um monstro enorme, feio, com tufos de pelos dispersos pelo corpo deformado, com garras nas mãos e nos pés, pele cinzenta e sem orelhas.Os irmãos de Jennie o haviam cercado, e tentavam atacá-lo com suas armas, mas o ogro respondia com patadas que lançavam longe os agressores. Quando cheguei vi o último forcado ser reduzido a pedaços pela fúria do ogro, que sacudia pelo meio da lâmina o facão tomado do irmão do meio. Os homens desarmados ora se encolhiam contra as paredes da caverna, ora avançavam tentando assustar o monstro com o fogo de suas tochas. O irmão mais velho, que tinha o machado, soltou um urro de coragem e correu para o ogro numa última investida louca. Nessa hora, eu comecei a enxergar as coisas muito claramente. Vi o ogro levantar sua mão enorme e agarrar o machado das mãos do irmão mais velho, vi o irmão mais velho levantado no ar e levando um soco do ogro que o grudava na parede do outro lado da caverna; vi o ogro rugindo vitorioso e devorando cada um dos cinco filhos do ferreiro Bart, deixando Jennie para a sobremesa. Vi tudo isso antes que acontecesse e tomei uma decisão que era quase um reflexo: saquei o bodoque do bolso e atirei na cabeça do ogro.
O ogro, já com a mão levantada para pegar o machado, levou a pedrada bem no buraco onde deveria estar a orelha, soltou um rugido de susto e dor, virando a cabeça, e soltou um urro ensurdecedor quando o machado do irmão mais velho esmigalhou os ossos do seu ombro esquerdo. Mas isso não foi suficiente: o monstro baixou a mão que estava levantada na cabeça do irmão de Jennie, e eu nem cheguei a vê-lo cair desacordado no chão, porque meu sangue gelou e e meu coração começou a bater tão rápido que doía: o ogro estava olhando diretamente para mim, e seu olhar era tão furioso que eu quase conseguia enxergar meu corpo sendo despedaçado na sua imaginação. Quando o primeiro músculo do imenso corpo cinzento do ogro começou a se mexer, minha mente perdeu o controle sobre meu corpo, e quando eu comecei a entender a situação, já estava longe dali, correndo muito mais rápido do que jamais correra na vida, completamente perdido dentro da caverna, e ainda ouvindo as passadas pesadas do monstro atrás de mim.
Corri como um louco até que o caminho se fechou à minha frente. O corredor acabava de repente numa parede de pedras que subia até uma abertura no teto. Tentei escalar a parede, mas a pedra em que me segurei soltou-se e eu caí no chão, com o ogro a poucos metros de mim. Nessa hora, encurralado, não senti mais nenhum mêdo, e de novo imagens muito claras passaram diante dos meus olhos: o ogro avançando, me pegando com suas mãos enormes e dividindo meu corpo ao meio com um puxão. Num instante desembainhei o facão de meu pai, o ogro abriu os braços para me agarrar, e enfiei a lâmina o mais fundo que podia na sua enorme barriga.
O ogro urrou e se afastou com a dor, quebrando a lâmina velha do facão com o movimento, me deixando com uma coisa quebrada e ensangüentada na mão. E quando o sangue do ogro esguichou do ferimento o me deixou completamente encharcado, eu esqueci completamente de quem eu havia sido, de meus pais, de Jennie, das machadadas que os irmãos de Jennie davam no monstro atordoado até que seus urros cessassem, dos meninos da comunidade, e até de nossas aventuras épicas, que eram o que consumia a maior parte dos meus esforços na vida. Fiquei ali parado, sem prestar atenção aos irmãos de Jennie, que corriam de um lado por outro procurando pela irmã, que não a encontravam, que recolhiam suas armas, que chutavam o corpo do ogro com raiva, que me pegavam nos ombros e me levavam para o acampamento lá fora e me punham sentado do lado do irmão mais velho desacordado. Eu tinha matado um ogro, eu era um herói, e naquela noite as únicas coisas reais do meu universo eram o sangue do ogro nas minhas roupas e o facão quebrado na minha mão.
Quando chegamos em casa, as pessoas começaram a comemorar nossa vitória, e fizeram uma festa mesmo depois que contamos que não havíamos encontrado Jennie. Logo descobrimos porquê: enquanto estávamos fora, Jennie voltara para casa, dizendo que havia apenas se perdido no bosque durante um passeio. Depois de alguns dias tudo voltou ao normal: o trabalho, as brincadeiras, as histórias, incluindo a minha nova história, que eu contava várias vezes por dia. Mas eu me sentia estranho. Agora nas brincadeiras os outros meninos sempre deixavam para mim o papel do herói, mas eu me cansava logo e ia fazer outras coisas. Logo contar minha história também perdeu a graça. Jennie era a que mais queria ouvir a história, sabendo que era para ser a história de seu resgate, e até propôs um final alternativo no qual ela estava mesmo prisioneira do ogro, e eu e seus irmãos a resgatávamos heroicamente. Mas eu não tinha mais vontade de conversar com ela. Então uma noite, Tia Ida contou uma história que eu já havia esquecido, a história da primeira aventura de Roder, na qual ele salvava uma princesa encantada das garras do ogro maligno de duas cabeças. Entendi aquilo como um sinal: o grande herói havia começado suas aventuras derrotando um ogro, assim como eu! Decidi que eu estava destinado a seguir os passos do meu ídolo. Naquela noite não consegui dormir — em vez disso, juntei todos os meus pertences e parti em direção à vila perto da qual Roder matara seu primeiro dragão.
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