terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Metamorfose

Olhou-se no espelho, eram três horas da manhã, e a imagem no espelho respondeu com um sorriso cínico. Fingiu indiferença, quem era o espelho para dizer qualquer coisa sobre sua vida? No espelho os lábios eram vermelhos apesar de não haver batom, e os olhos eram profundos como se tivessem por trás um mundo inteiro de desejos e segredos pecaminosos. Sustentou o próprio olhar invertido, com raiva silenciosa. E o espelho devolvia sua raiva com caretas e carrancas completamente desconhecidas. Até as rajadas na íris tinham se modificado ao longo dos anos, e sua lembrança daqueles olhos estava como que estagnada em algum ponto do seu passado. Também os lábios haviam mudado, se projetado, à custa de mordidas nervosas de seus e de outros dentes. E a carne nos lados do rosto, aquelas carninhas entre a bochecha e a mandíbula que odiava, haviam desaparecido. Ela se encarava, tensa, desconfortável como se diante de uma grande figura, como se diante de uma multidão, fazendo caras e bocas para si mesma, tentando, de alguma forma, resgatar qualquer semelhança entre sua própria face, a da sua memória, e a que via diante de si. Mas o espelho, inflexível, negava qualquer consolo, mostrando sempre uma pessoa completamente diferente, em gestos, em cores, em olhares, da que ela procurava tão desesperadamente. E agora ela mantinha um silêncio receoso, porque não queria descobrir no que se transformara sua voz. Sabia que tinha uma voz aguda, às vezes um pouco desafinada, às vezes grossa, às vezes infantil, e sequer gostava da idéia que fazia de sua própria voz; não poderia suportar, porém, que tivesse acordado com uma voz estável, ainda fina, mas como flauta doce, e sutil ou misteriosa. Nunca poderia respeitar-se se sua voz fosse fascinante, se fosse sedutora, se fosse belíssima. E se olhava assustada no espelho imaginando que se prendesse o cabelo, usasse um boné e (mesmo assim) tomasse sol no rosto, se vestisse umas jeans largas e camisetas estampadas, com algum tênis furado, ou se desse um jeito de se sujar de grama, casca de árvores e barro, quem sabe poderia voltar a se parecer com o que costumava associar a si mesma. Talvez até voltasse a se sentir forte daquele jeito, talvez voltasse a pensar que tinha dentro de si a força de todo o mundo. Talvez até voltasse a escrever. Afinal, ela não escolhera realmente sofrer a transformação. E não poderia de maneira alguma aceitar se transformar numa daquelas meninas lindas que sempre admirara. Pior que isso: ela nunca se perdoaria por se transformar numa mulher como as que ele mirava...

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