sábado, 11 de novembro de 2006

Olha pra mim...

Eu quero escrever. Não sei porque, nem como, nem qual é exatamente o assunto. Não sei de que matéria são feitas as palavras, não sei que influência elas terão sobre suas vidas. Eu não posso me ver, e não quero dizer que as palavras se submetem a seus escritores. Não: as palavras nos desprezam, as palavras são em si. Nós somos apenas seus carrascos, seus escravos, instrumentos de sua indecifrável (e talvez por isso, perversa aos nossos olhos) autodeterminação. As palavras escorrem por nós como um rio sobre seu leito; um rio que cava seu leito desnudando pedras, pepitas, mistérios, que cava uma trilha na mata ou um cânion no deserto. Entretanto, eu já dissera antes: o solo esculpe o rio. Ou seremos nós esse rio caudaloso, desvairado, que arranca de seu leito pedras, pepitas, mistérios, palavras que ele mesmo não compreende? Talvez, seguindo um princípio psicobiológico deduzido empiricamente, eu queira escrever somente porque permitir o fluxo das palavras sobre mim, ao mesmo tempo que arranco-as de sua condição sólida (estado de dicionário), é minha melhor possibilidade neste instante. Será? E se escrevo, estarei saciando uma fome de realizar para todos o sacolejo inconstante desse córrego que meandreia dentro do meu peito? Estarei me libertando do sufoco de uma enchente ou de um assoreamento?

Quero escrever sobre aquelas pequenas tolices que descubro, fascinada, durante o dia: as copas das árvores não disputam espaço; o céu, cantado sempre azul, é muitas vezes vermelho, roxo, violeta. Descobri também, com grande surpresa, que gosto (e me assombro outra vez ao admiti-lo) do cheiro do cigarro. É algo difícil de assimilar, contraditório (mas eu sou mesmo contraditória), que pra mim é estranho compreender. Talvez o estranho seja que minha mãe, que fuma (...), não gosta do cheiro, e eu, que não fumo (e acho que não fumarei nunca) decubro que gosto. Talvez seja alguma associação psicológica, alguma lembrança da infância — cigarro, sítio ou praia, altas árvores, garrafa térmica de água gelada ou de café quente (gosto também do cheiro do café), conversas de família. Talvez o cheiro do cigarro me lembre de conversas muito longas com a Ada, nos sofás da sala em que brincávamos. Talvez... Fico pensando também numa descrição antiga, muito anterior a essa descoberta, que fala de "cheiros de poeira, de sujeira, de pano e cigarro", mas sem nenhuma conotação negativa:
"Tinha um cheiro... estranho. De corpo humano, de pêlos, de pele humana. Cheiro de gente presente, inconcebível em qualquer outro momento. Cheiro de pano e cigarro; impregnado naqueles cabelos que quase se poderiam chamar 'longos'.
Em qualquer outro momento eu repudiaria aquele cheiro. Era um cheiro capaz de me lembrar de doença, de secura, de tosse e desgosto. Porém naquele momento o que eu mais queria era aquele cheiro. Naquela hora o cheiro, tão simples e original, podia remeter à própria origem do cheiro."

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"Cheiro de corpo humano, de sangue, de cerne humano. Cheiro de mãos, de braços, de olhos irrefutavelmente humanos. Cheiro de pêlos, de pele; a expressão mais física do calor humano."


A verdade é que não sei mais do que estou falando. Pensando bem, eu nunca sou exatamente categórica nas coisas, e não me esforço para ser. Não devo mais escrever, devo ir comer. Boa noite, liriidas.

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