quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Ser mulher

Passar na banca ou no supermercado, na casa da tia ou no consultório, e ver uma revista "para mulheres" sempre me desagradou profundamente. Digo, houve aquele momento na adolescência em que elas me despertaram alguma curiosidade, porque todas as revistas de notícias eram chatas, e revistas femininas falavam de coisas mais humanas, e eu estava tentando descobrir qual era o meu papel no mundo e o que era essa coisa que eu deveria ter chamada "gênero". Por um momento breve eu gostei de ler as MarieClaires e as Cláudias que mães e tias levavam para as férias na praia e fins de semana no sítio. Mas a curiosidade passou e rapidamente virou asco. Com o tempo revistas femininas começaram a me dar engulhos de longe, só de vislumbrar as caras e roupas e poses que as modelos e celebridades faziam nas capas cheias de promessas de curas milagrosas para as doenças da gordura, da feiúra, da falta de tesão, da falta de homem, da falta de perfeição e dinheiro e adequação aos padrões. Aquela coisa de sempre, do mundo ao redor. Com o tempo eu passei a odiar revistar femininas com paixão, a ponto de achá-las mais desagradáveis que as revistas masculinas. Curioso como revistas masculinas são revistas de mulher pelada, enquanto revistas femininas ensinam mulheres a como ficarem peladas.

É um pouco difuso pra mim por que eu sinto uma repulsa tão forte por revista de mulher. Eu não consigo simplesmente passar por cima das capas, reconhecendo que eu não sou o público alvo da revista. Talvez porque seria falso, e fácil demais, descartar qualquer expressão midiática com o argumento de que "eu não sou o público alvo". Como dizer que eu não sou exatamente o público alvo de uma TPM ou de uma Nova, assim como fui o público alvo de Witch e Capricho, e serei, na idade apropriada, o público alvo da MarieClaire? Se você perguntasse a qualquer pessoa da minha família ela poderia me descrever como uma mulher de classe média-alta, entre 20 e 30 anos, buscando sua independência e interessada em homens, ainda por cima branca, e bonita; gosto de me vestir bem e me preocupo com meu corpo. Como mais a editora de uma revista dessas descreve seu público? E entretanto ao escrever essas palavras fica claro, gritantemente claro, que eu estou completamente fora desse suposto público-alvo.


No fundo tudo é uma questão de pertencimento. Provavelmente o que me dói mesmo nas revistas femininas é o quanto elas simbolizam tudo a que eu não pertenço e nunca pertencerei -- e nem quero pertencer. Quase nenhuma pessoa minha amiga de fato lê qualquer uma dessas revistas -- eu imagino minha irmã me dizendo agora como ela também odeia essas revistas, como a imagem de mulher que elas constroem é errada, como é mesmo ofensivo que elas sejam "voltadas para mulheres" quando uma parte tão grande das mulheres se sente enojada com os ideais que perpassam essas revistas que, como eu disse, insistem demais em ensinar como ficar pelada. Pra mim as revistas de mulher são o símbolo máximo dessa feminilidade que eu odeio, dessa femilidade que me rejeita e que ao mesmo tempo, com muito mais violência, tenta me assimilar.

No fundo tudo é uma questão de pertencimento. O que me dói mesmo, mais fundo, é o quanto essas revistas simbolizam todo um gênero que tenta me pertencer, me engolir. Essas revistas não existem num vácuo onde eu poderia esquecer de sua existência como eu esqueço da existência de um pornô bizarro japonês. Essas revistas são apenas uma entre muitas expressões desse feminino simpático, amoroso, que quer o meu bem, que quer me fazer melhor, que quer me fazer me vestir melhor, parecer melhor, falar melhor. Todo um gênero que quer me assimilar com sorrisos e reprimandas gentis. Conselhos. Elogios. Aquela coisa que elas chamam de empatia entre mulheres ou algo assim. Logo passará a chamar sororidade, espera o termo pegar no feminismo de manicure. As mulheres estão aqui para você. Estão aqui pra tudo, somos todas uma grande união, sorrateiramente longe dos olhares dos homens, aqui no espaço feminino onde podemos conversar sobre "coisa de mulher".

Coisa de mulher. A mulher da revista feminina pode até ser feminista ou não, pode ser lésbica ou não, pode ser bi, pode ser japonesa, pode fazer tae-kwon-dô, pode ser empresária e até mesmo cientista. Mas a mulher de revista sempre depila as pernas, mesmo se ela não tiver quase nada de pêlos, e se acontecer de ela ficar peluda mesmo ela usa calça jeans independente do calor. A mulher de revista vai no cabelereiro conversar com as amigas e pintas as unhas. A mulher de revista adora esse momento de intimidade feminina.

Eu detesto esse momento de intimidade feminina. Aliás eu detesto intimidade feminina. Pra mim é como uma cusparada na cara, depois de crescer aprendendo todos os detalhes repressores desse seu modelo de mulher, espera-se ainda que eu me identifique com mulheres, que eu me sinta confortável entre mulheres. De alguma forma eu deslizei pra fora do cistema nessa, pra mim "mulher" virou sinônimo de repressão, "mulher" como uma roupa apertada, como um sutiã que machuca, "mulher" como uma manicure desajeitada arrancando pedaços das minhas unhas, "mulher" como castração, "mulher" como depiladora arrancando pele e sangue e pêlos e variados pedaços de mim. Empatia de gênero como uma facada que me desespera mais do que misoginia. "Mulher" como assimilação, "mulher" como colonização.

Nada me desestabiliza tanto quanto ser colocada num grupo de pessoas que se identificam confortavelmente como mulheres. Mesmo que não sejam essas mulheres familiares, mulheres que pintam as unhas, que se depilam, que lêm revista feminina. Existe pelo menos um outro grupo de mulheres que me aflige: mulheres feministas, lésbicas, que quebram os padrões de gênero, masculinizadas, butch, punk, roqueiras, que mantém aquele impressionante orgulho feminista de gênero, aquele orgulho de ser mulher que resulta da ressignificação da palavra "mulher" em "aquilo que eu sou". Aliás as mulheres feministas em geral, com sua sororidade e whatnot (especialmente as muito definitivamente lésbicas), quando têm muita confiança na sua mulheridade, como me perturbam. Me perturbam quando me assimilam, quando me reconhecem como uma igual, quando dão a mim um tratamento amigável que recusam a amigos meus que me são mais próximos do que qualquer uma delas jamais será, quando negam às pessoas que são como minha família um carinho que dispensam a mim, mesmo quando me desejam seu desejo me perturba, talvez porque sinto muito profundamente que nossa relação é falsa, que nossa intimidade é falsa e ruirá quando elas enxergarem meu eu real, quando elas enxergarem que não sou uma delas (e me perturbam também quando vejo refletidos comportamentos meus iguais aos delas. Me perturbam pela semelhança, me afastam pela proximidade).

Me perturbam, todas as mulheres que sabem que são mulheres, me perturbam com uma certa inveja ruim, de quem não quer fazer parte de um grupo, apenas lhe inveja os privilégios. O privilégio de conseguir ser mulher. O privilégio de terem umas às outras. Tenho uma inveja louca, sempre tive, das mulheres para quem é fácil fazer amizade com outras mulheres. Eu por mim não tenho muita fé sequer na minha capacidade de fazer amizade com seres humanos. Eu sempre me senti um estranho no ninho entre mulheres, me esforçando para me assemelhar a elas, assimilando alguns comportamentos, fazendo toda uma farsa. Eu nunca entendi como era possível que elas pudessem conviver comigo. Eu ria de suas piadas, mas não conseguia entender a graça. E quando de fato fiz amizade com mulheres, me dei conta de que não era diferente de fazer amizade com homens. Anos depois, porém, descobri que muitos homens ainda mantinham a maior parte de sua masculinidade social escondida de mim, num lugar de macho onde podiam ficar as escrotices de moleques.

"Sororidade" é uma palavra que engasga na garganta. Sororidade entre pessoas que se desconhecem. É uma palavra que se usa com liberdade demais. Ou que eu não entendo. Talvez, como mil coisas no universo feminino, a idéia de sororidade esteja além da minha compreensão. O feminismo da sororidade está além de mim, um feminismo de mulheres não me abarca, não me carrega. Eu sinto os discursos de sororidade como assimilação, como colonização -- de mim, que não me sinto nada, de mim que tenho sangue branco, sangue europeu, sangue laçador de índia, sangue também, disperso talvez, de índia laçada, sangue de imigrante, sangue de bandeirante, entretanto me sinto uma etnia própria, muito selvagem para ser branca, muito branca para deixar de sê-lo -- mas tento imaginar como espera-se que todas as mulheres do mundo se unam, se sintam comuns. Uma palavra que ignora as diferenças, que nos supõe unidas e juntas por um ideal únicos, e nos une por nossos gêneros não me abarca, por mais que tente me assimilar.

Ou talvez seja apenas uma questão de pertencimento, insolúvel. Talvez eu sinta que o feminino tenta me assimilar justamente porque ele falha. Entretanto um sentimento de irmandade não é impossível, mesmo uma irmandade de gênero. O quanto me dói receber uma simpatia que não me cabe, que é negada às pessoas que são como eu, talvez seja justamente mais dolorosa pela imensa empatia que tenho pelas pessoas que reconheço que são, sim, como eu, e que entretanto são excluídas dessa simpatia.

Eu não faço parte do seu público-alvo, por mais que a revista feminina e a simpatia feminina e todas as feminilidades continuem tentando me assimilar. É hora de eu mandar as feminilidades todas pro espaço e parar de tentar ser mulher.

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