sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Um pouco de feminismo para chacoalhar a gosma dos ombros

Acho que durante a maior parte da minha vida eu tive uma raiva frustrada de muitas das coisas que tentaram me ensinar. Não, eu não discordei de forma sensata, racional, estruturada, comparando prós e contras, evidências para tese e antítese; eu só detestei a idéia, sofri em silêncio ou me expressando com rosnados a frustração inconformada que aqueles ensinamentos me traziam. Quando a gente é criança, a gente não sabe se defender direito.

Pra mim o exemplo clássico é a tese de que humanos são fundamentalmente diferentes das árvores e dos animais. Sempre me rebelei contra essa idéia, mas toda vez que tentava discordar dela algum adulto me dava uma explicação - tão razoável, e quem discordaria de adultos? - e eu me calava, apenas para sentir a raiva crescendo depois, não sei se contra os adultos ou contra a realidade que era cruel. Passaram-se muitos anos, mas hoje eu consigo argumentar consistentemente e com base em evidências que essa diferença não é tão grande assim. Quem sabe daqui a alguns anos minha rebeldia infantil possa estar apaziguada, todos os seus argumentos ouvidos, sem raiva da realidade.

Sabe, eu tive minha primeira menstruação com nove anos, embora eu tenha tomado hormônios para retardar meu desenvolvimento que adiaram meu amocinhamento para uns onze anos mais ou menos. Com doze eu já tinha um bocado de pêlos e até uns seios pequenos e muito desiguais, e minha mãe arranjou uma mulher que vinha em casa fazer depilação a cera quente nela, em mim e na minha irmã que tinha dezesseis. A primeira vez em que minha mãe me mandou depilar, eu senti um misto de horror e curiosidade. A curiosidade passou bem rápido, até porque eu gostava bastante de ter pêlos nas pernas, mas eu não queria contrariar minha mãe que insistia que uma moça tinha que estar depilada, e o horror foi balanceado com um certo senso de dever filial. Eu era uma criança obendiente, que guardava as revoltas para chorar num canto escondido ou cantar lamentos debaixo do chuveiro. O resultado foi que depilação se tornou a coisa que eu mais odiava, e era especialmente frustrante que minha melhor amiga tivesse pernas adoravelmente felpudas e não fosse obrigada a se submeter àquele sofrimento.

Isso tudo, e eu nem era mulher direito: eu estava muito pouco interessada em namoro, a vida adulta era inimaginável, minhas fantasias todas envolviam selva, bichos e lutas, minhas brincadeiras favoritas eram todas de moleque e era só muito raramente que eu me dispunha a exercitar minha feminilidade, quando as mulheres mais velhas se juntavam pra me vestir e pintar para um bar mistvah ou festa de quinze anos. Passei anos usando quase que só calça comprida e camiseta larga - eu tinha algumas saias, mas achava todas elas horríveis. Durante o colegial eu era tão peluda que durante um alongamento em educação física (num dia em que eu fora obrigada a vestir bermuda) minha amiga chegou a me confundir com um homem. Na verdade, em um mês sem depilar eu ficava tão peluda quanto um garoto, e é claro que eu só agüentava aquela tortura em vésperas de feriados, festas e viagens pra praia.

Tudo isso meio que acabou quando eu descobri creme de barbear para mulheres e de repente minha pele ficava maravilhosa usando isso e uma gilete. O efeito foi tão dramático que eu passei a preferir pernas lisas a felpudas (isso eu devia ter uns 18 ou 19 anos). De lá pra cá, eu fiquei me perguntando por que eu tive que passar por todo aquele inferno, por que eu não podia ter pernas peludas com treze anos, por que eu não descobri antes que cera quente e maquininhas arrancadoras são só violências sem sentido. Sabe?

A minha questão com a pílula foi praticamente posterior a isso tudo, então eu já tinha um mínimo de autoridade pra tomar decisões a respeito do meu corpo. Da primeira vez que eu resolvi tomar pílula, foi sem pensar muito, porque o médico recomendou pra regular meu ciclo (não que eu soubesse porque ele tinha que ser regulado), e eu desisti depois de alguns meses porque eu não conseguia acertar três dias seguidos. O único efeito colateral de que me lembro foi que meus seios ficaram imensos (lembro vagamente de algum namorado achando isso legal). Fiquei algum tempo sem tomar e tentei de novo, e aí eu lembrei todos os dias, e foi horrível: durante exatamente os meses em que tomei, fiquei deprimida, sem ânimo para aventuras e meio incapaz de fazer sexo direito, além de ter mamas tão sensíveis que doía dar um abraço. Parei de tomar e me senti animada, forte e selvagem, como eu já tinha esquecido que eu podia ser. Algum tempo depois eu fui no médico de novo, e apresentei a ele todas as minhas objeções a pílula, mas ele acabou me convencendo a tomar "a mais fraca que tem no mercado" com três argumentos básicos.

Primeiro ele disse que um ciclo que se arrasta pode gerar problemas no ovário a longo prazo. Coisas que dificultariam uma gravidez. Francamente eu não estava tão interessada assim nos meus futuros filhos, mas era a idéia de que minha saúde podia estar se comprometendo sem que eu soubesse.

Além disso ele disse que a pílula ia regular meus hormônios e acabar com as espinhas.

E mais que isso, eu podia sempre ter certeza de que não estava grávida dentro de um mês, e controlar meu ciclo com precisão.

Aí eu voltei a tomar e de novo vieram dores nas mamas e uma depressão bem pior que a anterior. Eu estava já me perguntando o quanto da minha personalidade se perdia quando eu abdicava dos meus hormônios. Eu agüentei três meses disso, tive um mês de pausa, feliz e tranqüilo porém com todas as espinhas doloridas do mundo e acabei voltando, para mais humores desagradáveis. E agora mesmo tomando pílula estou cheia de espinhas, e que significa que meu médico vai me receitar algo mais forte, e, francamente, eu vou dizer não.

Cansei dessa palhaçada, cada vez um efeito diferente, humores horríveis, resultados incertos, fora a aporrinhação de ter que tomar esse troço todo dia.

Sobre o que eu estava falando mesmo?

4 comentários:

Marcio Zamboni disse...

sempre vi uma violência implícita na obrigação feminina de depilar as pernas... e em certa medida de tomar pílula.
desconfio do discurso que diz que a pílula liberta a mulher. a pílula não liberta a mulher, ela de certa forma obriga a mulher a estar acima do ciclo mestrual, a controlá-lo completamente, a fazê-lo imperceptível para os outros.
é uma concessão questionável.
acho em certo sentido a descriminalização do aborto muito mais revolucionária.

Charles Bosworth disse...

Que interessante. Conheci várias coisas sobre você.

Anônimo disse...

Aborto como metodo anti concepcional eh uma ideia impensavel. Curetagens zoam as paredes uterinas e, aumentam muito as possibilidades de complicacoes. Mas ficar sofrendo com efeitos colaterais de pilula anti-concepcional nessa epoca tambem eh uma bobagem. Passe para anti-concepcionais injetaveis.

Ozzer Seimsisk disse...

Acho que nesse sentido a questão da pílula é meio como a questão das burcas.