terça-feira, 4 de agosto de 2009

A Morte (II)

(ou: a morte dos ritos)



Se fosse Jack, e não eu, naquele dia, teria ficado provavelmente louco e destruído tudo o que seus braços humanos pudessem. Se fosse a Lôhba, não eu, teria engolido o cemitério inteiro com o poder dos diamantes que purificam. Adulta, a Lôba teria convocado as plantas a consumirem toda aquela parte da cidade. Esse era o poder que eu mais queria ter.

Mas não era um personagem, porque não era ficção; mas era tão incrível quanto se fosse. Apenas mais estúpido. Menos significado.

Em São Paulo, quando uma pessoa morre, chamam-se os familiares e os familiares chamam os amigos. Todos se encontram no lugar da morte, vestindo as roupas de sempre, e falando coisas triviais como se fosse um dia trivial. O corpo é lavado e vestido por membros da comunidade que se dedicam a isso ou pelos familiares mais próximos. Vestem-no com suas roupas favoritas ou com roupas de festa, como a criar um personagem no qual fixar a imagem do morto. Escolhem um caixão entre os vários produzidos por outros membros dedicados da comunidade. Deitam o corpo, vestido e perfumado, dentro dele, e o cobrem com flores e véus, e o rodeiam com conjuntos enormes de flores com faixas onde estão pintadas as frases tradicionais. Alguns se despedem do morto beijando sua testa, outros o evitam. Põe-se a tampa no caixão e se a lacra com sete chaves, para evitar que algum dia seja aberta. Acredita-se que o morto está ali naquele corpo, que deve dormir seu sono eterno junto à sua família, e que deve dormir lacrado, trancado, cimentado, sob a terra. Guardemos os mortos. Temamos os mortos. Um grupo de pedreiros carrega o caixão sobre um veículo primitivo de rodas e tubos de ferro, pelas ruas da cidade miniatura, entre as plaquetas de bronze, entre caixas de pedra, até a que tem o nome da sua família. Abrem uma porta minúscula na caixa de pedra. Um pedreiro desce, joga para fora as ferramentas, recebe dos outros o caixão, eincaixa-o numa prateleira, pega de volta a colher-de-pedreiro, recebe uma porção de cimento, uma porção de tijolos. Outro pedreiro entra, juntos os dois controem uma parede entre o morto e os parentes junto aos quais ele deve permanecer. Conversam enquanto trabalham, sobre o trabalho, o cimento, a chuva. Quando terminam, devolvem para o túmulo as caixas onde estão os ossos da família. Saem e fecham a porta. Cumprimentam os familiares e vão embora. Apenas mais um dia de trabalho.

Existe um velho mito Ibo segundo o qual o Grande Espírito, Chuku, manda o cachorro dizer aos homens como reviver os que morrem. Porém o cachorro se distrai pelo caminho, e Chuku envia então o carneiro para passar a mensagem. O carneiro diz aos homens para enterrar os mortos, e é isso que os homens fazem. Mas o carneiro havia confundido a mensagem. Quando o cachorro chega, diz que o corpo de um homem morto deve ser deitado sobre a terra e coberto com cinzas, e então ele reviverá. Os homens não acreditam porque acreditaram no carneiro. E assim os homens conhecem a morte.
Nunca entendi porque os Ibo, que conheciam a lenda, não espalharam a mensagem verdadeira do cachorro, por que continuaram enterrando seus mortos e não os cobriram com cinzas. De modo geral nunca entendi a idéia de sepultar os mortos, de guardá-los sob a terra. Uma grande cidade de mortos. Pra mim é um grande mistério.

Por via das dúvidas, quando eu morrer, não me enterrem. Não guardem meu corpo - se quiserem, destruam-no.

5 comentários:

yuribt disse...

Você tem lido Calvino?

Ozzer Seimsisk disse...

não?

yuribt disse...

Essas histórias têm um estilo que me lembra aquelas cidades invisíveis dele.

Ozzer Seimsisk disse...

Eu pensei nissi também.
Adoro Calvino, mas acho que não li esse direito.

Rafael F. disse...

"Outro pedreiro entra, juntos os dois controem uma parede entre o morto e os parentes junto aos quais ele deve permanecer. Conversam enquanto trabalham, sobre o trabalho, o cimento, a chuva."

Essa passagem me parece revelar muita coisa. Gostei bastante do texto.