domingo, 2 de outubro de 2005

De Noite

Ontem (ou anteontem, quando caminhei do Teatro do Colégio até a portaria, à 23h00 de uma sexta-feira, até me passou pela cabeça a loucura que estava prestes a fazer. Afinal, estava tarde e escuro, as ruas estavam vazias, e eu sabia que há alpenas alguns dias um homem fora baleado logo ali do lado. Entretanto, talvez eu seja, como todo o mundo, uma dessas pessoas que não acreditam numa coisa até que ela se prove verdadeira aos meus olhos - e me parecia absurdo o perigo que eu sabia, racionalmente, existir. Foiuma certa indignação e uma certa saudade que me fizeram seguir em frente, sozinha. Levava um sorriso no rosto: afinal, andar pela cidade à noite é um dos meus grandes prazeres. Saudade eu tinha do tempo em que brincava na rua, em Santo Amaro. Seqüestro sempre me parecera coisa de Hollywood; assassinatos também. Eu inocentemente desejava um mundo que só existe em pequenas ou turísticas cidades, e olhe lá. Uma indignação profunda. Eu não agüento mais, sabe? viver prisioneira em minha prórpria casa, obrigada a conviver unicamente com gente parecida comigo porque, afinal, é perigoso demais ir para qualquer lugar onde haja gente diferente. Foi com essa dor no peito que eu fui em frente, um samba de Noel Rosa. O samba não é uma música alegre nascida da dor? A vida é assim, sofremos e entretanto dançamos. "Que se dane, que se dane..."

"O orvalho vem caindo, vai molhar o meu chapéu
e também văo sumindo as estrelas lá no céu
Tenho passado tăo mal, a minha cama é uma folha de jornal

Meu cortinado é o vasto céu de anil
e o meu despertador é o guarda-civil
(Que o salário ainda năo viu)

mas o orvalho vem caindo...
vai molhar o meu chapéu...
"


Por isso segui em frente cantarolando as musiquinhas do Noel. "Que se dane", pensei lá comigo mesma, "tenho tanto a perder que se perder um pouco ainda tenho muito, e perdendo muito ainda resta um pouco!"

Às vezes, sabe, sinto um pouco de falta de morar numa casa pequena como aquelas da Lemos Conde (que aliás nem são tão pequenas assim), de ter só uma TV, só uma bicicleta... Essa imponência toda das casas de pinheiros me casa um desconforto, um certo nojo. Prepotância. Uma vez eu disse pra Calulu que eu me sentia um pouco presa quando estava na casa dela, e ela achou que eu estivesse dizendo que a casa dela era pequena... mas eu só me sentia desconfortável porque era a casa de outra pessoa, porque não era minha casa. Eu me sinto um pouco presa na minha casa também... porque mesmo com todo o espaço livre não posso correr, nem vagar, nem brincar, nem nada. Há muitas coisas que não se pode fazer em público. Talvez por isso nos restrinjamos tanto ao privado - afinal, entre amigos sou muito mais livre que entre quaisquer outras pessoas. Maas, voltando ao assunto, ao menos na minha casa eu posso deitar na cama e esquecer disso tudo. Na casa dos outros, é mais difícil.
Não se esqueçam de que sexta à tarde eu fui assistir ao filme Meu Tio, de Jacques Tatit, e em seguida participei de uma reflexão coletiva na qual a Cláudia disse (como sempre) muitas vezes (como sempre) que nós precisamos nos "apropriar do espaço público". Evidentemente eu queria encontrar um mundo que fosse público, e não apenas no plano virtual.

Não pensei em nada disso enquanto cominhava para a portaria do colégio. Pensava apenas que não valia a pena viver aprisionada pelas grades do mêdo - mesmo se fosse mêdo de um perigo real, e não mêdo do mêdo do mêdo de um dia encontrar um lobo. "Se algum dia eu morrer por causa da minha inconseqüência", pensei lá comigo, "vou me sentir meio idiota, mas pelo menos vou ter vivido a vida que quis".

"Live fast, dye pretty", dizia a bula daquela rapariga estranha que encontrei hoje de manhã


Mas acho que eu não posso viver a vida que eu quero. Talvez seja mesmo absurdo querer viajar para uma vila no interior com menos dinheiro do que o necessário e tentar sobreviver por lá. Talvez eu tenha que tentar alguma coisa e falhar para chegar a esse mundo em que perder dói fisicamente. Talvez essas coisas só sejam possíveis para adultos e gente de escola pública. Talvez eu devesse tentar me dar melhor com essa gente que vive e respira Alto de Pinheiros, Alfaville, Shopping Villa-Lobos, Colégio Santa Cruz. Mas eu não agüento mais conviver sempre com gente tão... tão parecida comigo, eu acho, mas no sentido ruim. Gente que vive a mesma vida que eu. Não tenho nada que me faça me sentir especial, mas tenho muito o que me faça me sentir estranha, talvez até um pouco fora de lugar.

O que me lembra que, realmente, aquela série, The O.C., consegue atrair a atenção só por causa de quatro ou cinco personagens que vêm de uma classe mais baixa que a dos outros personagens, e que por isso se destacam ou causam desconforto. Mas eu, diferentemente da Marissa, nunca quereria ir a um mall para esquecer da idéia de lavar a louça e pagar o aluguel...¬¬

(etc.)

Mas acho que eu não posso viver a vida que eu quero. Não posso tirar as grades da janela, não posso quebrar o muro do jardim (em parte porque seria difícil dormir com o barulho dos carros), não posso fazer uma porção de coisas. Talvez eu realmente não possa também andar na rua à noite. Talvez eu nem possa lutar pelos meus sonhos, mas quem sabe? acho que eu só quero alguma coisa que dê sentido a isso tudo, que vá além do "comer hoje para poder comer amanhã". Queria que alguma coisa acontecesse na minha vida, algo que me justificasse. Pode parecer estranho, mas andar sozinha simplesmente me explica a mim mesma...

Ou talvez eu simplesmente goste de correr riscos. Afinal, como podemos saber se somos fortes se nunca saímos da nossa redoma de vidro?
Às vezes eu invejo essas pessoas que têm mêdo... mas só às vezes. Mas toda a vez em que eu ando pelas ruas de São Paulo eu acredito mais na bondade humana. Não entendo porque as pessoas preferem andar de carro ou pegar ônibus, de a pé temos oportunidades incríveis de nos comunicarmos com as pessoas!

Ou talvez eu apenas queira acreditar que o que as pessoas contam é real, mas não consiga. Eu me sinto no show de Truman. É como se as pessoas repetissem sempre a mesma mentira, e ela nunca se torne verdade. Eu preciso de algo que me prove que isso tudo não é uma invenção. Tudo o que eu quero é conhecer o mundo!

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