terça-feira, 4 de maio de 2010

Paragens Internas - resumo dos capítulos anteriores - o primeiro dia e a primeira noite

Isto aqui costumava ser uma grande floresta. Ia até onde a vista alcança e mais além. Esta parte juntava com aqueles bosques escuros ali distantes, e do outro lado corria até mergulhar no que agora são charcos, perto do desfiladeiro. E antes disso havia uma grande planície, uma campina sempre verde e viva dos quais poucos ainda se lembram bem. Eu mesmo nasci nos últimos dias daquela campina, no último verão glorioso antes de tudo se transformar. Mas daquele tempo eu me lembro que era inteiramente habitado pelo ruflar das asas de infinitos pássaros, e que tudo era cheio de luz. Tudo era tão vivo! O campo se cobria de flores diferentes a cada estação, e eram de todas as cores e atraíam todos os bichos. Este lugar era como um jardim imenso que se estendia do Mar do Oeste até os confins do infinito do outro lado, e era habitado por espíritos livres que mudavam de forma e viajavam em infindas brincadeiras. Naquela era o Tempo não existia, e os espíritos que nasciam logo amadureciam e voltavam a ser crianças, apenas pelo prazer da mudança. Tudo o que vivia aqui era dotado de asas, embora alguns optassem por viver nas águas e outros preferissem correr sob ou sobre a terra.
Então veio a Grande Morte, quando um tremor abalou a terra e os mares recuaram, inundando toda a parte de trás do mundo, onde viviam as coisas mais selvagens. E aqui, a terra secou e endureceu, e todos os seres morreram ou fugiram para aguardar debaixo da proteção das montanhas. O Sol estancou no céu, e a Lua ficou parada a iluminar o lado de trás do mundo; e foi aí também que o Tempo começou. E por um tempo infinito vivemos na sombra e esperamos sem que nada mudasse além das nossas formas, pois enquanto esperamos nossas asas se despedaçaram em dor e e nossos dedos se transformaram em garras, e não podíamos mais tocar músicas alegres, apenas entoar lamentos sem palavras. Lá fora, não havia nenhum vento sobre a terra ressecada, e o único movimento era o de um tímido rio vermelho que escorria lentamente na superfície da terra, nascido dentro de uma montanha e que desaguava no Mundo de Fora através da saída do Poço. Então, quando o mêdo da morte começava a se apoderar de nós, entrou no mundo um espírito sem idade, o único herói verdadeiro de nossa história, a quem chamamos Rin, que na língüa de então significava fio, como o de uma lâmina, mas que também quer dizer aquele que é, ou o que pertence. E Rin também foi chamado de o Salvador. e de Espírito-Criança, mas o nome pelo qual todos os que vieram depois se lembram dele é Rin Rad, pois Rad significa tigre e era pelos tigres, de todas as criaturas que vieram depois, que Rin tinha maior respeito. E assim que chegou ao mundo Rin desceu aos os mais profundos subterrâneos e também andou até os mais distantes mares, e neles nadou e conheceu as coisas selvagens, mas logo voltou, porque no mar não havia dor, e Rin não podia abandonar a dor da terra assolada pela Grande Morte. Munido desse amor pela alegria das coisas, e da água do mar onde se banhara, Rin Rad subiu o Rio de Sangue até a sua nascente, e ali, de alguma forma que ainda não conhecemos, nosso herói transformou todo o sangue em lágrimas, e deu às lágrimas o poder de criar e curar, e fez a água correr para que tudo o que houvesse no mundo se enchesse de vida.
Então o sol se desprendeu no Céu e conseguiu finalmente concluir seu longo crespúsculo. O período que se seguiu foi chamado por nós de A Grande Noite. A terra toda se cobriu de plantas que cresceram selvagenmente em uma enorme floresta, e todas as criaturas que andam e correm saíram de seus esconderijos para habitá-la. E como a vida da floresta viesse da água do mar que Rin colhera, as coisas que nasceram ali eram ferozes como os habitantes de Atrás. Naquele tempo não haviam estrelas, então, para que tivéssemos alguma luz, Rin Rad plantou suas próprias sementes no solo à margem do Rio de Sangue, e ali cresceram árvores cujos frutos eram gemas luminosas de todos os matizes. O mundo se enchera de alegria pela libertação da terra, mas as criaturas que o habitavam não possuíam mais asas e viviam mudando entre formas sombrias, mesmo que coloridas, que rastejavam e se enroscavam ao redor das árvores das luzes, já que somente elas tinham algo da delicadeza e da vivacidade que existiam no mundo antes da Grande Morte. Então Rin Rad cantou para a terra e a terra respondeu ao seu canto e criou os Caçadores, que nasceram para ser os habitantes de direito da nova floresta, e entre estes Rin chamou os Tigres, os Lobos, os Ursos e as Panteras e entregou a cada família um fruto de uma das árvores, e mandou que eles se espalhassem e dividissem as terras como lhes aprazisse, e que protegessem suas gemas e cuidassem para que elas não perdessem o brilho. Assim as luzes se espalharam e espalharam sua magia por todas as partes, e os seres que mudavam de forma se espalharam atrás delas, e muitos deles se disfarçaram de caçadores para permanecerem próximos a um fruto, e muitos outros se transformaram em animais pequenos para que pudessem se infiltrar nas tocas dos caçadores, mas nenhum deles jamais teve um fruto em seu poder, e por isso seu pesar pela perda da luz de antes nunca arrefeceu.
E com o tempo os habitantes do mundo se acostumaram com a nova floresta, e muitos deles começaram a se colorir com as cores das gemas das árvores e a criar novas formas, e afinal um grupo deles decidiu tomar uma área nos limites da floresta e transformá-la numa grande campina, onde os espíritos antigos criaram novas formas, baseadas nas formas que usavam antes da Grande Morte, mas voltadas para o brilho colorido que emanava da floresta, em lugar do sol. E, vendo as dificuldades dos espíritos da campina, a Leoa pediu a Rin uma de suas pedras, e Rin fez uma árvore nova, que dava frutos brancos e mais brilhantes que os outros, e a Leoa levou seus frutos para a campina e alí criou seu território, onde sempre havia tranqüilidade e paz. E nesse campina também ressurgiram a Queni e a Quemi, os Pássaros de Fogo e de Cor, que decidiram voltar para a floresta quando tiveram suficiente confiança em suas asas, e então ajudaram a nascer novas aves entre os Caçadores, das quais as primeiras foram a Coruja e o Gavião. E assim a Floresta cresceu e ganhou forma e vida, e seus habitantes se multiplicaram e se transformaram para ficarem mais graciosos e mais ferozes, e se aprimoraram caçando e guerreando mas também cantando à margem do Rio de Sangue em homenagem a Rin Rad e às luzes das árvores. Eles também cantavam ocasionalmente em nome da Senhora, que partira durante a Grande Morte e que desde então não fora vista, e conta-se que foi de tanto eles chamarem seu nome que em dado momento ela retornou.

3 comentários:

Marcio Zamboni disse...

Quanto ao nosso conto ilustrado:
estava pensando em algo como "o mundo de marina". uma espécie de compilação de fluxos de pensamento. poderia ser até uma montagem de trechos de posts do seu blog.
acho que podia compro um dia,
um despertar,
um amanhecer,
um trajeto de ônibus
ou um passeio de bicicleta.

enfim, um percurso intimista.
uma paisagem interpenetrada por sentimentos, sentidos e precepções misturados... um mundo de separações precárias entre interior e exterior.

a sua selvageria,
sua indecisão,
sua impotência,
seu sentimento de mundo,
seus percursos.
tido misturado e ilustrado.

10 a 20 parágrafos de 10 a 20 linhas seria um bom tamanho.
quem sabe escritos de uma vez,
em fluxo.
(depois apenas revistos).
nada de personagens,
nada de narrativas,
apenas um fluxo precário e intenso,
repleto de imagens e sentimentos.
esse seu texto intimista que eu tenho gostado tanto
(não gosto tanto de posts como esse que estou comentando... prefiro os mais autobiográficos)

enfim, só idéias,
vamos ver se você se anima
(já estou com agua na boca)

abraço
marcio

Ozzer Seimsisk disse...

Actually este post é completamente auto-biográfico

Talita Salles disse...

É o gênesis da Jângal.