Lembro de uma vez estar sentada no colo do meu namorado, os braços dele à minha volta, e de olhar o cara por quem eu estava apaixonada bem na minha frente. Lembro de pensar que eu só precisava me esticar um pouco, me mover um nada, eu estenderia a mão e tocaria nele. Apenas tocar nele seria um ato mágico, era como se as coisas dependessem apenas disso, e as peças se encaixariam perfeitamente no momento em que eu tocasse nele e ele olhasse nos meus olhos.
Vocês não podem se lembrar disso, vocês não estavam lá. Mesmo meu namorado na época não estava lá, não, você não fazia parte daquela história, você não sabia o que estava acontecendo, você era uma parte do cenário (talvez ele fosse também), e essa era uma história que só existia para mim. Mas era uma bela história.
Pensando bem, havia alguma coisa entre nós, acho que era uma fogueira; sim, era uma fogueira: lembro de pensar que era só isso, me soltar do abraço do meu amor, atravessar o fogo e chegar até ele. Lembro claramente da sensação que me dava pensar que ele estava tão perto que podia chegar a ele num segundo, antes que ninguém percebesse. A sensação de liberdade.
Sabe aquela cena de desenho animado em que a câmera está em primeira pessoa e essa primeira pessoa estica a mão em direção a algo, então percebe que está fora de alcance e dobra ligeiramente o braço e os dedos? Eu fiz exatamente isso. No instante exato eu desisti do meu plano, engoli minha paixão. Tentei me convencer dos meus ideais nobres, de que eu tinha um namorado e não podia magoá-lo, de que eu não podia traí-lo, etc — na verdade acho que eu só não queria fazer um escândalo. Naquela hora eu já tinha admitido para mim mesma que o queria, que não podia negar isso: já tinha sussurrado para mim mesma o nome dele em voz alta. Acho que pensei no que as pessoas iam pensar: no que meus amigos iam dizer, eles que sempre tinham tanto a acusar. Mas pior ainda foi pensar nos amigos dele, aqueles que eu não conhecia o suficiente pra entender, e talvez... sim, sem dúvida eu tinha mêdo do que ele diria. E se o toque não fosse tão mágico quanto eu imaginava?
Entretanto mesmo se não o toquei naquela hora, mesmo se a dúvida me amarrou ao meu lugar, eu ainda o desejei, mesmo nos braços do meu amor. Eu seguia seus passos, meus olhos como uma sombra. Lembro de passar a manhã toda olhando para ele, na esperança de que ele me desse um sorriso. Lembro com clareza cada sorriso e como toda vez eu achava que isso era um sinal de que ele gostava de mim, para em seguida me repreender por alimentar esperanças. Lembro mais intensamente ainda dos sonhos, e de acordar desapontada por ele não estar mais ali, trabalhando ao meu lado, conversando ou às vezes só me olhando: eu tinha sonhos que eram só uma longa troca de olhares. Eu lembro de fazer um desenho dele, de escrever poemas sobre ele. Eu lembro de como a voz dele me fazia tremer, de como o cheiro dele me deixava completamente inútil. Tudo isso durou apenas uns poucos meses, mas foram muitos dias de doçura flutuante alternada com dúvidas atrozes.
Algumas vezes na minha vida eu me perguntei se eu era uma má pessoa por eu ter ido tão longe na minha fantasia. Talvez eu seja até certo ponto uma felina cujas garras lanham o coração dos homens, mas se eu espalhei muita dor, também espalhei prazer. E acho que aqueles que se sentem capazes de condenar meus pensamentos naquele momento são as que não entendem a beleza inebriante de se estar apaixonado. Quando eu lembro dessas coisas, eu sei que eu sofri muito, e que houve muita dor ao meu redor, mas eu escolho lembrar das coisas boas, daquela leveza que havia em meu coração mesmo quando o remorso, a indecisão e as faltas todas me faziam arrastar os pés no chão, cabisbaixa.
A paixão é uma loucura. A paixão é uma corrente libertadora, pois faz todas as outras coisas parecerem sem importância. Eu lembro de perder aulas e esquecer de fazer trabalhos finais porque não conseguia me concentrar em mais nada. Às vezes era a dor, outras era a euforia que me distraía. Como era bom seguir com os olhos os movimentos dele com os olhos, apenas por ver seu corpo se mexendo! A paixão faz tudo parecer passageiro e sem importância. É muito difícil lembrar das outras coisas da vida quando aquela pessoa está ali, consumindo todos os seus pensamentos. Quando você está triste, sempre espera que ele lhe conforte; quando está feliz, quer dar essa alegria a ele. A vida não precisa de um sentido se você está apaixonado. Até a dor, no auge do sofrimento amoroso, não precisa de razão: tudo faz sentido para quem está apaixonado. As peças fundamentais da minha vida se encaixaram quando o Charles disse: "eu não acho mais que estar apaixonado é uma coisa ruim". Se eu pudesse mostrar a todas as pessoas essa mesma coisa, por mais infinito doloroso que fosse todo o processo, isso me faria sentir que eu ganhei o jogo da vida (...!).
Talvez... talvez tenha havido mais do que o que eu consigo expressar aqui. Eu provavelmente poderia fazer um conjunto de contos água-com-açúcar chamado "Minha histórias de amor". Há tanta doçura para lembrar: os primeiros beijos, uns finais de tarde.. As histórias parecem mais doces quando vistas fora de contexto — acho que meus sentimentos sempre estiveram descontextualizados. Dentro do contexto, elas ficam mais... interessantes, mas aí não funcionariam mais como um livro de contos; talvez como um romance, mas não tão adorável e mais cheio de aporrinhações. É claro que eu prefiro lembrar dos contos: a chuva na pele, o toque das mãos, o amor. Alguns contos são infantis, outros são mais adultos. Alguns englobam apenas um final de tarde, outros se esticam até a manhã seguinte, outros se espalham por semanas de segredo e delícia. Você pode até dizer, se quiser, que quase todos os contos, se se estendessem na história real, acabariam em raiva ou dor. Talvez. Mas quem se importa? Eu estava lá, eu vi, eu chorei também. Hoje eu sinto saudade dos dias bons. Eu penso às vezes nos maus, mas não importa. Mesmo nos nossos piores momentos, havia um sentido ali, se construindo. Espero que aqueles que viveram os outros vários lados das minhas histórias também consigam perceber pelo menos isso: que mesmo nos piores momentos havia um sentido ali. Daqui a cinqüenta anos, eu vou olhar todas as minhas sacanagens e pensar, "ah, que se dane! Pelo menos eu vivi. Pelo menos eu segui meu coração. Pelo menos nós vivemos isso intensamente, da melhor forma que pudemos." Eu quero que mais pessoas no mundo consigam sentir isso também: que mesmo depois do desespero, ainda resta a alegria daquele momento perfeito.
Um momento em que tenho pensado muito ultimamente aconteceu num dia seguinte. Ele, que tinha insistido tanto na casualidade, na falta de amor, aproveitou um momento em que os outros estavam dormindo e me deu um abraço, entre gracejos sarcásticos. Eu não olhei em seus olhos. Eu senti seu cheiro. Eu pensei em tudo o que ele dissera e me lembro de ter pensado que pelo menos aquela frieza toda era falsa. Pelo menos isso. Foi um bom abraço.
5 comentários:
ahh. ainda acho incredibilíssimo o que você escreve.
Que bonito.
Fica num instigante limite entre uma autobiografia romanceada e um conto pseudo-autobiográfico.
Fico entre curioso e angustiado, envolvido e perplexo.
Realmente é um belo texto,
não apenas um belo post
(não que ser um belo post seja pouca coisa)
Vou ficar com ele na cabeça
quem sabe faço um comentário melhor depois.
abraço perplexo
márcio
Estava respondendo uns imeils agora... acho que é por isso que meu comentário acabou parecido com um imeil. enfim...
Nos seus textos eu perco noção de tempo e espaço, e perco as referências também... Não que seja ruim, mas eu me sinto perdido. Sei que é provavel que isso seja proposital, apenas um comentário :P
Não é proposital, é só como meu coração é, como minha memória é. Presente ou passado, próximo ou distante, o que importa? Os sentimentos não têm tempo.
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