quinta-feira, 24 de maio de 2007

O Tomo de Gancche - I

Escrevi este início de história há um bocado de tempo já, mas nunca consegui terminá-lo. Vou publicá-lo talvez apenas para tornar menos difícil lê-lo, sabe? Obviamente, eu não pretendia interromper a narrativa ali, mas fui obrigada. Um dia eu termino ^^ Aproveitem, foi feito com esmero.

O relógio de pêndulo acabou de assoviar seis horas, e cada objeto nesta sala parece reverberar em concordância. Os livros nas estantes, com suas capas de madeira, tremem com o assoalho, em resposta aos urros da trovoada, e meus velhos ouvidos sentem o tilintar silencioso das lâminas nas paredes e das penas sobre a escrivaninha. Cada coisa nesta sala quer prender minha atenção, quer lembrar-me de sua importância e da importância do momento e do lugar de onde saiu. A pedra vermelha que uso como peso de papel prende o meu olhar como um îmã poderoso; o envelope rasgado embaixo dela exala um perfume antigo que torna difícil pensar. É certamente o punhal de lâmina negra, entre todos, o que mais se remexe (imóvel) no seu suporte na parede. Entretanto, poderia eu desandar a falar dele, quando sequer mencionei tantos outros elementos cuja importância precede sua existência? Vejo agora o grave erro que cometi: tranquei as portas, e passei ferrolho nas janelas, para que ninguém vindo de fora perturbasse meu ofício, e agora são os alguéns — ou alguns — de dentro que me perturbam. Desde sempre, dias como este, chuvosos e cheios de vento, me trazem tantas lembranças, e tão antigas, que não consigo manter os olhos no presente.

Então, talvez seja a chuva minha melhor companheira: porque é preciso que eu me volte mais uma vez para o passado. É preciso que eu conte uma velha história, uma entre as tantas histórias que cada reflexo de luz nesta sala insiste em me recordar, mas uma história que ao fim encerra todas as outras. É por isso que tranco as janelas, que privo-me da abençoada luz do Sol e me atenho à pena em minha mão e ao tomo sob meus dedos. Todavia, antes que eu consiga unir os dois e dar início, finalmente, à narrativa, uma dúvida me paraliza: por onde devo começar? De outros dias chuvosos como este, outros dias que mudaram minha vida? De algum momento ainda mais memorável, em que a vida dos — dos protagonistas? — estivesse periclitando entre mais de um precipício? Aquém e além dessas portas fechadas, cada signo no mundo reclama o seu direito de introduzir e justificar os outros. Eu busco o momento que melhor explica tudo o que este tomo tem dever de compreender. Devo partir do fim? Do começo? E, mesmo que soubesse escolher por um dos dois, eu saberia discernir quais são o início e o término de minha história? Não — seria melhor que a minha narrativa começasse não por um, mas por todos os momentos, conferindo a cada instante o valor e o sabor de descoberta que é de seu direito.
<08/11/06>

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