quinta-feira, 4 de agosto de 2016

De falar palavras

às vezes parece que palavras significam coisas, mas é ilusório.
palavras menos significam, mais sugerem, lembram, parecem.
palavras significam tanto quanto cores, imagens, metáforas.
em certo sentido, todas palavra é uma figura poética
escrever é, sempre, poetar.

assim principalmente palavras mais puramente metafóricas, como, ilustremente, amor.
amor em si não é signo propriamente dito, é mais uma evocação vaga de umas associações, é uma palavra como se fosse um cheiro.
amor em si não é coisa que se denomine tanto quanto coisa que se associe vagamente com uma sensação
sentir amor é antes de tudo um chute: sente-se uma coisa, e pensa-se "deve ser isso o amor, talvez"
também assim solidão, coragem, felicidade, tristeza, ódio, frustação, tédio
nenhuma têm em si uma definição, é mais um reconhecimento vago, "deve ser isso aquilo que chamam de tédio".

por isso assim é difícil pra mim dizer o que significa "eu te amo"
ou "estou triste"
ou "sou feliz".

também assim atração física, amizado, sensualidade, desejo
sente-se antes que exista palavra, e fala-se antes que se entenda o que se fala
e assim falamos meramente através de metáforas
também as tentativas de definir são vagas e vãs e isso se aplica especialmente a identidades, a orientações, a gênero

por isso me ocorre que quando me diz "eu te amo" eu me pergunto "??????" e é uma pergunta assim sem palavras só interrogações o que diabos querem dizer essas três pequenas palavras-metáforas
eu
te
amor

amor pra mim é como uma sensação de ter imensamente maior do que eu e tão pequenamente tão pequenas coisas como aquilo que a gente sente quando uma pequena pessoa um projeto de gente nos abraça espontaneamente e aquele minúsculos lábios ensaiam um projeto de beijo
caramba mas amor é aquilo que me dá quando eu vejo uma fenda na rua uma muda nascendo brotando em câmera lenta, quando num vislumbre se vê toda a imensidão do tempo, o passado geracional e o futuro mais longe ainda, quando as árvores três-andáreas forem plântulinhas e as sementes forem o início de uma nova floresta
amor é aquilo que dá quando uma estátua envelhecida coberta de musgo e uma pedra que poderia estar ali a centenas de anos, com um nome cravado difícil de ler, e umas datas
aquilo que dá quando um cânion muito profundo cortado por uma queda dágua
e um cristal imenso largado no chão porque ninguém roubaria um cristal assim, tão deliberadamente transformado em paralelepípedo de cercar flores.

amor como quando eu recebo uma mensagem sua e me ocorre largar todos os planos inclusive comer e dormir, só pra te ver por talvez cinco minutos (mesmo que eu me controle e decida manter os tais planos)
ou como quando eu penso em você e ao mesmo tempo parece que estou pensando em todos os livros que eu já li ou quis escrever porque de alguma forma eu associei você com toda essa parte imensa da minha vida.
amor como quando eu acordo e não consigo entender porque você não está do meu lado, ou como quando eu te encontro e de repente todos os meus planos vão por água abaixo porque eu preciso mesmo contar todo o meu dia pra você.

também assim quando eu vejo o sol através da janela do ônibus e entra uma pessoa e senta do meu lado e eu penso em tudo o que eu não sei sobre aquela pessoa completa que tem toda uma vida longe de mim
Ou como quando eu ouço um sotaque da minha cidade e me pergunto até que ponto essa voz fala com as mesmas gírias que eu, e vive a mesma vida, uma cópia da minha vida.
também assim terror, pequenez, e grandeza.
amor é menos uma palavra, e mais uma coisa vaga, que é tanto gente quanto árvore e pedra e ar.

por isso tanto mêdo de dizer que também te amo e você pensar em coisas puramente humanas como beijo e sexo e espero que não mas quem sabe fidelidade
mêdo de eu dizer eu te amo e você me amar de volta ou não me amar de volta, mêdo de me dizer eu te amo e eu não amar de volta ou amar de volta
por isso tanto mêdo de tocar e todas aquelas obrigações de limites e desejos e fetiches e um monte de coisa que não cabe em uma palavra mas finge-se que cabe
por isso tanto mêdo de cair num abismo onde gente fica mais importante que o cheiro da areia quente
e o macio de uma casca de árvore
um ronronar

amor quem sabe pela cor de uma libélula
ou pelo colorido de um pôster dos anos oitenta
ou por um figurino do david bowie no auge da sua glamroquisse.

amor também porque se mistura com nojo, nojo fundamentalmente de tudo que se mistura com tudo o que se mistura com amor principalmente esse amor que se confunde com gente mas que não se permite misturar com amor porque uncanny valley ou porque tabu
amor também quando sinto aquela coisa bizarra quando vejo uma cena num filme e de repente a vida parece mais inensa e cheia de possibilidades e eu não entendo porque não quero chamar essa potencialidade tods de fetiche mas também não vejo outra saída

amor por coisas muito antigas, muito dolorosas, como vampiros, elfos, aliens solitários errantes.
amor por coisas perturbadoramente pequenas, como uma bacia de pedras que a água formou espontaneamente.

e afinal mêdo, talvez porque essa palavra que eu insisto em usar é menos uma palavra e mais uma invocação, e que eu insisto em usar nos momentos errados, como quando eu falo de pedras, aliens, gatos; mêdo de que essa palavra saia dos meus lábios e chegue em lugar nenhum porque assim que encontrou o ar virou uma outra coisa, uma coisa que tem outro contexto completamente.

mêdo porque eu te abraço e você tenta me beijar e menos ainda eu sei lidar com essa boca que não é minha e que eu não compreendo, e mêdo também quando eu penso em te beijar e percebo que eu não saberia o que fazer depois.

mêdo também porque a imensidão das coisas cabe num instante, e prolongá-las torna elas ainda mais imensas, ou muito irrelevantes, e porque os finais são sempre um tanto quanto menos emocionantes que os começos, e sempre sobra aquele gosto estranho na boca, de ter vivido algo e não se saber direito se já passou ou se ainda se tem 13 anos para sempre.

mêdo talvez porque a vida vai virando uma bizarra coleção de passados, e cada vez menos se é e mais se sente e se vê, até o ponto que eu viro de novo criança, do auto da minha auto-confiança, destruídos tantos estúpidos preconceitos.

mêdo de que te amar seja o primeiro passo para te deixar, daqui a muitos anos, para encontrar um futuro que eu desconheço e não consigo nem vislumbrar. Mêdo de que depois do amor sobre essa saudade que eu ainda sinto, e tanto, e que eu não posso mais. Mêdo de eu seja insuficiente, não porque eu não seja muito, demais, até, mas porque eu seja muito na direção errada, na direção que eu preciso conter e fingir que não é importante, e muito pouco talvez nessa direção que você parece imaginar que eu seja. Mêdo dessa projeção louca, do meu corpo me definir através dos outros, quando através das pedras e das árvores e do sol ele nada mais é que o meu corpo, capaz de me levar grandes distâncias.

Em certo sentido é mais fácil amar quando se ama errado, tudo, e demais. Amar românticamente pessoas de forma saudável é... chato, e duro, e perigoso.

Em certa medida eu lembro com asco a sensação de desespero de te querer e não poder te ter, e você rindo da minha cara por eu ser assim, tanto, e tão ingenuamente.

É mais fácil ser tudo isso quando se é em todas as direções
Assim também "amar", assim também "ser feliz".

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