sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Denise (mas não só)

Sei às vezes que a melhor parte de nós é aquela que mesmo nós não conhecemos. Aquela parte oculta. Imaginamos durante toda vida uma forma de chegar até essa reserva de nós que está fora de nosso alcance. Tentamos tudo, procuramos resolutos o portão despercebido que nos leva ao jardim secreto de nós mesmos.
Imagina como seria esse jardim se fosse povoado e habitado como as nossas outras construções, se fosse limpo e asseado com manutenção constante? Imagino esse lugar drenado de todas as marcas de seu abandono, imagino esse lugar sendo apenas uma parte de mim pela qual eu passo sem olhar. A beleza mesmo está nessa vegetação selvagem que nasce sobre uma camada sedimentar de mistério. A beleza são os fantasmas, a vida que povoa o desconhecido. A beleza é os monstros marinhos que figuram nas bordas dos mapas das grandes navegações. Eu busco aquele lugar inseguro, aquele lugar invisito, um lugar onde Há Dragões.
E como chegar a ele, quando não pisamos num solo envolto nas pegadas de um Deus Desconhecido?

Eu o procuro através das pessoas. Das palavras também, mas nas palavras que vêm das pessoas. Porque no Outro encontro o que desconheço do Eu. O melhor de mim, sem dúvida, é aquilo que vejo quando conheço alguém novo — alguém que me toca e liberta, que me traz algo verdadeiramente novo. Estou tão desgastada pelo tempo, entretanto quando olho em olhos novos vejo tudo outra vez: o barulho das árvores no vento, o cheiro das folhas molhadas, a textura peculiar do líquem et cetera. O novo é a minha memória. A experiência é o meu passado. Sei às vezes que o que mais espero de mim é o meu futuro que é também meu passado, Ou talvez os sonhos do passado que só podem existir num botão de esperança. É tudo assim; se esperarmos demais, tudo vira literatura e música, mas se lutarmos demais, nos tornamos... como dizer? Nos tornamos apenas lutadores. E na luta da vida esquecemos talvez que o que realmente nos move são as raízes daquele Eu desconhecido. Esquecemos que temos sob a superfície uma cidade de construções abandonadas. É impossível viver sempre no presente, é impossível dar manutenção a tudo isso. Mais que isso — é falso, é inútil. A beleza pra mim é percorrer esses salões vazios. É ouvir o canto dos pássaros que embalaram civilizações passadas.

Nas pessoas encontro as passagens secretas que levam ao outro lado do Eu. Nas experiência novas me crio e recrio e descubro mundos além dos que eu já vivia. Ergo torres sobre torres, torres sobre descampados, castelos sobre florestas em homenagem a reinos que se fazem num átimo quando uma frase me descreve. Queria poder dar a devida importância a essa cidade-palavra; levar seus inocentes fundadores a conhecer as vielas, os mirantes, os pombais. Toda vez que alguém me conhece queria... queria poder abrir as portas de mim! Mas não queria mostrar o tosco, o sujo, sabe? os fios elétricos os auditórios os dvds piratas nas calçadas os carros branco-preto-pratas as locadoras o bilhete único o telemarketing os filmes b os joguinhos de flash os romancetes júlia-sabrina os efeitos especiais o congestionamento o sabor artificial idêntico ao original as embalagens de biscoito as pessoas que correm os trabalhadores de escritório engravatados sozinhos em carros quatro-portas na hora do rush a comida da cantina os prédios provisórios sem manutenção cheios de pessoas a burocracia as matérias em que não aprendemos nada e a iluminação noturna fluorescente que deixa a noite parecida com shopping-center. Não!, eu queria mostrar as florestas, as grandes obras arquitetônicas, os lugares desabitados, o Mar! Eu queria poder tirar tudo o que é tolo e passageiro, e deixar só o âmago pulsante da poesia viva. Eu queria poder mostrar só o que realmente vale a pena em mim. Só as melhores músicas. Só palavras verdadeiras, escritas na Língua Antiga.

Mas eu não posso. Na verdade não posso tanto que nem consigo mostrar a reverberação que nossas conversas têm no meu passado. Não posso porque tudo se cobre por um véu de trivialidade. Mas nada é trivial. Nada é. Ouço dedos dançando numa rapsódia húngara, minha vida toda eu procurava sem saber algumas notas de Liszt, mas quando as encontro nos dedos de uma conversa banal eu sei de repende que tudo de vazio que acontece tem um significado profundo nesse mundo abaixo do meu mundo, esse río-abajo-río de mim. Coisas idiotas como uma barata de repente se tornam estranhas e sagradas e assustadoras. O mundo dentro de mim tem constantes revoluções. E eu, que mal as vejo, que as sinto mas não as noto, tão cheios estão meus olhos das mil coisas que vejo sobre o mundo, eu que percorro a vida a contra-pêlo, não posso ser uma boa guia para essa viagem.

Eu queria poder ir além disso. Ir aos melhores filmes e aos melhores livros. Construir um templo que revele quem eu deveria ser respeitosamente. Dançar como dedos no início da Sonata ao Luar. Deslizar sobre uma paisagem de inverno. Haver comunicação verdadeira entre eu e você. Trocarmos os nomes dos nossos amantes junto com passagens de Cortázar. Queria chegar mais perto da magia de tudo isso.

Queria chegar com você ao lugar de La Loba.

2 comentários:

Marcio Zamboni disse...

"orientação dos gatos" é tudo isso para mim. por isso que resolvi ilustrá-lo.
Você tem acompanhado os parágrafos desse conto que eu tenho publicado?

essa série de ilustrações pretendia ser um conjunto com o melhor do meu repertório de desenho.
Talvez por isso mesmo, por essa proposta tão séria, e por eu simplesmente idolatrar esse conto, eu tenha ficado um pouco decepcionado com os resultados.

Charles Bosworth disse...

Ó: