quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Daquele texto de carmina burana

Eu sei que todo mundo que lê meu blog também no mínimo faz uns passeios pelo Peçanha, mas mesmo assim achei que era uma boa idéia publicar aqui mesmo a seqüência de ilustrações que ele fez inspirando-se num texto meu; sabe, boa educação. Ele está publicando essa série há um bom tempo, e inclusive no começo ele insistiu bastante para que eu fosse publicando os desenhos no meu blog, não sei precisar exatamente por quê, mas eu fui não fazendo isso em parte por preguiça, em parte por distração, em parte porque sendo ou não autora do texto-inspiração no fundo eu tenho tanto a dizer sobre os desenho quanto qualquer pessoa com poucas opiniões sobre objetos de arte. Não é que eu não tenha comentado, eu gostei dessa parte, achei essa outra meio estranha, mas como o Márcio disse a ilustração é um diálogo e o discurso dele, perto ou longe das minhas metáforas, ainda é uma coisa que não me sabe naturalmente. Eu percebo que as imagens dele não estão extamente tentando representar o que minhas palavras dizem, e sim fazendo um comentário, ou explorando uma sensação ou um pensamento que surgiram nele quando ele leu essas palavras; é difícil ler algo que faz referência a uma imagem que você conhece bem, mas através de lentes que não são simples nem tão conhecidas assim. Também tem o fato de que é muito difćil compreender elementos isolados do conjunto. Com o passar dos quadros fui começando a criar uma vaga compreensão de como é uma linha, uma mancha.



Mas eu ainda não entendo, por exemplo, o que é essa capa?! Quer dizer, é claro que as cores estão certas, mas o que significa essa tipografia, que não tem nada a ver com nada? Essa coisa microondulante, desestruturada, que me faz pensar em amebas dançando? Não consigo entender o que levou o Peçanha a fazer essa entrada, depois de todas as suas mulheres meio deusas, etc.

Do som que sai dos teus lábios
(Carmina Burana, Carl Orff)


Então eu abro os olhos e meus olhos se enchem de música. Aí está você: nesse som, nesse verde que enche meus olhos quando eu vejo a paz que me invade quando eu ouço esta melodia, estas vozes. Neste momento, eu te amo. Neste momento eu sou o que eu quero, um cavaleiro voando sobre os campos, nada me pára, nada me contém, há coisas que eu salto e há coisas sob as quais me abaixo, mas nada se interpõe à minha vista do céu, porque neste momento eu sou livre, e neste momento eu alcanço o que você quis me dar. Eu alço vôo e o mundo é realmente tão grande!, como você disse... Uma guerra uma poesia se desenrola debaixo de mim. E de repente há silêncio. Acabou uma música.
Você concordou que dizer eu-te-amo era muito complicado e eu tive que me explicar: o que estou dizendo é: (eu te amo é:)


Quando eu vi esse desenho, a princípio eu fiquei bestificada com a compreensão súbita de que todas as minhas imagens extremamente orgânicas e naturais, extraídas de lembranças de praias, montanhas, histórias de cavaleiros e noites íntimas em lugares selvagens iam ser comentadas por texturas geométricas que não remetem ao toque, formas planas sem efeitos de luz, sem o claro-escuro das emoções sublimes de leveza e liberdade, e corpos de porcelana, sem a brutalidade pitoresca das lembranças que criaram tudo aquilo. E no entanto eu vejo como essas coisas estão apenas na minha mente, e como a ilustração de fato se relaciona com o texto.
Esse parágrafo na verdade era pra falar de liberdade, aquela ânsia de correr pelo mundo que nos torna incansáveis. A liberdade é o melhor presente que alguém pode dar, seja na forma de uma viagem, de um pensamento ou de uma música. Eu estava falando sobre a fúria de chegar a todos os lugares e viver todas as emoções, sobre não ter limites e ver todas as coisas do mundo (por isso é pitoresco, e complexo). Por isso também, eu tive dificuldade em entender o desenhom que me parecia tão leve, talvez até pacífico, e estático. No entento, ainda estamos falando da mesma coisa: a mulher flutua sobre o mundo e o pega nas mãos, completa e livre. São só visões tão completamente diferentes.
É que você chegou a mim
E num instante você viveu em mim
E sem perceber você entendeu uma parte de mim
Você estendeu a mim a sua chama
Você alegrou meu coração e mudou minha vida
E agora...
E agora eu te dou um passe
Para que entre e saia livremente dessa terra
Um passe-livre por meu coração.


E esta por outro lado, quando eu vi fiquei completamente encantada. Ela tem tudo o que faltava na outra (fora cores) - é detalhista, complexa, orgânica, intimista. Essa é a única que me dá a sensação de estar confessando o poema, de estar falando conosco. Ainda me estranha a delicadeza dos traços, das formas, porque eu leio meu texto sentindo todas as vísceras e é tão esquisito não ver nada disso, mas eu vejo muitas coisas que estão lá só pra mim, e eu sinto que este desenho é Amor, incontestavelmente. Ele grita amor. É curioso porque essa parte do texto não falava exatamente de amor a princípio, ele falava de como é desnecessário entender o amor como amor, mas lendo agora é difícil evitar sentir isso que o desenho transborda, essa majestade meio fantástica de mulher livre e amorosa. Acho que parte da minha surpresa é que eu escrevi o texto de uma perspectiva intimamente infantil.
E agora é esta a paisagem dentro de mim: há tapetes vermelhos dentro de um castelo, uma fortaleza, que assoma no topo de uma encosta, eu eu sou o pássaro que circunda a torre mais alta, e eu sou o homem que entra com passos pesados na sala do trono. Tudo é um sonho e tudo se desfaz. A música muda e as faces dos homens mudam. Tudo é energia, um tambor que bate regendo o coração dos homens. E eu estou aqui, eu sou as paredes e os cascos dos navios, eu sou o couro dos tambores, eu estou aqui tentando sentir e entender, procurando a resposta, procurando através dessa música, procurando a lembrança do som que saiu dos teus lábios. Eu procuro (e eu sei que é em vão) o som da tua voz através das trombetas, o som da tua voz cantando pra mim, a lembrança de você olhando nos meus olhos. Tudo é tão suave, e tão pesado, e entretanto de repente eu sou uma pomba, eu vôo sem destino, meus olhos são lágrimas, minha boca é um gosto passado, eu sou um anjo perdido procurando a resposta, procurando o sentido do som que saiu dos teus lábios.

Eu preciso fazer um comentário antes do desenho (não que faça diferença, porque todos vocês já viram). Para mim, as imagens são importantes. As imagens dão contexto às idéias, cercam-nas de implicações, motivos e sabores. Esta era a parte que falava da majestade, dos sentimentos estruturados, de olhar nos olhos, de ficar frente a frente, de lugar, de presença, e principalmente de busca, de aflição em meio ao caos e à incompreensão.


Eu adoro essas ondas que remetem à xilogravura japonesa, e as colunas. Me parece que o Márcio povoou um cenário que poderia ser o mesmo que o meu com sentimentos praticamente opostos aos meus. Eu acho que esse desenho combina com o começo do próximo parágrafo,
Quem eu sou? Você me pergunta e eu sou a sua pergunta. Mas agora não importa. Quando sair de mim, deixe aberta a porta -- há muito lá fora que eu quero convidar a entrar; há muito no mundo que eu quero habitar, mas que também quero que me habite.

que é mais confiante e tem mais pés no chão. Muito me intriga que nos parágrafos de desespero as mulheres ainda estejam de pé, dominando (sempre tenho a sensação de que a onda é vassala dessa mulher), seduzindo, convidando. Ela parece tão segura de si, não parece estar desesperada por respostas. E há tantas formas de interpretar isso (a começar pela possibilidade dela não estar fazendo o papel do eu-lírico), mas a que mais me interessa é que - bom, talvez as pessoas em geral sejam assim magnas por fora.
Eu devo ser a terra e o viajante (eu devo ser a estrada e o violeiro) e eu devo ser a fonte e o sedento, e eu quero ser bem boi como berrante. Me guia e eu te guio! Eu sou o céu e a estrela. Eu não ouço as palavras desta música, mas pra mim é como o céu cantando, eu ouço a voz dos astros e eu flutuo entre eles. E eu ouço a voz da vala das estrelas. E eu lembro da sua história, e eu tento imaginar a beleza -- como será acenderem-se as estrelas?



Ah, eu gosto desse desenho porque me parece que elas estão criando o mundo, um pouco como aquela velha dos ossos da lenda que canta o lobo. Aliás quando eu disse vala das estrelar eu estava falando de Varda, mas não tive a manha de fazer uma citação mais direta (o que que eu ganho mesmo por citar o Valaquenta?). A propósito os valar também criam o mundo com suas vozes. Mas não sei por que a galinha alada e o polvo, eles têm algum significado especial? Eu só acho muito bonito. É uma coisa de criar a si mesmo também.
Então as estrelas disparam e o mundo vira uma torrente uma avalanche, eu páro no meio da música, olho ao redor, suspiro, respiro fundo e me pergunto: onde estou? Esta é a minha casa, hoje é dia das mães. Mas não significa nada. Minha alma não entende nada de casas e calendários. E eu não entendo nada de música. Eu sou um joguete nas mãos dessa melodia. Finalmente eu lembro da tua voz, a tua voz cantando, a tua voz dizendo declamando com tom grave a thousand kisses deep. Mas eu devo te ouvir, cada canção, cada palavra, e enxergar cada emoção que teu olhar transparece. Eu rio. Porque te leio tão fácil e mesmo assim desconheço. Quem você é? Eu pergunto e eu sou a minha pergunta. Mas só por muito pouco tempo. Num instante eu pisco como uma estrela e eu sou outra coisa, eu sou uma outra vida. Minha alma é uma coisa dispersa, um vento, uma torrente que se divide e volta a se unir. Eu rio, porque eu sou leve agora. Agora eu não posso te ouvir, mas sei o que você fala. Porque através dessa música é você que fala, e é você no meio do mundo de vozes que é o universo. Eu ouço tudo, mas muito pouco eu entendo. E como quero entender! Por isso continuo buscando, eu estou buscando a pergunta, e eu busco todas as coisas através das vozes de todas as bocas.



Ok, eu adoro esse desenho. Eu adoro tudo nele. Eu adoro a expressão pensativa da mulher, eu adoro a cidade, e o fato de que ela não está nem quer estar nela, e sim numa espécie de mundo próprio, num barco, que sempre me remete a flutuar, sonhar, explorar outros mundos e se libertar; eu adoro esse sol que existe nos dois mundos, esse sol de véu que acaba ficando meio personagem, meio mágico também. Aliás eu acho esse sol particularmente simpático. De verdade, eu preciso enquadrar esse desenho e pôr na parede. Eu também acho que ele transmite uma serenidade muito parecida com a do texto. O que me intriga um pouco porque os anteriores foram tão contrastantes.
E como a tua boca me morde, eu enxergo no clarão da dor o grito de todas as coisas. A tua voz nem existe agora, só existe esse terror, esse rosnado. Meu coração dispara e meu sangue urra, no fogo do teu veneno e na explosão dum sors salutis -- e de repente minha alma é fogo, meu mundo é fera, meu sangue é fúria e eu devoro o mundo e nada mais é anjo nada mais é água nada mais é calmaria porque tudo é pura loucura! Eu me levanto contra o frio da noite eu sou o Sol, invicto e irremovível, iluminando e queimando as retinas de todas as coisas eu sou a Luz cuspida de teus lábios eu sou o teu sangue e meu peito cresce num rosnado-desejo que fagocita o mundo e num instante eu sou completamente um tudo demoníaco -- e então minha alma voa.



Eu tenho que dizer: para mim essa é a parte mais importante da Carmina Burana, é o clímax do texto, e é a parte que fala das coisas mais reais que esse texto discute. Acho legal comparar a O Fortuna com esse trecho com o desenho: fortuna, fera, deusa. Não sei se essa ordem é necessária ou se dá para passar direto da fortuna para a deusa. A fortuna na verdade diz que tudo é passageiro e que tudo o que se levanta um dia cai, e a liberdade que cria a fera se levanta além e ao redor disso, ignorando a possibilidade da morte, vivendo intensamente o ápice da vida e da glória e em seguida a liberdade de se desprender de tudo. Não existe melhor ou pior. Da mesma forma não exite melhor ou pior na imagem da deusa, só uma espécie de perenidade momentantânea do poder (porque essa imagem parece prestes a se desfazer, apesar da sua imponência). Acho que tudo é a mesma coisa aqui, o final glorioso da última música, a ascensão da fera, a divindade -- e tudo se desfaz imediatamente, no silêncio, no vôo, na volta ao corpo físico e à realidade mortal e humana.


Do alto do vôo da minha alma eu estou ouvindo palmas, e isso quer dizer que a música acabou. Mas eu me sinto leve, a música me liberta, eu fecho os olhos e a noite me carrega para onde eu quero estar, onde a música é nectar, onde a tua voz existe dentro de mim, no ímpeto de um raio e na candura de uma vela. Eu abro os olhos e você está me olhando, mas já não são olhos de fera. Então eu abro os olhos e estou aqui novamente, e eu estou sozinha.

Eu apoio o rosto nas mãos, e meus olhos são lágrimas, e meu coração ressona e tudo é silêncio através dos pequenos barulhos do dia. Eu caio em mim. Eu olho para o céu, e eu estou buscando a pergunta que eu sei que não existe, e eu queria ser o ar para poder me encher desses sons que saem de todos os lábios


Eu goste deste final. Para mim os finais muito emocionantes são todos assim: passa-se do êxtase à leveza ao vazio. Cai-se da tranqüilidade sonhadora à tranqüilidade vazia. Mas ainda é uma tranqüilidade, embora triste. Ainda é paz. E aqui é a paz de querer algo e saber que é impossível, de perguntar sabendo que não haverá resposta. Essa parte, de volta a si, é a parte mais incorpórea da experiência: quando as palmas já não fazem sentido, nada se sente, porque se desaprendeu a sentir com o corpo, agora tudo é espírito. Já a ilustração me parece ver principalmente a coisa corpórea. Acho que é um momento estranho pra começar a representar literalmente as imagens, agora que a ação e a emoção estão particularmente desconectadas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Il semble que vous soyez un expert dans ce domaine, vos remarques sont tres interessantes, merci.

- Daniel