sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Rei incógnito

Eu sonhei contigo, Rafael.
Como há anos não sonhava.
É estranho porque às vezes quando acordado é difícil lembrar quem eu sou, e você
Eu sonhei contigo, Rafael, e talvez
sonhar contigo seja sonhar comigo.

O sonho foi assim: você, mais jovem do que eu me lembro
(e, do jeito que as coisas são, provavelmente mais jovem do que parecia)
já Rei, já Senhor, já talvez até cansado de suas muitas e tão confusas responsabilidades, disfarçado, incógnito, em terra estrangeira
-- Ou não? Porque os limites das terras são tão vagos, e o planeta é uma esfera, mas também é uma história, e há tanto que não conhecemos, tanto para ver que é absurdo pensar que duas ou três crianças disfarçadas de adultos (ou mesmo adultos disfarçados de crianças disfarçadas de adultos) poderiam conhecer todas as cidades do mundo,
e há passagens, rios e reinos dentro de montanhas, gigantes e dragões adormecidos, ruínas cobertas de floresta, bibliotecas dentro de livros --

talvez seja até inevitável que um Rei esteja sempre em terra estrangeira dentro de seu próprio reino.

Você tinha raspado o cabelo (afinal um garoto loiro de olho azul chama a atenção) e comprado uns moletons num lugar qualquer (vermelho, marrom e preto, cores nada a ver contigo), e agora estava tentando se alojar numa espécie de hostel enorme, meio hostel meio clube meio universidade, um grande vão no meio de vários corredores abertos em vários andares, uma estética industrial-futurista dessas cheias de vidro e metal branco. Cheirando a junk-food, suor, cheetos e cloro de piscina.

Você procurava um quarto pra dormir e abria uma porta pra encontrar um garoto (?) espantado, escondendo algo (ou -se) no beliche. Mas tudo bem, você também tinha algo a esconder, no caso, um pequeno companheiro, um bichinho, Rafael, como você pretende se esconder levando por aí uma coisa tão sua quanto um passarinho? Se esconda bem, Rafael, ninguém anda por aí com pássaros que nem você, ninguém por aí fala a língüa deles.

Você ri. Eu sinto-ouço sua risada, Rafa. Quando eu te conto isso. Minha preocupação estúpida por você, sendo que eu nem sei o quê você estava fazendo, se escondendo do quê. Me diz.

Você tinha um mestre, acho. Um velho; talvez --
talvez eu esteja assintindo muito Avatar e isso tenha entrado no sonho? --
e você tentava ir no vestiário tomar um banho e ficava errando o vestiário, o que é mesmo isso de homem e mulher? Em qual vestiário se entra? mas talvez
isso seja só eu sendo você sendo eu no meu sonho na minha cabeça.

Às vezes eu sinto uma saudade louca
e é besta porque você sempre está aqui de alguma forma do jeito que sempre esteve
mas eu cresci, Rafael
e eu te abandonei
tantas vezes
tantas vezes eu te abandonei pra conseguir ver este mundo, o mundo Real, sabe, o mundo em que EU vivo
pra fazer amigos que pudessem me levar a lugares que eu nunca poderia imaginar
em vez dos amigos que só podem me levar a lugares que eu imagino.
Mas vocês nunca me abandonaram, sempre
que eu visito vocês
vocês me recebem de braços abertos
é até estranho
como vocês nunca esquecem
É doido como nos sonhos eu nunca tenho tempo pra ser covarde
nos sonhos eu sei exatamente quem sou
no mundo Real as responsabilidades não vêm com os grandes poderes
elas só vêm e vêm e vêm

2 comentários:

Rafael F. disse...

É estranho que essa primeira frase me tenha assustado meio que como um soluço, vendo meu nome aparecer onde ele nem cabe? Que ela tenha pipocado uma vontade antiga e líquida de que a gente tivesse talvez se conhecido a ponto deu existir por aqui? Estranho imaginar, mesmo por um segundo, que você tivesse sonhado alguma vez comigo, ainda mais depois de tanto tempo. Acho que eu nunca sonhei com você, pra além desses sonhos de palavras inventados através das telas de computador. Mas de vez em quando, quando visito meus textos de memória, eu ainda vejo o link desse seu blog na lateral do meu. E muito de quando em quando aparece alguma atualização, e eu costumo passar por aqui, meio que por lembrança de um hiato no tempo tão distante já e que eu nem sei direito o que meu se resguarda nessas memórias.
É engraçado pensar que eu nem teria como ser esse seu Rafael. Eu também cresci e abandonei meus Rafaéis, que tinham outros nomes e que também continuam sempre por aí, me recebendo de braços abertos quando eu acho um tempo pra eles.
Eu também cresci e abandonei os Rafaéis que eu fui nalguma parte do caminho.
Acho que encontro algum conforto na permanência desses blogs, territórios ancestrais, em meio à terra arrasada infinitamente instantânea da internet, por mais abandonados que pareçam, por mais vagarosos sejam seus ciclos de flora. Acho que esse resquício de um link quase sem razão de ser, que me traz de quando em quando pra ler palavras por aqui, me fala de algum Rafael eu que ficou pra trás, e nunca foi.
Eu fui. Mas não cheguei a encontrar-me de novo em meio a seres que vivem o sonho das palavras. Seres que têm a literatura como parte da alma. Acho que a minha literatura me faz mais falta do que eu admito.

Um abraço de sonho, ou de palavras.

Ozzer disse...

Haha, achei muito bom ver este comentário aqui, justamente porque quando reli este texto, por um brevíssimo momento (talvez pelo primeiro verso) eu achei que ele falava sobre ti. É curioso porque de fato, nos conhecemos no mundo Real tão brevemente, e eu acho que também nunca sonheir contigo, mas ficou esta conexão literária. Acho o paralelo muito apropriado.