quarta-feira, 27 de maio de 2009

Olhos brancos

Naceu num verão de Stellacranei um filhote pálido como os demais, de pelo negro como os demais, e com os mesmos caninos pontudo — mas cego. Falar, falava, mas nunca coisas compreensíveis. O velho Cedro Sábio suspirava que o menino tinha boca-de-estrela, e só podia falar aos poetas. As crianças ouviam, mas tinham mêdo. Os adultos queriam que ele ficasse quieto.
Chamaram-lhe Olhos Brancos e o deixaram na escuridão da floresta. Ele voltava sempre mas era menos homem e mais animal. Jangada Seca, pai de vinte-e-cinco mas que nunca pegara uma caça, lhe dava um pedaço de carne para dividir com o cachorro. O menino aceitava e murmurava uma prece que fazia Jangada Seca apertar os olhos e os dentes de desagrado. As crianças, se viam Olhos Brancos, cuspiam e batiam os calcanhares no chão para evitar mau-agouro. O menino se sumia na floresta, mas amanhecia no dia seguinte nos braços da estátua central do Grande Jah — dormindo em seus braços imensos, fundido à pedra anciã. E acordava rugindo um épico: palavras longas demais, belas demais, que doíam nos corações de todos os Coyotes de Stellacranei. Arma Cega, guerreira feroz e filha da mesma mãe de Olhos Brancos, atiçava o irmão com uma lança e o expulsava da praça com gritos e hissados ferozes, querendo verter-lhe o sangue. Os Coyotes não conhecem a paz, por isso ferem tudo o que desconhecem.
O único que tocou a mão de Olhos Brancos foi Folha Morta, menino de voz aguda, olhos vermelhos, pele escurecida pela doença de sua mãe. Folha Morta era exímio caçador mas também era um pária: se tocasse com suas garras qualquer um dos outros, seria desmembrado pela tribo. Folha Morta tomou o menino pela mão e o levou até além do coração da floresta e lhe apontou o caminho, mas não podía segui-lo.
— Pela margem sempre, lá o Deus., ele disse (para os Coyotes, Deus era tudo o que não podiam pegar, morder ou arranhar). Folha Morta não podia partir mas mandou com o menino seu único amigo, um homem estranho que não tinha garras, não tinha caninos e tinha a pele escura. Além disso, Olmo Tolo não falava.
Olhos Brancos respondeu numa frase só; disse que se os aéreos soprassem uma raíz, não haveria floresta, haveria flores. Depois disso partiram.
Para Olmo Tolo o mundo era uma sinfonia e para Olhos Brancos o mundo era um caleidoscópio. Nenhum dos dois poderia olhar o horizonte sem ferir os olhos. Andaram até uma cidade onde não havia lei nem nome, e mesmo quando acorrentados dentro de uma jaula seus corações ainda estavam completamente encantados. O menino devorava o pão seco que lhe jogavam e o homem o abraçava quando chegava a manhã, pedindo que lhe sussurrase uma história. Foram jogados um dia numa grande arena, e continuaram abraçados. Para Olhos Brancos, o mundo poderia ser um incrível vento luminoso. Quando ele abriu a boca, era o que queria falar. Queria falar do mundo, esse grande vento luminoso.



Os habitantes de Maxímia não eram surdos como os Coyotes. Eles ouviram as palavras de Olhos Brancos, eles vislumbraram a alma de Olhos Brancos. Um a um os habitantes de Maxímia, confusos e emocionados, levantaram-se dos seus lugares. A princípio para lhe atirar bobagens, para reclamar que não estavam entendendo nada — mas depois, cada vez mais, embevecidos, como que dominados pelas palavras fluidas, pela sonoridade, pela potência da canção de Olhos Brancos, pela perfeição de suas metáforas, pela beleza de suas construções — e tudo fluía como castelos de areia, como cartas, como um vento que vira um palácio, como aquilo que os Coyotes chamavam de Deus.

Quando terminou, Olhos Brancos abriu os olhos. Para Olhos Brancos, o mundo era incrivelmente belo.

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