terça-feira, 20 de abril de 2010

Livro Um: Fera

"I was a wolfness in those dead days
and I thought only of mates and preys"



Eu não sei se é muito decente eu falar sobre o que aconteceu comigo nos últimos dias. Eu poderia guardar tudo pra mim, me contentar em escrever num diário, e quem sabe daqui a cinqüenta anos confessar para meus filhos que um dia eu me tornei uma fera...
É claro que eu não vou fazer isso. Eu nunca fiz. Pra mim, minha imagem pública não é tão importante quanto a comunicação. Mamãe talvez dissesse que eu poderia falar dessas coisas com meus amigos mais íntimos, mas será que eu teria coragem? Meus amigos mais íntimos são tão íntimos assim? Hell, há coisas que eu não consigo contar para pessoa alguma, não sem muito muito esforço. Ultimamente não tenho contado tudo nem ao Di, que era meu melhor amigo. É que há coisas dentro de mim que me deixam meio nervosa. Bom, ao assunto:

Descobri muitas coisas novas sobre mim estes dias. Por exemplo, descobri que eu não sou racional. Nada do que faço é derivado de uma conclusão racional. O máximo de racionalidade que eu consigo manter é: já que meus instintos estão pedindo tão intensamente por isso, o mais sensato é obedecer. Eu preciso de emoções, de intuições, para me dizer para onde ir. O pensamento define apenas o como.

Descobri também que eu posso ser outra coisa. Uma coisa que sente com os dentes, não com os olhos. Uma coisa que quer com os dentes, não com o estômago. Uma coisa que vê através de cheiros, que não vê céu, só carne. Uma coisa que tem olhos voltados para a frente para melhor perseguir a presa.

É incrível como de repente todas as coisas perderam a importância. Eu esqueci a prova de terça, eu esqueci o EP pra semana que vem. Eu esqueci a matéria que eu queria fazer e até a necessidade de subir em árvores — essa sim é a parte mais assustadora.

No domingo eu ainda conseguia querer desesperadamente velejar. No domingo à noite, nem o vento importava.

Eu fui uma lôba por quatro dias
Mordi o silêncio e cacei sozinha
Larguei minha mente e o meu dever

Meu celular também sempre escreve "quero te ter". Eu não escrevi nada nesses dias que não quisesse dizer quero te ter. Eu mordi o ar e engoli saliva tentando conter minha fome. Eu arreganhei os dentes quando você se aproximou... Eu rosnei, num anúncio, quando soube que te teria.

I was a wolfness again one day
I felt alive when I scented "prey"
My preys were trying to hunt me too...
But I'm no kill — I'm not for you

Este texto parece louco, mas não tão louco quanto eu me senti! Eu era uma fera! A god of old! They spoke of me, all tales told! Eu que me preocupo tanto com o céu e o chão, eu andei de cabeça erguida, sempre olhando e procurando, sempre à caça.

My claws were keen to cut
My teeth were keen to kill
And all the creatures great and small
Were subject to my will

Eu te assustei quando rosnei pra você? É o que eu me pergunto? Minhas lembranças estão um pouco confusa, porque toda a minha mente estava concentrada em um ponto só. Eu nunca soube que seria obcessiva. Eu me assustei com a minha fúria. Como todos os meus pensamentos continham as palavras Caça, Fome, Corpo, Dentes. Ah, é, estou falando sobre Sexo. É claro que é só por isso que eu não deveria estar escrevendo isto aqui. Não é educado falar tão abertamente sobre sexo. Mas como não falar?

As outras coisas da vida foram perdendo gradativamente a impôrtância. Primeiro desapareceu tudo o que era inteiramente intelectual, como os estudos. Em Ibiúna eu já estava plenamente dedicada às emoções físicas: ousei mais do que nunca no wakeboard e senti arrepios de alegria quando me agachei na prancha e pus a mão na água que passava rápida ao meu redor. Dirigi a lancha como um homem dirigindo um carro foda. Senti o peso da moto embaixo de mim. Bebi uma cuba livre e me assustei com o gosto do álcool, subitamente muito consciente do quanto eu precisava me controlar. Dancei. Sequer me incomodei com as insinuações dos mais velhos sobre nós. Eu estava cedendo cada vez mais aos instintos, e a qualquer momento qualquer coisa podia ser verdade. Olhando pra trás, é incrível como eu estava me comportando bem.

Quando cheguei em casa a consciência da minha obcessão já era dolorosa. Aquilo tinha me afligido a semana inteira, mas de repente era uma necessidade. Eu precisava sair, eu precisava de ar puro. Meus pensamentos não eram sobre isso, meus pensamentos maquinavam armadilhas, procuravam a melhor forma de te atrair, de te enganar, de te aprisionar entre minhas garras. Eu precisava de algo que me distraísse, de risadas, de álcool, de pessoas. Duas forças lutaram dentro de mim: uma queria amigos, e outra queria presas.

Segunda foi ainda pior porque eu encontrei pessoas com as quais eu queria construir uma amizade. Eu estava me sentindo mal, talvez de fome, de sono (eu não conseguira dormir mais de cinco horas), da consciência de que teria que usar aparelho por um tempo, e principalmente da fúria que ainda queimava, faminta, dentro de mim. O mundo parecia tão frio! Quase não ouvi a aula, tão concentrada que estava em me manter longe do homem ao meu lado. A pior parte de mim não conseguia apreciar a vida se não estivesse caçando. Me impressionei com meus comentários mau-humorados; fugi no meio da segunda aula, fui encontrar o Bruno. No fundo, eu ia pedir ajuda pra ele. Mas não sei se não seria só uma ajuda na minha caçada.

Foi uma noite boa, eu acho, que acabou muito cedo. Se... (...)

Então na terça eu tive um lampejo de lucidez e lembrei do Diogo. Não, eu não tinha esquecido do meu namorado. Eu só tinha esquecido, como acontece com freqüência, de como ele me faz bem. Aquilo estava indo longe demais e eu precisava de um pouco de paz. Eu precisava conseguir lembrar das minhas prioridades. Então eu (...) o encontrei no CM e o abracei forte. Sempre me surpreendo com o efeito dele sobre mim. Senti a febre baixar, senti a fome se acalmando conforme eu o apertava, me encolhia no abraço dele, me deixava proteger. Lembrei das coisas que eu tinha esquecido, começando pelo amor. Eu precisava dele. O abraço de qualquer outro homem (eu acho) me deixaria apenas mais faminta. O beijo de qualquer outro homem apenas atiçaria minha voracidade. O abraço dele me deixou lúcida. O beijo dele começou a me saciar. Eu pedi pra ele me obrigar a ir embora ou eu não iria nunca.

A pessoa que eu poderia ser se eu decidisse ficar solteira me fascina e me assusta. Uma parte muito grande me mim se deliciou com todos os meus pensamentos e ações lupinas. Quando eu me afastei do Diogo, senti um alívio tremendo por poder controlar que tipo de coisa eu ia fazer. Por poder achar as árvores bonitas, por poder me interessar pelos meus estudos. No final do dia, eu me assustei com tudo o que eu tinha protelado quando minha mente estava voltada para a caça. Mas também senti falta: o poder que amanava dos meus impulsos... Mesmo a ferocidade que eu desenvolvera...

Eu não sabia que eu tinha isso em mim: essa coisa em mim que age não por amor, mas por fome; não com carinho, mas com fúria. Eu já havia sentido em mim uma fera que está sempre agitada, mas... mas nunca imaginei que ela pudesse ser tão violenta. Não sabia que ia ser tão difícil contê-la. E uma parte de mim, uma parte daquele lado negro de mim, se pergunta se eu deveria ter mesmo me contido. Outra parte acha que eu nem tentei conter, na maior parte do tempo. Que eu só estava com mêdo demais para ceder.

...agora, alguns daqueles meus impulsos me parecem simplesmente idiotas.

Acho que eu devia tentar encontrar uma forma de associar esses meus dois lados. A auto-confiança, objetividade e inteligência da lôba com a temperança, tranqüilidade e abertura da humana? Mas, de alguma forma, eu suspeito que a lôba em mim não aceite ser domada. Eu não sei até que ponto para conseguir sua força eu precisaria... alimentá-la.

2 comentários:

Marcio Zamboni disse...

não é por que tem algo que diferencia o homem do lobo que o homem deixa de ter algo em comum com o lobo.
em seu lugar...
até que ponto devemos dar vazão a nossos instintos lupinos?
posso dizer no máximo até que ponto eu dou espaço para meus instintos: até o momento em que eu sinto que eles possam ferir os outros.
tenho um medo imenso de ferir os outros... o que não significa que eu consiga não machucar os outros.
tenho a impressão de que no seu caso os sentimentos de muitas pessoas queridas estão em jogo.
mas acho que geralmente uma espécie de inexplicável tristeza me emudece e me torna auto-destrutivo. a vazão dos meus instintos para por ai.
eu deveria reagir mais?
talvez... o que os lobos fariam?

também sinto que meus sentimentos mais profundos não fazem sentido... mas sinto também que os meus prazeres mais profundos provém da realização desse inexplicável.

Rafael F. disse...

Acho que eu já disse isso, mas seus textos me fascinam. Pessoas, em verdade me fascinam, especialmente pesssoas que fazem coisas realmente importante pra elas. E escrever dificilmente foge de ser importante, mesmo quando a gente não espera, mesmo quando a gente não quer ser tão honesto. O texto é sempre uma imagem muito mais interna e real do que a gente imagina.

E uma coisa que me incomoda é a distância tão grande entre a imagem que eu tenho da autora desse blog e a pessoa que eu encontro, raramente aliás, ao vivo. Bem certo que não convivemos, nossas conversas são daquelas cheias de curiosidades, debates e idéias, mas raramente nos deixamos mostrar.

Eu leio o que escrevo, e encontro uma imagem muito mais fiel da minha pessoa do que o rosto que vejo no espelho. Alguém que lê o que escrevo sabe quem sou, talvez mais do que muitos de meus amigos. E talvez seja isso que torne a relação ao vivo tão estranha. Como lidar com pessoas que já viram o mais profundo de você? Como contruir e vestir a máscara de nosso personagem mundano, pra pessoas que viram nossos maiores medos e sonhos?

Ta, parei de escrever, não era aqui que eu queria chegar. Eu faço isso as vezes....