segunda-feira, 3 de agosto de 2009

A Morte (I)

(ou: descobri que odeio cemitérios)



Na região de Canzara os ritos fúnebres sempre foram levados muito a sério. Quando uma pessoa morre, parece que até o ar muda subitamente de cheiro. A notícia se espalha como sementeira alada, corre no vento, e todos os que ficam sabendo vestem imediatamente o manto amarelo de couriú, que em um dia se alaranja, em dois se avermelha, em três se amarronza, em quatro anegra. Assim os campos de Canzara vão se colorindo gradualmente, de dentro pra fora, e ao mesmo tempo de dentro pra fora vão perdendo a cor.
Durante uma semana cada pessoa age de acordo com as regras do couriú: os que vestem o manto amarelo lavam a casa, as roupas e os cabelos, não podem comer e também não podem falar; os de manto laranja comem pão-de-frango e folha de canhacheira lambida no fogo de vela (é o dia favorito de todos), passam o dia cantando ou rezando, e dependendo da lua têm que cortar os cabelos; os de vermelho pintam o corpo, saem de casa com lanças e só podem comer o que puderem matar; os de marrom quebram suas lanças e se alimentam de cascas de árvores, raízes, folhas e flores, se houverem; os de negro se banham na lama e voltam para casa, onde, depois do último canto, voltam às suas vidas normais. Poucos dias depois o couriú se desprende do manto e só aí as pessoas param de usá-lo. Dizem que é o sinal de que o mundo pode continuar como era antes.
As cores do couriú regem também a preparação do corpo. Os mais próximos do morto clamam para si, através dos versos tradicionais, os deveres para com o corpo. Quando é necessário, o resto da comunidade executa as regras do couriú no lugar dessas pessoas, que têm deveres diferentes. No dia amarelo, é preciso lavar o corpo e preparar a madeira para o caixão. A madeira precisa ser de três árvores diferentes, escolhidas pela primeira pessoa. No dia laranja, usando velas laranjas, deve-se queimar os cabelos e todos os pêlos do morto e preparar as tintas para o caixão. As tintas também devem ser feitas com três pigmentos diferentes, escolhidos por uma segunda pessoa. No dia vermelho, enquanto todos os outros deixam suas casas, os preparadores pintam cada milímetro de pele do corpo e constroem o caixão com todos os cuidados. No dia marrom, ainda mais sozinhos, os preparadores terminam os detalhes finais do caixão, cobrem-no de pinturas, forram-no com terra, põe o corpo dentro dele e o fecham com sete fechos. Depois limpam a bagunça, a si mesmos, uns aos outros. Esperam sozinhos pela chegada dos outros. Choram, talvez.
No dia negro todos voltam para a cerimônia da morte. Voltam cobertos de lama, vestindo mantos negros, famintos e ferozes. Nos outros lugares esse é um dia tranquilo em que tudo volta ao normal assim que a lama se dissolve na água do banho, mas, aqui, onde um homem morreu, é um dia muito estranho. Das sombras das casas surge um grupo de homens (?) vestidos de preto com máscaras pretas de feras. Não se vê nenhuma parte de seus corpos, e ninguém se aproxima por causa do mêdo e do cheiro de morte. Ninguém diz nada: eles levantam o caixão pintado e carregam-no até um lugar vazio decidido por eles, enquanto os outros seguem, silenciosos. Pousam o caixão no chão. Tiram de dentro do manto armas colossais --- machado, facão, picareta, foice, martelo, enxada, forjados, polidos e afiados para serem grandes, negros e brutais. Com um guincho de fúria o primeiro machado desce sobre o caixão dividindo-o no meio, seguido pelo urro da picaretada, pelo estrondo do martelo que lança pedaços de madeira sobre os demais; a comunidade urra, recua, se excita e se assusta, as lâminas sobem e descem, as feras gritam e rugem e saltam sobre o corpo enquanto despedaçam-no com sua fúria, o camunidade grita e canta os cantos de morte, de liberdade, de mêdo, a carne, a terra e a madeira voam, a fúria e a morte voam, os ossos se partem junto com as tábuas, e quando acaba as feras rugem levantando as armas e a comunidade pula sobre os restos (carne osso madeira terra tinta) e os agarra, os disputa, cada um ansioso por enterrar um pedaço, o maior, mais fundo.

De repente a comunidade se dispersa. Banho, comida, a vida segue em frente. As feras já desapareceram faz tempo. As pessoas estão cansadas. A terra mexida e novamente vazia (ao menos na superfície) ficará abandonada até que couriú se desprenda das nossas roupas. Então, tudo será como sempre foi.

4 comentários:

yuribt disse...

Lindo texto, Marina.
De onde tirou isso tudo? Existia algum couriú ou passou a existir agora?

Marcio Zamboni disse...

gostei.
Pensei a mesma coisa.

Gosto da idéia de inventar ritos funerários.

acho patético (covarde?) o jeito como lidamos com a morte.

Ozzer Seimsisk disse...

Tirei isso das minhas entranhas.

yuribt disse...

Marina, queria convidar você e esse texto para a seção "E é por isso que os homens morrem." do blog nossosvinteanos.

É uma seção dedicada a textos de outras pessoas que revelam verdades profundas, quase sempre em formato mitológico, em homenagem a Lévi-Strauss e aos Bororo.

Seu nome ficaria na parte direita do blog como colaboradora e o texto teria todo seu crédito, evidentemente.

Espero que você aceite o convite.

beijos

Yuri