Antes costumava ser só vento, sonho e aventura, mas agora toda vez que eu ando de bicicleta eu tenho mêdo da morte. É um mêdo que eu combato usando cuidado, racionalidade e uma dose grande de coragem. Andar de bicicleta não vai me fazer morrer mais cedo do que de carro, eu me digo.
Ser ciclista faz com que imediatamente todo mundo te odeie. Inclusive, e isso é o que me dói mais, pedestres. Eu em particular me porto, como ciclista, de forma cuidadosa e educada. Faço sinais com os braços, me mantenho atenta aos arredores, ocupo a faixa apropriada. Eventualmente, em dúvida entre me entalar entre ônibus ou me arriscar nas faixas de carros, subo na calçada, mas sempre faço isso na marcha mais lenta e dou passagem para todos os pedestres. Hoje inclusive pus um pé no chão e parei esperando pacientemente as pessoas saírem do ônibus. Inclusive quando uma mulher se assustou com a minha presença e pediu desculpas, eu respondi "Não, desculpa eu". Tudo poderia ter ficado por ali, exceto que a mulher se deu conta do que ela falou (ou do que eu falei) e imadiatamente se corrigiu "Quer dizer, não, você é que tem que se desculpar! Você não deveria estar aqui!" e começou um sermão e eu só fui embora. Quando a gente é ciclista todo mundo achar que tem que nos educar, que não sabemos o que estamos fazendo. Por incrível que pareça, nós sabemos. Somos nós que melhor sabemos o que temps que fazer.
Outra coisa insuportável a respeito de ser ciclista em São Paulo é como a bicicleta parece despertar o machismo em todos os homens na rua. Eu dificilmente recebo cantadas de rua quando estou a pé -- quando estou de bike, é comum. E com "cantadas" eu quero dizer coisas simplesmente ofensivas. Parece que nenhum homem consegue falar comigo sem sugerir que vou cair da bicicleta, que vou me machucar, de modo geral que a rua é um lugar perigoso para mim -- de novo, como se eu não soubesse o que estou fazendo. Hoje um pedestre na Augusta me mandou um olhar nojento e falou algo sobre eu estar sem sutiã, o que me perturbou porque eu nem tinha notado que eu estava sem sutiã, e também porque eu levei uns 10 anos pra juntar coragem de sair sem sutiã de vez em quando e para de noiar com meus peitos, porra! E mais tarde um homem saiu do seu caminho pra me acompanhar, usando a bicicleta como desculpa para xavecos, ao mesmo tempo dizendo que bicicleta não é meio de transporte, e me falando pra tomar cuidado. Por acaso a bicicleta tem uma aura de fragilidade e vulnerabilidade em volta dela? Pessoas em bicicletas parecem mais sucetíveis a machismo e paternalismo pra vocês?
Mas enfim, é claro que essas coisas não são o motivo principal para que a maior parte das pessoas não queira andar de bicicleta. Essas coisas são periféricas, mecanismos auxiliares de desistímulos, acompanhadas por aquelas ridículas campanhas na internet exigindo que ciclistas "respeitem os direitos dos outros", ameaçando ciclistas de não ter seus direitos respeitados (e não há nada que cada ciclista possa fazer para evitar essa ameaça, já que se uma pessoa ciclista queba qualquer uma das regras arbitárias, a classe toda é vista como agressora). Essas são as campanhas tranqüilas e de boinhas contra ciclistas. Como toda discriminação injusta e arbitrária, a discriminação contra ciclistas vem acompanhada de violência física e ameaças de morte.
Eu sei que com este texto eu vou desestimular pessoas a serem ciclistas, mas ao mesmo tempo eu já tentei e tentei estimular pessoas ao ciclismo, e eu sei que só posso fazer isso através do incentivo e exemplo e não fingindo que o mundo do ciclismo é um mar de rosas. Não. Como ciclista, eu coloco minha vida nas mãos de outras pessoas a cada viagem. Eu faço isso como pedestre também, é verdade, e às vezes andar de bike é bastante mais seguro que andar a pé. A diferença clara é que boa parte das agressões que sofro como ciclista são propositais. Sempre há os carros que nos ultrapassam deixando nenhuma margem para desequilíbrios ou desvios. Sempre há o ultrapassamento por ônibus. Há o motociclista que nos ultrapassa naquele espacinho entre duas faixas. Uma vez um carrão enorme e preto atravessou três faixas numa ponte vazia apenas para me tirar uma fina (e quase me joguei na contramão de mêdo). Hoje dois carros decidiram me ultrapassar ao mesmo tempo -- enquanto eu xingava o que me tirava uma fina pela esquerda e me desviava ligeiramente dele, me surge pelo lado direito, o lado para o qual eu me desviava, um babaca em alta velocidade, a uns quinze centímetros de mim, xingando e gritando ainda por cima. E tudo isso só porque eu me recusei a ficar na faixa de ônibus. Recentemente ouvi uma história de um amigo que estava dividindo a faixa de ônibus e um motorista de ônibus jogou o veículo em cima dele, obrigando-o a ir para a calçada ou morrer. Eu realmente queria que motoristas parassem de ameaçar nossas vidas, seja por raiva, seja por distração, seja por diversão.
Isso faz com que toda viagem de bicicleta acabe se tornando uma viagem de adrenalina, e quando eu chego em casa eu morro no sofá. Alguns caminhos são melhores que outros: Alto de Pinheiros é inteiramente horrível quase sempre; a Rebouças é mais ou menos tranqüila, e ajuda o fato de que é plana.
Às vezes andar de bicicleta é absolutamente maravilhoso. Hoje foi um desses dias: o sol estava bonito, mas não forte demais, a temperatura estava perfeita, o trânsito estava suportável, e eu pedalei da Vila Madalena para USP, da USP para o MASP (via Eusébio Matoso e Rebouças), da Paulista para a Vila Madalena (via Dr. Arnaldo). A princípio eu queria ir de bike até o metrô butantã e levar a bike comigo para a Paulista via metrô, para pegar mais leve no exercício e experimentar a hospitalidade da ViaQuatro (afinal, eles têm esses cartazinhos nojentos dizendo "aqui sua bicicleta é bem vinda", não é mesmo?). Eu poderia ter previsto que eu não poderia usar a bike no metrô durante um dia de semana. E que eu não poderia deixar a bici no bicicletário porque eu estava sem corrente. Então num impulso eu decidi pegar altas avenidas e subir pra Paulista usando minha própria força motriz. Não me arrependo de nada.
Quando eu estava pedalando na Paulista, num momento de calmaria entre as múltiplas agressões a que ser ciclista me expõe, eu me peguei pensando o quanto eu adoro isso, o quanto andar de bicicleta é muito melhor que qualquer outro meio de transporte, exceto, alumas vezes, andar à pé. Eu me sinto livre, leve, real, em contato com o mundo. Eu parei num farol ao lado de uma outra ciclista e ela me cumprimentou com um "Oi". Eu gosto muito mais de bicicleta do que de ônibus, e eu gosto de ônibus muito mais do que de carro. E além de ser um meio de transporte gostoso e um bom esporte, eu ainda me sinto bem por não estar contribuindo pra poluição, pra hegemonia do transporte privado, pra violência do trânsito. Eu não tenho nenhuma vergonha de admitir que quando eu estou de bike eu me sinto muito superior a todas as pessoas que podem usar bike e optam por usar carro. A sensação de andar de bike pelas ruas da cidade pe quase tão poderosa quanto a de andar a pé: a sensação de que a cidade nos pertence, e de que merecemos estar nela. Merecemos estar nela, apesar de todos acharem e dizerem o contrário.
E aí acontece aquele momento perfeito, às vezes logo depois de um fina entre dois carros que te deixam com o coração disparado e cheio de ódio, eu continuo pedalando, xingando em voz alta, e o sol continua batendo, e aquele vento na cara vai me acalmando, e de repente, quando eu menos espero, estou no viaduto sobre a Sumaré, e me assola a vista gloriosa da cidade, onde, por alguns instantes, eu consigo enxergar os morros feitos de parques, cobertos de um verde que para nós na metrópole é quase um mito. E por um momento eu tenho um lampejo de uma esperança que me evade durante todos os outros momentos da vida.
Nessa hora eu me pergunto como podem as outras pessoas não andar de bicicleta. Por esses breves momentos de glória em que estou usando o melhor meio de transporte jamais inventado, fazendo parte do vento, estando além da Cidade. Vento.
Nessa hora eu chego no túnel e o caos retorna por mais alguns minutos.
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