só é, e isso me parece perfeito.

Ozzer Seimsisk disse...

Sim! Sim, sim, sim sim. Eu preciso. E faz tanto tempo que eu preciso que eu não sei mais como se faz pra escapar da cidade.