sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Transição e Identificação com Mulheres

Ultimamente eu tenho tido vontade de dizer coisas como "eu, como mulher...". Eu tenho sentido identificação com mulheres. Estranhamente, isso é algo novo pra mim. É curioso que eu tenha passado a me identificar com mulheres justamente depois de desistir de me identificar como mulher. Eu acredito, na verdade, que essas coisas estejam relacionadas.

Eu passei uma parte muito grande da minha vida sem nenhuma identificação com mulheres. Embora eu pensasse em mim como mulher (com certa raiva e desejo de ser um menino), eu não via absolutamente nenhuma semelhança entre eu e as outras meninas da escola, por exemplo. Eu não via por que eu devia ser mais semelhante a minhas primas que aos meus primos, ou me identificar mais com minhas tias que com meus tios. Eu tinha uma relação ótima com minhas primas, e havia uma certa divisão de gênero entre meus primos, mas eu nunca me senti plenamente dentro do grupo das primas. Eu era a criança mais nova, a caçula, e isso era uma espécie de identidade pra mim. Eu queria muito mais fazer as atividades de menino que eu não podia fazer do que a maior parte das atividades de menina. Na escola, a separação era muito mais intensa. No pré, eu tenho uma lembrança, muito vaga, de apenas três meninas (lembro de um único dia na casa de Jennifer, lembro de sua mãe e sua gata, mas não seu rosto; lembro do rosto de Melissa, de seu pai e de quando a visitamos muitos anos depois; lembro vagamente de onde eu estava no parquinho no dia em que Marcela veio contar, desesperada, que havia matado nosso coelho), e uma lembrança muito forte da amizade intensa que eu tive com três ou quatro meninos (Ricardo, Vinícius, Kauã, e um pouco de Alan). Quando mudei para outra escola e a segregação entre os gêneros era mais forte, eu me sentia ainda mais deslocade por não ter essa cultura de segregação. Eu tentava fazer amizade com os meninos, mas era muito difícil. Fiz muitas amigas meninas, mas era uma amizade difícil; há poucas meninas daquela época com quem eu tinha uma amizade confortável. Elas tentavam me ensinar a fazer coisas de menina e eu me sentia uma menina desajeitada e sem cultura. Depois de um tempo eu desisti de tentar; fiz amizades com garotos que se interessavam por mim e com as garotas que gostavam de fazer amizades com garotos. Minha identificação com garotos era sempre muito mais forte que com garotas.

Eu achava normal; eu me identificava como uma garota esquisita, uma outcast. Alguns anos mais tarde, um amigo meu apontou, neste blog mesmo, que eu era uma pessoa muito feminina, mas "preferia" me ver como uma pessoa estranha. Foi a primeira vez que eu suspeitei que minha visão de mim não tivesse nada a ver com a visão dos outros. Pensando bem, é um pensamento meio desesperador, esse de que os outros estavam me vendo como uma mulher adequada, bem-encaixada na vida, confortável, e só eu estava me vendo como eu realmente me sentia. Pensando bem, isso explica muita coisa, mas muita coisa mesmo.

Veja, eu me identificava como mulher, eu identificava que coisas aconteciam comigo por ser mulher, e coisas que eu fazia por ser mulher, eu tinha desejos específicos de deixar de ser e ter sido mulher, eu só não me identificava com outras mulheres.

Em algum momento eu descobri a bissexualidade, a não-monogamia, e por fim o feminismo.

A bissexualidade serviu pra compreender parte da minha ansiedade com certas mulheres como simplesmente uma ansiedade de ter desejo por uma mulher que eu tinha todos os motivos para crer que era hétero. Quando eu compreendi melhor meus sentimentos, eu desenvolvi uma necessidade louca de ser lésbica. Eu acho que eu imaginava que entre as lésbicas eu talvez sentisse alguma forma de identificação. Até hoje eu tenho essa imagem de que lésbicas vivem num mundo mágico composto por mulheres em que todas elas se sentem bem, aceitas e bem-encaixadas. De fato, muitas vezes elas passam deliberadamente essa impressão. Entretanto, por ser uma pessoa bissexual e estar quase sempre com homens, (e eu culpo um pouco a dificuldade que eu e minhas amigas bi tínhamos de fazer essa coisa perigosa que é ficar com garotas à vista de outrem), eu nunca cheguei a me envolver romanticamente com mulheres. Por outro lado, eu vivi amores platônicos extremamente intensos --- e esses amores, de uma forma mais poética do que confusa, me jogaram de um lado pro outro no simbolismo de gênero, porque eu invejava a mitologia do amor heterossexual e eu queria a simbologia do cavaleiro, dos mitos primitivos, da rainha e do amante, de todas essas coisas, mas eu também queria romper as expectativas heterossexuais, então eu alternava entre narrativas heróicas masculinas e femininas, tornando o gênero de todos os envolvidos uma coisa poéticamente fluida, como dá pra ver aqui.

A não-monogamia serviu para focar meus sentimentos de deslocamento e exclusão numa coisa objetiva: eu era diferente de todas as demais porque pra mim monogamia simplesmente não era uma opção. Não-monogamia foi claramente a minha primeira e mais importante orientação sexual clara (já que a heterossexualidade fora meramente uma imposição social, e a bissexualidade se manteve como uma dúvida até praticamente ano passado).

O feminismo veio vindo aos poucos, misturando coisas que minhas amigas mais politizadas e minha mãe me diziam. Eu lembro do dia em que eu e minha mãe tivemos uma longa e iluminadora conversa sobre o abuso que sofri na infância, e como isso abriu meus olhos para muitas coisas. Depois, no feminismo, eu comecei a me identificar com outras mulheres através dos relatos de abusos. Os espaços exclusivos para mulheres, mesmo que virtuais, como o Mulheres Livres, permitiam que nós falássemos em grandes grupo sobre essas coisas, e ficou muito claro como nós estávamos todas juntas, e como aquela roda de histórias era poderosa. Eu inclusive escrevi sobre isso aqui, no início do ano passado. Naquele momento eu entendi que minha maior identificação com outras mulheres era através das histórias de abuso e resistência, abuso e sobrevivência, abuso e essa capacidade louca que temos de continuar em frente, muitas vezes continuando a conviver com o abusador, amando-o ou cuidando dele durante toda a vida, fingindo que somos capazes de perdoar, às vezes por incapacidade de condenar completamente. Minha identificação com outras mulheres vinha através do laço com minha mãe e minha avó e minha bisavó na linhagem materna que certamente haviam sofrido abusos antes de mim, e vivido e sido as pessoas fortes e incríveis que elas eram e ela é.

Mas ao mesmo tempo eu descobri, através de sexo e de posts deste blog, que eu não era a única pessoa no meu círculo que rejeitava o próprio gênero. Ao mesmo tempo eu conheci uma mulher trans e um homem trans --- minha voz ainda treme um pouco quando eu tento descrever a sensação poderosa que me causou ver aquele corpo másculo, peludo e musculoso, e saber que era fisicamente possível ter aquilo para mim. E esse mesmo homem disse: "Eu não sou homem, eu não sou mulher, gender, fuck it". Então eu segui esse caminho loucamente libertador de simplesmente negar meu gênero. Não apenas tentar me libertar abstratamente das imposições de gênero como eu estava fazendo antes, mas rejeitar arbitrariamente tudo o que era feminino.

Essa diferença foi poderosa porque havia muita coisa que eu tinha mêdo de fazer. Eu precisei juntar coragem por anos antes de deixar as pernas sem depilação; eu demorei pelo menos dez anos sem conseguir seguir minha vontade de raspar a cabeça; eu passei mais do que isso sem nem cogitar andar sem sutiã; eu freqüentemente tentava experimentar coisas "de mulher", talvez numa tentativa fútil de me identificar com outras mulheres, ou numa tentativa ainda mais fútil de "exercitar meu poder de escolha". Eu havia acreditado no pensamento liberal de que mulheres escolhem pessoalmente depilar as pernas e as axilas, usar maquiagem e esmalte, usar sutiã, salto-alto, saia, cabelo comprido, e eu havia acreditado de uma forma tal que eu aplicava essas escolhas a mim, questionando apenas superficialmente por que eu estava fazendo isso.

Pra se ter uma idéia, na primeira vez em que eu saí com uma mulher lésbica, eu me vesti da forma mais feminina que eu pude, com brincos delicados, saia curta, sandália, e me senti ligeiramente boba por ver que ela se vestia de um jeito muito mais parecido com o que eu me vestia normalmente.

Para outra idéia, quando eu percebi que eu ia ficar com um garoto que declaradamente preferia pessoas peludas, eu, que havia me mantido peluda mesmo na praia, de biquíni, tive que depilar as pernas. E eu continuei alternando entre deixar crescer e depilar por anos, mesmo que cada vez que eu depilasse eu sentisse um momento de desagrado cada vez que eu via minhas pernas peladas.

Além disso, eu usava sutiã e dizia que era porque eu detestava a sensação dos meus peitos balançando. Eu ainda detesto profundamente essa sensação, mas eu não uso mais sutiã quase nunca. Hoje em dia me parece que eu usava sutiã basicamente por mêdo de que meus peitos ficassem caídos.

Eu achava que eu estava exercitando meu poder de escolha sobre meu corpo e minhas roupas, mas não era uma escolha em liberdade. Quando eu escolhi deixar de me comportar como mulher e deliberadamente tomar comportamentos masculinizados, essa falta de liberdade deliberada me forçou a notar uma séria de limitações que eu havia me imposto anteriormente. Essa experiência me transformou completamente. Além disso, é claro, as pessoas trans, anarquistas e não-monogâmicas que conheci nessa época (tenho dificuldade de separar os grupos) me levaram para uma teoria feminista e uma militância muito mais radical do que a que eu havia conhecido até então, que me permitiu pensar muito mais profundamente sobre tudo o que eu experienciava.

O processo de transição (até agora) foi confuso e irregular.

Um dia eu resolvi me travestir, e tive um momento inicial de extremo prazer por parecer um homem, seguida de uma crise nervosa em que eu precisava me vestir com roupas fofas e femininas que eu adorasse. Depois de um tempo eu comecei espontaneamente a me vestir de forma mais ou menos andrógina. Depois, num processo que eu ainda não consegui entender, eu subitamente comecei a rejeitar roupas femininas: quando eu vestia qualquer coisa com rendinhas, ou sainhas, ou estampas delicadas, eu sentia um estranhamento, uma repulsa, como se aquilo estivesse ridículo e errado. Eu acho que ainda estou nessa fase, embora de vez em quando eu use uma ou outra roupa feminina.

Nas relações com as pessoas foi semelhante: no começo me causava estranhamento quando me tratavam de forma neutra ou masculina, até o dia em que eu senti uma transição dentro de mim e comecei espontaneamente a usar pronomes masculinos pra falar de mim mesmo, e depois, em alguns momentos começou a se tornar desagradável quando certas pessoas usavam pronomes femininos para se referir a mim. Hoje em dia há uma segmentação na minha cabeça, eu ainda quero que minha família me trate como sempre me tratou, não quero fazer uma transição na minha vida, e quando me apresento para velhinhas desconhecidas na rua eu ainda uso meu nome de batismo; mas certas pessoas têm uma relação muito generificada comigo, certos amigos usam demais pronomes e formas femininas, e dependendo do caso e do amigo, de há quanto tempo o conheço e como é nossa relação, isso incomoda. O que me incomoda não é, na verdade, o pronome ou o nome ou a forma gramatical escolhida, é o tratamento em geral, é a diferenciação. É possível notar quanta relevância o gênero têm em nossas relações observando o quanto ele se mostra na linguagem usada. E de modo geral usar formas gramaticais que evidenciem o gênero tem parecido esquisito para mim.

A relação com meu corpo, ao mesmo tempo, mudou bastante, mas talvez por outros motivos. Em alguns aspectos, eu tenho sentido menos vontade de transformação, eu tenho sentido menos incômodo por ter poucos pêlos, menos incômodo por não ter barba nem pêlos nos braços (ah, os pêlos nos braços... acho que metade da minha atração por homens vem deles...). Eu parei de usar sutiã, e percebi que a sensação que eu sempre tive com os peitos balançando é bastante parecida ou talvez conectada com disforia --- essa sensação louca de asfixia, de que tudo vai ser insuportável pra sempre, contra qual o único remédio é desviar o olhar e respirar fundo e não pensar a respeito disso. Eu percebo que a sensação de disforia que eu às vezes tenho com meus peitos é muito parecida com o desespêro que eu tive por estar na faculdade errada, ou por não estar levando a vida que eu quero de modo geral. Eu percebo que eu sempre senti isso de certa forma. Esse incômodo do descontrôle, de ter que lidar com algo que você queria que nem existisse. Sempre foi assim.

"Sempre fui assim" é a frase que mais me levou a descobertas nos últimos sete anos.

E por fim, chegamos à identificação com mulheres.

Na verdade essa identificação é algo muito recente. Eu senti um impulso de identificação quando me percebi desejante de mulheres, mas no relacionamento com elas ainda me sentia o patinho feio. Eu senti uma identificação com as histórias de abuso, mas essa identificação não era suficiente para eu me sentir confortável. Eu não vou explicar em detalhes o que me fez começar a me identificar com mulheres porque é um assunto complexo político e teórico e que envolve uma infinidade de tretas e mereceria uma série de posts a respeito. Vou apenas dizer que minha percepção das agressões que eu sofro por ser designada mulher aumentou, e que assuntos específicos de pessoas designadas mulheres têm sido discutidos com freqüência, e que voltei a discutir primeiramente feminismo, mas com essa nova visão que desenvolvi nesse processo, e que afinal notei (esses dias) que me identifico primariamente com outras pessoas designadas mulheres e que sofrem o mesmo tipo de agressão que eu, que temos pensamentos parecidos, e posicionamentos parecidos. Eu desenvolvi nesse tempo a admiração pelas pessoas que assumem "mulher" como identidade política depois de terem sido forçosamente designadas mulheres por toda a vida; eu as admiro porque vejo nisso um ato de lealdade às outras mulheres, àquelas que jamais questionariam seu gênero. Cada vez mais eu me identifico como uma pessoa faab: designada mulher, mas não feliz com isso. Às vezes me ocorre que minha incapacidade de me identificar confortavelmente como mulher seja antes uma fraqueza de caráter, uma dificuldade em resistir, como resistem as mulheres que admiro, uma falta de resiliência; Admitir minha mulheridade seria difícil e doloroso, então deixo de lado, deixo pra outro dia. Escolho não me identificar. Tento, mas nem sempre consigo, evitar esse pensamento desmoralisante.

Mas trabalhamos. Percebo agora que o envolvimento com a transgeneridade, assim como com a não-heterossexualidade e a não-monogamia, me permitiu amadurecer muitas idéias e me dar maior segurança para me relacionar com outras pessoas; mas principalmente, a não-obrigação de me identificar com outras mulheres tornou o convívio com elas muito mais fácil. Poder me identifcar a priori como o outro, o diferente, me torna imune à maior armadilha do convívio com mulheres, que é quando elas supõe que eu, "por ser mulher", penso, ajo e sei coisas que elas sabem. Quando me sinto inseguro em relação à minha habilidade em performar mulher, eu posso me esconder sob o escudo de não ser, de fato, uma mulher.

Talvez seja ilusão minha que mulheres se identificam umas com as outras, não sei; mas talvez não seja, talvez seja só a minha construção de gênero que não foi tão bem feita quanto com as outras mulheres, talvez ela tenha sido quebrada cedo demais pelo abuso; talvez seja só uma conjunção de fatores, de eu ser bissexual, não-monogâmica, por minha mãe nunca ter me ensinado a usar vestidos e pintar a unhas, por eu ter tido vontade de jogar futebol mas nunca ter tido muito talento pelos esportes, por eu ser uma criança exageradamente tímida, mas muito eloquente, talvez sejam apenas todas essas coicidências que fazem minha experiência de gênero funcionar melhor quando eu escolho negar meu gênero designado.

Mas trabalhamos. Talvez isso mude de novo durante este ano.

Um comentário:

olivia disse...

ae; me identifico com muito do que você disse, embora eu tenha decidido não pensar tanto em tudo isso e sou o que sou e foda-se. talvez também por ser assexual seja mais fácil pra mim ficar nessa neutralidade sem sentir a necessidade de negar o meu gênero. mas acho sempre massa te ver no facebook, ver o seu caminho, ver todo esse processo e ver também que eu posso questionar, que eu não preciso ser nada. abdiquei de todas minhas roupas femininas, saias, raspei cabelo, comecei a preferir só as camisetas mais largas. uso sempre top e quando fica calor eu tiro a camiseta e pronto ;) gosto só de um vestido que é bem de menininha, tipo menina de 8 anos haha ;) há muito queria parar de raspar a perna e em parte foi você que me deu um empurrãozinho que eu precisava. hoje em dia eu raspo tipo uma vez a cada dois meses, só pra variar.

mas sempre tem muito caminho pra gente se sentir feliz consigo. mais que isso, vale pensar que tudo isso que está fora é o menos importante. é tudo ego, o que a gente chama de ser isso ou ser aquilo. o que importa a gente não explica com palavras e entende quem quer. ou pelo menos é o que eu tenho aprendido nesses últimos dias...

:-*