sábado, 7 de dezembro de 2013

Das coisas das quais eu às vezes sinto falta

Meu último texto me deu um olé e me fez escrever algo diferente do que eu planejava. Mas talvez fosse necessário colocar aquelas coisas (isto é, eu) em um contexto antes de escrever isto que eu quero escrever. Pois bem, vamos tentar de novo.

Ultimamente tenho pensado com uma certa freqüência naquelas coisas que eu apreciava do tempo (relativamente curto) em que eu me senti plenamente confortável e apropriado como mulher. Aqueles tempos em que eu me vesti de forma totalmente "feminina" e senti prazer nisso, sabe. Aqueles tempos em que eu acreditei que havia algo de mágico, de divino, de sagrado em ser mulher. Tempos muito estranhos.

Pra falar a verdade eu penso pouco nessas coisas; normalmente eu penso mais no mêdo que eu tenho de mudar, de que as mudanças me levem a me afastar de pessoas que eu quero, que sair do armário e arrancar a máscara me desamarre dessa personagem que existe e que é ainda eu, mas não é eu. Eu não quero que meus amigos falem no futuro daquela Eu que eles conheceram e que morreu quando eu nasci. Mas eu normalmente não penso muito nas vantagens intrínsecas dessa antiga Eu, então tenho que aproveitar que estou pensando nisso.
Enfim.

Quando eu me vestia sempre de forma sexy, eu tinha uma confiança ferrenha de que eu era extremamente sexy. Eu era uma pessoa bonita, gostosa, autoconfiante, e eu sabia que eu poderia conquistar qualquer pessoa desde que eu tentasse. Eu fazia muito sexo, muito mais do que eu fazia antes e muito mais do que eu tenho vontade de fazer hoje. O jogo de sedução era a coisa mais empolgante do mundo. Eu me apaixonava o tempo todo também, de uma forma mais sexual do que acontece agora. Eu sabia que eu era a fêmea alfa, a tal ponto que mulheres tão bonitas quanto eu me faziam me sentir ameaçada. Quando eu conhecia homens novos, minha primeira atitude era uma troca sugestiva de olhares. Só para estabelecer as regras. Eu não diria que minha auto-estima era realmente alta, mas eu tinha esse pilar no qual me sustentar -- as pessoas gostavam de mim, se atraíam por mim, e eu sempre podia sair por aí e viver um romance.

Ultimamente eu tenho pensado nisso às vezes, como era confortável saber (nem sei julgar, agora, se era verdade) que eu seria desejada, saber que haveriam flertes, jogos de sedução, saber que a pessoa que eu quisesse me quereria de volta e essas coisas todas. Saber que minha presença não seria notada. Uma pessoa pode sobreviver à base desse conhecimento. Mas eu meio que abri mão disso quando eu decidi deixar pra trás a cisheterossexualidade, e foi uma renúncia mais ou menos consciente. Em boa parte eu cansei da auto-enganação de que bastaria tentar quando eu não tentaria, e talvez uma parte tenha sido a frustração com os homens gays, as mulheres heteras, as mulheres gays, e os homens monogâmicos. Mas uma parte maior foi simplesmente conseguir mudar o foco da minha identidade, da sexualidade para outras coisas mais relevantes, como posicionamento político. De repente eu não preciso mais participar de atividades sexuais ousadas pra ter orgulho de mim. De repente ser a fêmea alfa não é mais importante nem suficiente. E daí se alguns homens heterossexuais se interessaram por mim? Você não tem nada melhor em que basear a sua auto-estima?

Esses questionamentos me levaram a fazer uma pequena análise crítica dessa história toda, e eu me percebi contando a seguinte história:

A história começa com eu sendo uma guriazinha virgem de uns quatro anos. Desde pequena eu tinha uma determinação ferrenha que eu só fui entender anos depois quando minha mãe me explicou, sabe. Eu me achava um lixo na maior parte do tempo, mas a minha culpa por não ser a filha, aluna, pessoa que eu deveria ser não era grande o suficiente pra afogar as coisas que realmente importavam. Eu tinha uma missão. Não tem como desmoralizar uma pessoa que tem uma missão, especialmente se você nem sabe disso. Em algum momento da vida eu tive certeza de que eu ia ganhar o Nobel da literatura quando eu cumprisse minha missão. Eu tinha uma atitude meio vingativa, de que eu ia voltar com meus livros publicados e mostrar como toda a minha inadequação social tinha um Propósito. É claro que, naquela época bizarra e mutante da vida entre os sete e os quatorze anos, eu me achava enorme, desengonçada, feia, e que nenhum garoto ia gostar de mim nunca, muito menos aquele que eu admirava. Na real, a parte mais feliz foi dos doze até o fim dos quatorze, quando eu meio que esqueci de me apaixonar por garotos de tão envolvida que eu estava com meus amigos incríveis e as coisas que a gente fazia. Eu lembro de admirar os joguinhos de sedução das pessoas e de me surpreender toda vez que parecia que eu estava em um deles. Acho que se pá eu não me considerava bem humano.

Mas é claro que os hormônios me alcançaram eventualmente; eles me pegaram no final do ginásio e eu tive aquele momento glorioso de me apaixonar (seguidas vezes) e não ter idéia do que fazer a respeito. Tinha alguns meninos apaixonados por mim também, mas acho que isso não fazia muita diferença pra mim. Só que, embora eu não acreditasse nisso, eu já era uma menina branca magra (embora não tão magra quanto eu fiquei depois) com peitos e bunda e coxas bonitas, e, bom, bonita e legal; acho que eu era exatamente o que os garotos queriam de uma "garota nerd" (embora eu não fosse nerd como a gente imagina hoje em dia). Enfim, o caso é que muito aos pouquinhos isso foi pegando em mim. Isso e o jeito como as pessoas foram me tratando, especialmente depois que eu meio que perdi o contato com esse grupo do ginásio, como uma coisa fofinha e adorável e fácil de se gostar. Isso e estar crescendo e desejando mais do que ser um mascote, e querer ter mais amizades, e conquistar mais pessoas. Em algum momento eu me dei conta de que meus melhores amigos estavam apaixonados por mim. Depois eu namorei com o menino que eu queria mesmo namorar. Eu queria ser foda também na vida sexual, mas aconteceram uns rolos, e eu continuei mais ou menos insegura nessa área, mas depois dessa época eu tive certeza absoluta de que eu era uma pessoa apaixonante. Nessa época eu também decidi abandonar minha missão, e todas as histórias, e viver no mundo real.

Apesar de tudo, eu continuei tendo crises absurdas a respeito do meu corpo até os 21, porque eu achava que eles só me achavam bonita porque eles já estavam apaixonados. Mas aos 21 essa barreira desapareceu e eu resolvi apreciar a vida. Mais ou menos ao mesmo tempo eu mudei de carreira e abandonei boa parte das minhas inseguranças profissionais. Aos poucos eu fui retomando um orgulho de saber fazer alguma coisa, agora somando duas coisas que eu sabia fazer (escrever e programar). Eu resolvi explorar essa idéia de ser sexy e de ser feminina, com grandes efeitos (eu consegui ser feminina sem nunca usar maquiagem, e praticamente sem depilação), inclusive para minha sexualidade. Mas a empolgação de mudar de carreira começou a passar, e muitas vezes eu voltei a pensar coisas como "Bom, eu não tenho muitas habilidades, mas pelo menos as pessoas gostam de mim", mas agora com uma nota mais alta de "Mas pelo menos eu sou a mina mais gata e mais foda de qualquer balada".

Pensando bem, é estranho o quanto a beleza é determinante para uma mulher heterossexual -- eu parei para pensar nisso depois de ler este texto. Minha auto-estima enquanto mulher era dependente de eu ser desejável, e era uma sensação inebriante quando eu era, mas quando eu não me sentia linda, eu era incapaz de sequer conversar com as pessoas direito. Aí no último ano vários eventos me fizeram lutar deliberadamente contra essa corrente. Eu fiz as coisas que eu queria fazer -- furei a orelha, cortei o cabelo, saí de um bocado de armários, e finalmente deixei os pêlos do corpo crescerem até seu tamanho máximo.

Eu tenho me sentido menos sexy, e às vezes ocorre de eu sentir falta disso. Mas eu acho que nunca me senti tão confiante. Não sei se é a idade, se eu só cansei da insegurança, acho mesmo que o número de coisas na lisa de "o que eu sei fazer" está crescendo, e que o meu mêdo das coisas está diminuindo. Eu não me acho bonita com tanta freqüência, e eu tenho essa impressão de que eu devo estar finalmente começando a afastar homens hetero. Eu às vezes me acho bonito; mas também não acho que eu vá atrair mulheres hétero. As pessoas que eu atraio... não quero realmente me perguntar o que as atrai. Na verdade eu não tenho tido vontade de me envolver com muitas pessoas. Eu tenho achado desagradável a idéia de que outras pessoas podem me achar sexy. Simplesmente não é a impressão que eu quero passar.

Às vezes eu saio de casa sem nem me olhar no espelho, sem sutiã, com roupas das quais eu nem gosto tanto. Nos últimos meses tem sido menos estranho não se importar. Acho que estou começando a entender essa coisa masculina de não dar a mínima para a roupa.

Acho que o que eu quero dizer, no final, é que eu tô bem assim, melhor do que eu jamais estive. A vida está boa, eu posso ir em frente. E eu não quero mais ser bonita, porque simplesmente não vale a pena.

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