segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Shortfic - O Cavalo e Seu Menino

de vez em quando eu encontro um ou outro texto legal no meu arquivo. Este por exemplo. Eu imagino que o final de O Cavalo e seu Menino (que é sem dúvida o melhor livro da série) tenha me incomodado muito para que eu escrevesse isso. Eu gosto do final hehe



Ele era um garoto como qualquer outro. Tinha cabelos castanhos, assim como seus olhos, e sua pele era apenas um pouco mais escura de sol que a de seu pai. Como era comum para um garoto da sua idade. Ele era pouco diferente de Corin psicologicamente, e menos ainda em aparência. Gostava de cavalgar, correr nos campos de sua terra, sob o sol, subir nas árvores do pomar e ter aulas de esgrima no pátio do castelo. Gostava de ver a cara de seu pai quando os encontrava cobertos de terra, água, lama, de como ele ria de suas caras sujas e seus cabelos bagunçados. O que havia nele que o tornava tão diferente de qualquer outro garoto de sua idade naquela terra?
Ele era um garoto normal, embora seu povo provavelmente pensasse diferente. O fato de, ainda bebê, ter sido levado para a Calormânia e vivido lá por mais de dez anos não invalidava essa normalidade. Muito menos o fato de ser o príncipe herdeiro da Arquelândia. Ou o de ter acabado de concretizar uma profecia estranha sobre ele derrubar o rei da Calormânia, ou algo assim. Ele não se sentia especial por nada disso. Aliás, ele não queria ser especial. Queria apenas viver aventuras, correr pelos campos, subir nas árvores, ouvir as canções de Nárnia, estar nas festas da Arquelândia, dançando sob o céu de verão. Queria ser apenas Shasta, o humilde garoto que um dia montou um cavalo falante e enfrentou o leão. Não tinha necessidade de viver naquele luxo de príncipe, chamado por um nome que ele ainda não reconhecia como seu. Ele não queria ser Cor, o filho perdido do rei, o salvador da pátria. Ele não precisava daquilo. Shasta bastava.
O garoto suspirou, olhando perdidamente para os campos dezenas de metros abaixo. Talvez, pensou, desanimado, talvez ele fosse realmente mais calormano que arquelão. Claro, se ele não tivesse sido levado de seu país antes do que podia se lembrar por causa de uma maldita profecia, provavelmente seria como Corin, seu irmão. Um bom espadachim, um guerreiro, que montava com graça e firmeza, e ainda que muito jovem para ser chamado homem, não fazia feio em uma batalha de verdade. Shasta não era nada daquilo. Quando chegara à Arquelândia, desprevenido, mal conseguia segurar uma espada, e quase fora morto por tentar acompanhar Corin na batalha contra o rei Rabadash da Calormânia. Sorrindo, ele se lembrou de Rabadash preso no gancho do muro, Rabadash virando burro, a solenidade de Aslam, o Leão, ao contar-lhes toda uma série de verdades irrefutáveis, Aslam dizendo-lhe que nenhum dos leões da viagem faria mal a eles, pois todos eram o mesmo. Fora uma grande aventura. Sorrindo ainda mais, ele se lembrava de como conhecera Bri, das aulas de hipismo, dos tombos, de Huin e Aravis, a tarcaína que o acompanhara para fora da Calormânia, de quando fora confundido com Corin, as conversas do rei Edmundo e da rainha Susana de Nárnia, dos animais falante... Ele tinha que admitir que foram bons tempos aqueles. Para algumas pessoas, a aventura pode ser uma maldição. Para Shasta, fora uma bênção, um privilégio. Mil vezes melhor que viver com [Arsheesh], trabalhando muito e vivendo muito pouco.
Mas o que mais o irritava era sem dúvida ser considerado tão diferente dos outros. Era ridículo, do seu ponto de vista. Ele era uma garoto normal. Tinha os mesmos problemas que a maioria dos meninos da sua idade. As mesmas dificuldades e desafios. As mesmas alegrias e tristezas. Os mesmos amores platônicos, o mesmo desespero crítico, a mesma mania de auto-flagelação das pessoas que cometem erros. Talvez fosse um pouco ignorante, não tivesse grande habillidade com as armas da Arquelândia, se confundisse nos costumes e coisas afins. Mas, para todos os efeitos, era tão normal quanto qualquer príncipe herdeiro de um pequeno mas alegre reino poderia ser.
No final das contas, o que realmente importava para ele era ignorado. Os valores, os sentimentos, toda a verdadeira face de uma pessoa, era esquecido quando o comparavam com o resto do mundo. O que contava era seu passado. Só isso. Que diferença fazia então tudo o que ele era se o importante mesmo era o que ele fora? Ele poderia ter se tornado um garoto orgulhoso, cruel, que jogava na cara das pessoas tudo o que pensava mal delas, e o que não pensava, mal-educado, relaxado, egocêntrico. Quem sabe assim as pessoas percebessem a diferença? Entre ser e ter sido?
Suspirando, Shasta ainda observava a bela, mas vazia de significado, vista que tinha do alto da torre principal. Subira ali não para ver a bela cidade em que nascera, as pessoas da Arquelândia levando suas vidas felizes, e se sentir bem com isso. Seria mais provável que, ao contrário, subisse ali para poder se lacerar mais fácil e eficientemente. Doía-lhe pensar que as pessoas felizes lá embaixo o consideravam tão diferente. Era quase como se não fosse humano. Era quase como se não fosse alguém. Ser apenas mais um no mundo inteiro podia parecer triste para algumas pessoas, mas ser diferente dos outros todos era certamente mais desesperador, no mínimo. O desespero consistia em não poder falar como uma pessoa normal, por não ser ouvido como uma.
Mas também não subira ali para observar as pessoas que quase podia dizer que odiava e sentir-se mal. Seus motivos eram menos nobres. E mesmo refletir parecia ridículo na sua situação. Ele subira ali porque não pudera sair da cidade sem que o vissem. E porque queria observar o que havia além dela. As florestas, os rios, as colinas, as montanhas ao longe. A natureza parecia mais bonita sem as casas e ruas cercando-a.

Um comentário:

Bia disse...

engraçado, foi o único da série que eu não li. na época, não consegui de jeito nenhum passar do primeiro capítulo.