(a noite é uma criança distraída)
Eu achei que chegaria um dia que não seria assim tão incrível e aí eu ficaria muito decepcionada e até meio depressiva. Eu achei que ia ser horrível. Mas não foi assim. Foi só meio confuso. Eu acordei um dia sem grandes ambições. Eu acordei e queria escrever, cantar, almoçar com o Basílio e a Néia, jogar RPG talvez. Mentira, eu sabia que eu não conseguiria jogar. Mas eu queria ver meus amigos. Eu queria tentar. Então o dia escorreu assim, eu o tempo todo distraída, meio alheia, tanta coisa pra sentir atrasado, tanta coisa tenta pra pensar.
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Eu cheguei em casa, tirei a corrente do pescoço e tentei voltar para o mundo de antes, mas não podia, porque nem eu nem o rio éramos os mesmos. Eu tomei um banho longo e me joguei na cama e dormi, sem querer querendo, dormi pra tentar entender, pra tentar sincronizar meu corpo com o mundo de agora-aqui, e dormi sabendo que estava perdendo a noite perdendo tudo, e fui acordada com:
— Vamos assistir Carmina Burana na Luz em vinte-e-cinco minutos, você vem?
— Eu tô em casa, me deixa ir que eu corro como o vento pra tentar chegar a tempo.
Tudo deu errado mas eu cheguei a duas músicas e meia do final. Eu me emocionei com os últimos "venus..." a quinze metros do palco, eu me mantive lá contra os desejos dos meus que estavam tão mais longe. Eu andei pela multidão e os rostos das pessoas que ouviam eram de glória: olhos fechados, vários lábios cantando. Hoje o jornal dizia que foi uma apresentação pífia. Algumas músicas sobrevivem a qualquer coisa. E no final eu larguei todas as coisas para abrir os braços. Eu cantei também. Nada disso importa. E a partir daí foi uma noite como qualquer outra.
Eu olhei pra você e meu pensamento se contorceu numa careta, porque se só ouvir o seu nome já me distrai tanto do mundo, que dirá caminhar ao seu lado?
Teve um momento em que o Poru estava assustando as pessoas (não o culpem, a idéia foi minha) de um jeito muito simpático, e eu acho que eu causei a maior quantidade de mêdo num desconhecido na minha vida. É que aquela menina era muito linda. Talvez ela nem fosse perfeita, ela era tão delicada, não era gostosa, não emanava poder como as pessoas de quem eu geralmente gosto, ela... ela parecia uma flor, um lírio branco iluminado por um único raio de luar.
"Quando me tocas eu me transformo
Como uma flor que se abre
Como uma flor eu me abro
Para o calor do teu toque"
Ela tinha a pele clara e os traços delicados, cabelos escuros curtos meio ondulados emoldurando o rosto. Eu fui falar com o Poru e olhei para ela e disse "nossa". E eu começava a falar com o Poru mas meu olhar ficava se voltando para ela, e eu queria muito parar e conversar com ela, descobrir quem ela era, como eu poderia vê-la mais vezes (num pedestal), e ao mesmo tempo eu precisava dizer para o Poro que estávamos indo embora, beber cerveja com o Sacha (o que no final não fizemos ¬¬), dar tchau para os amigos do David, e em certo momento eu virei para ela e disse:
"Uau, como você é linda."
...
Se vocês tivessem visto o olhar dela, vocês entenderiam melhor porque naquela hora eu me senti um monstro. Um ogro raptor de donzelas. Eu tive mêdo de mim mesma. E aí fomos embora.
E depois conversamos bastante, e tudo meio enevoado, tudo tão bonito, tantas pessoas que... mas eu não digo nada, eu estou tão em silêncio. Assistimos Deixa ela entrar e foi tão emocionante quando a música antes. Um filme lindo. E depois fomos pra casa, e dormimos juntos, conversando sobre as coisas que precisávamos mudar, sobre nossos erros, sobre nosso amor, sobre os estudos, sobre acordar no dia seguinte, sobre xkcd, sobre i love the whole world (the future is pretty cool).
Então eu acordei pensando em como expressar, não pensando em viver ainda mais coisas incríveis e perfeitas. E ao longo do dia o mêdo foi ficando cada vez mais forte, o mêdo de não poder falar, o mêdo de estar tudo o que importa apenas um pouco além do limite das conversas razoáveis. Eu lembrei o olhar nos olhos deles quando eu falei da minha sexta-feira, eu lembrei de vários olhares de muitos tempos antes e depois. Eu fiquei com mêdo. Eu voltei pra casa depois do jogo e tentei escrever, mas tudo o que eu queria dizer não podia ser dito, e a minha pilha de rascunhos no blogger ficava cada vez maior. Mas eu não podia dizer.
Que dizer do que eu sinto por você? Do que não é desejo, não é amor, não é paixão, não é um interesse fútil? Que dizer do que nem eu entendo? Como eu posso te querer sem te querer? E como passar por cima do mêdo?
Que dizer do meu desejo por você, completamente despropositado?
Que dizer dos meus sonhos, dos meus mêdos, completamente errados?
Na calma, eu também pensei em você. Eu achei que chegaria um dia que seria perfeitamente normal e que eu odiaria isso. Mas não. Chegou um dia em que eu estava tão repleta de uma sensação de glória que nada mais parecia me importar. Como eu queria poder expressar! E tudo era tão silêncio. Eu parei e pensei em como eu me sentira feliz, como eu queria poder expressar essa alegria irrestrita, essa alegria devastadora, que me fez saltirar e rir e cantar e dançar ao redor de você. Como eu tenho que lhe agradecer pela alegria que me preencheu completamente, como eu nunca esperava ficar tão feliz! Depois disso nada mais importa, meu dia estava vazio, meu dia era um raio de sol o mais importante é o agora, mas eu vou viver o resto da minha vida lembrando desse mar, sabendo que por sua causa eu fui feliz, sabendo a importância de todas as outras pessoas que me trouxeram até aqui, eu estava sorrindo sem conseguir lidar direito com esse foco de luz que nasceu no meu peito, essa torre iluminada de marfim que brilha, que desvela praias e falésias, flores, tiés-sangue, que está vazia agora mas que prepara uma festa, e é tudo por você, meu companheiro de viagem, meu bardo, muito obrigada!
Eu quero criar um novo nome para um tipo de relacionamento. Não vai se chamar conquistadores de mundo. Estou em dúvida entre Companheiros de Caça e Companheiros de Viagem. Eu quero virar com você, viajar e caçar com você. Essa é a minha luz, a minha alegria, o meu farol. Ugo, teu barco (o Sonho) vai se guiar também por esse farol. Quando nós navegarmos juntos, nós nos reuniremos nessa torre. É a primeira construção em muito tempo que não está cinzenta e abandonada. Não há demônios aqui! Nós nos guiaremos por sua luz. Daqui a cem anos, se eu me lembrar desse dia, eu ainda terei luz para guiar minha jornada.
Isso tudo me assusta.
Me assusta porque não posso chamar a todos para virem comigo se eu não puder convidá-los para a festa. Eu quero chamar vocês, que eu amo, que me apóiam sempre. Senão, quem virá para a festa. Eu sei: senão, virão todos os demônios para a festa. E ali eles vagarão sem destino, ali eles tomarão conta de mais uma construção que eu abandonarei. Meu farol! Minha torre de luz! Não! Eu vou dar um jeito. Eu vou criar coragem e quebrar todas as barreiras. Pelo amor. Por mim. Por sempre.
Eu vou falar a verdade.
Mas não agora.
2 comentários:
o interlocutor masculino...
você já leu a agua viva da clarice lispector?
Eu tinha esquecido que tinha interlocutor neste texto. Aí eu reli e notei que tem dois deles(fora o Ugo). Não li a água viva, do que você está falando?
Obviamente, depois disso, vou ler.
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