terça-feira, 26 de junho de 2012

A Lagoa de Cristal

(one of my oldests daydreams was this of a cleansing magic. it could heal body and mind, clean air and earth and water, and make everything good and full of beauty)
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E de repente estavam numa clareira, e as árvores estavam coloridas com reflexos inconstantes de água clara. A lagoa parecia apenas uma lagoa comum, e, como acontece com as lagoas comuns, a vegetação era mais vistosa e mais verde bem perto da água. Dava pra ver as pedras arredondadas brilhando no lugar onde a lagoa escoava num rio raso, mas o rio que a alimentava estava do outro lado, meio longe e escondido na mata. "Não parece muito impressionante", pensou Marin, e pôs um pé dentro da água.

O pé queimou como se pisasse em fogo, e ela pulou para trás de reflexo, assustada, as patas ardendo e o coração disparado. Rafael pulou junto, de susto; os dois meninos olharam pra ela preocupados.

-- A água às vezes arde enquanto cura. -- disse Rind, enquanto Marin recusava ajuda pra levantar. -- A gente tem que entrar devagar, por isso e porque precisa estar calmo pra não... pra não esquecer o que significa estar bem.

-- O que quer dizer? -- perguntou Rafa, com os dois pés dentro da lagoa, -- Está fazendo cócegas, mas é gostoso. -- ele fechou os olhos e foi andando lentamente pra dentro da água. Esse era o lugar certo pra fazer isso, Rind tinha dito, porque a lagoa ali era rasa e ia afundando lentamente. Mas havia também uma trilha para cima da pedra que ficava na parte mais profunda da lagoa, de onde alguém menos cauteloso poderia pular, ou ser jogado. Rind tinha dito que se você fosse jogado na Lagoa, corria o risco de se dissolver na água, ou virar um unlak ou um cardume de peixes. Marin não acreditava em unlaks ou em gente virando água e peixe. Ela tinha visto o homem-cavalo e o lobo que corria pelas nuvens, mas esses eram outros tipos de mágica. Rind tinha dito que depois da Lagoa ela ia ser tão forte quanto o Unicórnio. Que os homens-cavalo batizavam todas as suas crianças nessa água pra receber a bênção dos Guardiões, que eles sempre nos guardem. Mas a Lagoa ardia nos seus pés, enquanto Rafael entrava nela tranqüilamente, de olhos fechados. Não era justo. Tudo era sempre mais fácil para os meninos! Mas por um instante Marin viu Rafael fazer uma careta ao dar um passo. Talvez ele estivesse só fingindo, e aí era ainda pior. Ela não podia deixar ele ser mais corajoso que ela. Tudo era sempre mais fácil para um menino, mas ela era melhor que ele, ela fazia as coisas mais difíceis.

Rind gritou -- Marin, não corr --- mas ela estava correndo e tropeçando e caindo na água, tchi-bum, e a lagoa era funda o bastante pra ela de repente estar no fundo, e tudo era claro, cegante de claro, e doía e ardía, queimava como entrar numa banheira de gelo.

Marin de repente queria sair dali, não queria sentir mais dor. Ela era uma mulher, diziam que mulheres sentem menos dor, ela nunca tinha sentido tanta dor assim, nem naquela vez jogando bola - mas era impossível pensar em jogar bola, ela queria gritar, queria que tivesse menos luz, até a água dentro da sua boca ardia na sua língua, no céu da boca, como uma pasta de dente ardida demais. Em algum livro tinha um homem que ficava ferido e desmaiava de dor, será que ela ia desmaiar de dor?

E então talvez ela estivesse desmaiando, porque a dor passou, e então vieram as sensações estranhas. As sensações estranhas eram de calor e frio ao mesmo tempo, de molhado mas ressecado, e havia um vento extremamente forte que ameaçava levá-la pelos ares. Seus olhos estavam cegos, então só restava sentir. Marin sentiu que estava numa floresta, com cheiro de chuva e mato e o cheiro do pêlo do lôbo branco na sua pele, na sua bôca, junto com a sensação da fôrça que vinha nas suas quatro patas, e cheio daquele som das árvores chacoalhadas pela ventania -- depois sentiu que ondas batiam forte nas suas pernas por todos os lados, e um vento louco jogava água e areia na sua cara, e a balançava como uma árvore -- depois que água corria por ima dela como se ela fosse uma sarjeta, ou o leito de um rio caudaloso, mas rodas e patas corriam por ela, e ela se sentia vibrar como um tambor -- de repente ela se sentiu seca e forte como um cavalo, com cheiro de estábulo de fazenda, e vontade de correr pelo mundo -- e por um momento todas as sensações ficaram muito confusas quando ela começou a correr simultaneamente em todas as direções, e ela lembrou de quando ela ficava na varanda de um apartamento olhando os carros passando e querendo ser o Vento.

Então o Vento voltou a ser uma pessoa, que pôs as patas muito confusas no fundo da lagoa. Agora ela conseguia ver tudo muito claramente, e por um momento sentiu se sentiu maravilhosa - tudo estava no lugar, e ela podia se mexer como quisesse, e respirar debaixo d'água, e ser qualquer coisa! Seu corpo mudava de forma e tudo mudava de cor, e parecia que sua mente também estava se mexendo. Mas aos poucos a alegria foi mudando para desespêro, porque seus dentes pareciam moles e soltos mudando de forma sem parar no lugar, e suas mão de repente não pareciam mais mãos de nada que ela conhecesse, e sua pele ficava mudando de textura e até seus pêlos não ficavam de um jeito só. Rind tinha dito pra tomar cuidado, que era importante ser você mesmo no final. Marin não queria virar uma unlak ou um cardume. Nem mesmo queria ser o Vento. Era tão estranho não ser ninguém desse jeito, e ela tinha tanta coisa que ela era. Marin decidiu que estar bem era ser você mesmo. E então ela teve braços de menina e pernas de menina, e barriga de menina, e olhos de menina que viam muito bem debaixo d'água, e tentou lembrar como era ter dentes de menina, e como era ficar de pé, e respirar, e como eram seus cabelos, e seus pés, e suas outras patas. No fim, ela estava bastante parecida consigo mesma, e se sentindo leve, porque não tinha lembrado de devolver o cansaço, a fome e outros desconfortos de menina.

O fundo da lagoa era azul e bonito e cheio de peixes que Marin queria perseguir e tentar pegar. Mas meninas não respiravam debaixo d'água, e logo ela estava se desesperando e procurando voltar à superfície, à superfície, onde haveria ar!

Quando saiu da Lagoa, arfando e pingando água brilhante, que agora parecia um pouco assustadora, Marin encontrou Rafael, saindo da Lagoa rindo e brincando com a água.

-- Foi incível, Rind! Eu fui um pássaro e uma cobra, e nadei como uma tartaruga e voei como um falcão! Eu fui de todas as cores e de todas as formas, e eu sinto como se fosse pra ser assim mesmo, eu vou ser tudo, eu vou me tornar tudo o que eu quiser! Você não se sente assim, Marin? É tão incrível! Eu vou voar além das nuvens! E você, Marin, o que você foi?

Marin olhou para Rafa seriamente, pensando em como ele estava levando aquilo como se tivesse sido uma brincadeira deliciosa, como tomar sorvete e ir no parque de diversões. Mas, pensando bem, ela se sentia bem, agora que tinha acabado. Era como se ela tivesse se afogado e voltado à vida de uma vez só, mas agora estava tudo bem. Seu corpo inteiro ainda ardia um pouco, mas era um ardor leve, que um vendedor de pasta de dente chamaria de "refrescância". Só restava um pouco de estranheza, de não ter muita certeza de se ela ainda era a mesma pessoa de antes. Ou talvez ela fosse, e tudo aquilo tivesse sido só um sonho.

-- Marin? O que você foi?
-- O que mais, Rafa? Eu fui um lôbo.