segunda-feira, 19 de março de 2007

A Escrita Branca

Na verdade, escrever no escuro é libertador. Saber que só quem realmente quiser vai ler, que ninguém vai ler, dizer e ao mesmo tempo não dizer: escrever no escuro é a síntese do que sempre fiz, é a metáfora perfeita. Escrever no escuro é escrever para cegos, escrever de olhos fechados, dizendo coisas simples de uma forma que ninguém entenda. Morrer!Morrer não é nada. Morrer é terminar um ciclo, mudar de nome, apagarem-se as velhas cicatrizes, perderem-se as antigas tatuagens ("the tatoo says who you are!")... Morrer é afogar-se num rio corrente, é sobreviver ao bombardeio... Morrer é perpetuar-se, morrer é escapar da extinção e alcançar a eternidade... É o final de cada eu. E se quando morrermos, nossas almas se juntarem às almas de nossos genitores, de que fazemos parte? Se nossos descendentes tiverem em si um pouco de nós que os faz inteiramente nossos, que nos faz todos um? Morrer é romper o cordão umbilical, morrer é modificar a existência. Morrer é terminar uma dinastia sem assassinar o herdeiro. É desvincular a vida de sua determinação. É mudar de sobrenome. Um filho de rei que é adotado por camponeses. Morrer é nunca mais lembrar. O pior é ir na estrada Morrer! Morrer não é nada; é o final de cada eu! O pior é ir na estrada sepultando quem já morreu! Família significa nunca mais abandonar. Morrer é quebrar a Famiglia, é desexistir o passado. Será possível morrer enquanto se é vivo?Sepultando quem já morreu! Escrever no escuro é necessário, é absoluto. As luzes nào dizem nada, são ausentes de palavras. A Língüa se faz no escuro, entre gritos, gemidos, sussurros. O som não se vincula à imagem! A verdadeira língua é a dos cegos, que falam, que tocam-se. A Visão é o sentido da Razão, mas escrever nem sempre é racional. Sons, sons, sons. Morrer não é nada. É preciso que haja o escuro, a não-visão, para que haja a leitura. E depois da leitura a página em branco no fim do livro, continuando o fluxo virador de páginas, perpetuando a sensação da leitura e a necessidade da história, como reticências, ou como aquilo que as reticências representam — se ao final do livro houvesse dez páginas impecavelmente brancas, eu as leria, as dez. Em alguns livros eu gostaria que houvesse cem páginas em branco, que me permitissem ler o final da hiostória, a continuação da história, aquele universo sem limites e sem palavras de que se fazem as esperanças. A página em branco, delimita e completa o livro. É a página-reticente que termina a história, que escreve (sem tinta) um glamouroso FIM ao final de cada epopéia. Sem ela, o livro não teria nenhum sentido, seria como um pote sem tampa, um vinho em garrafa sem rolha, a ser consumido sem cerimônia, a ser deglutido, sem a espera, sem o ritual, sem o mergulho, posto que sem respiro. A página em branco é o espaço sagrado, o palco dos sonhos...

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