Na cidade de Raéa tudo era tão bonito! As praças estavam cobertas de lírios e as torres dos palácios se erguiam claras e majestosas em direção ao céu azul e límpido lá em cima. Em Raéa nunca chovia, nunca ficava nublado, talvez porque a cidade estava acima da maioria das nuvens, no topo dos picos fantásticos que o povo comum chamava de Heaven. É claro que o nome original do lugar era Haven, mas quem discordaria do nome que o povo dava, quer dizer, haveria um lugar mais próximo de se chamar de Céu? Os enormes pássaros de Raéa se agitavam e cantavam para despertar a cidade. Os habitantes de Raéa, como qualquer povo de boa fé, veneravam a Quemi, o Pássaro das Cores, e a Quehy, a Fênix de Luz. Exemplares jovens das duas espécies saltitavam aqui e ali, colorindo e iluminando o ar em que dançavam; mas o pássaro mais presente da cidade era o que eles chamavam de Alma dos Ventos, uma ave imponente que parecia nunca parar de crescer e que viajava distância inacreditável para fazer seus ninhos nas torres dos palácios. E, como era bem cedo, os parapeitos das janelas estavam apinhados de Almas das Manhãs, os menores pássaros de Raéa (ainda um pouco maiores que um sabiá de peito laranja), que tinham penas macias como as plumas de um bebê e que se reuniam ao nascer do sol para se aquecer, conversar com seus irmãos em trinados baixos e graves e entoar adoráveis cantigas de acordar. Não havia melhor forma de acordar que o amanhecer de Raéa! O sol entrava por todas as janelas e fazia brilhar as torres imaculadamente brancas. As casas baixas, feitas de blocos mais rudes das pedras claras das montanhas, estavam cobertas de flores delicadas que se abriam ao toque do sol. Cada porta, esculpida na mais nobre madeira jovem que crescia timidamente abaixo das nuvens, se abria, e cada janela, apenas para deixar o vento entrar. Logo todos estariam despertos, e a cidade estaria cantando com o prazer de um novo dia. Era por essas manhãs que Lyserh vivia. Ele adorava saltar para a rua e sentir o ar correndo por sua pele enquanto abrandava a queda. O azul do céu e o branco brilhante das casas e das flores o preenchia , como o calor do sol. Ele cumprimentava os pássaros ao caminhar pela praça. Era sua vez de ser feliz. Era tudo o que tinha na vida.
Neste dia, Ly também estava feliz porque ia conseguir uma coisa a mais, uma coisa a mais a que se agarrar nos momentos em que a luz parecia distante. Ele não tinha a menor dúvida de que a partir de então ele seria feliz! Ali, em Raéa, onde cada dia era perfeito, ali ele ia encontrar seu lugar do lado direito de Deus. Era impossível parar de sorrir. Ali ele ia encontrar aquilo que daria sentido à sua vida.
Ele atravessou mais algumas praças cobertas de lírios, e algumas ruas estreitas e floridas, saltitando de pedra em pedra e cantarolando para acompanhar as Almas. Antigamente ele costumava pensar com freqüência em como seria, depois da morte, é claro, ser um pássaro e passar seus dias planando e chilreando por aí; mas hoje esse pensamento sequer lhe ocorreu -- a vida parecia tão bela assim do jeito que estava! Era difícil pensar em coisas tristes ou mesmo coisas imperfeitas neste dia alegre.
Uma sombra passou por sua cabeça; a sombra do pórtico que separava seu bairro, cheio de jardins, do centro de Raéa, onde as construções altas de pedra antiga e acinzentada deixavam todo o espaço fresco e sombreado. A rua em frente era longa, estreita e cheias de portas dos dois lados, numa parede de sobrados interrompida a cada dezena de metros por vielas laterais. Mais adiante, a rua se inclinava em direção ao cume da cidade, e os topos das construções da região mais alta apareciam por trás dos telhados dos sobrados.
Lysere pôr os pés no chão e correu pelos próximos quarteirões, ansioso agora que podia enxergar a ponta do prédio ao qual se dirigia. As ruas estreitas e sinuosas do centro estavam apenas acordando, e o menino, que conhecia Raéa com a planta dos pés, corria através das primeiras barracas montadas nos mercados, e cortava caminho por dentro das galerias que acabaram de abrir, e se enfiava em ruelas esmagadas entre casarões para atravessar pracinhas nos fundos dos quarteirões. Em Raéa, conforme se chegava mais perto do cume, mais as construções tinham ornamentos e torres e balaustradas, e mais eram feitas de pedras coloridas e inclusive mais escuras, e aqui algumas delas tinham também gárgulas pretas sobre os balaústres, beirais e cumeeiras, com formato de dragão mostrando os dentes, e mais para cima ainda haveria gárgulas de pedra clara, com formato de grifo ou de águia, e nos pés e nas costas das gárgulas as Almas das Manhãs faziam seus ninhos, equilibrados.
Mas a rua que Lysere procurava era uma curta e um pouco mais larga, escondida no meio das ruas amontoadas do centro, ainda na região onde as gárgulas eram pretas e as construções eram de pedra cinza mais escura que em todo o resto da cidade. Para chegar nessa rua era preciso passar por galerias e vielas e caminhos que nem todos conheciam, e ela estava fora de todas as rotas da vias grandes, e por isso era muito vazia e tranqüila, e a essa hora da manhã parecia deserta. Essa era a rua dos mestres do conhecimento, que viviam reclusos com seus discípulos em suas torres estreitas. Cada torre era cercada por um muro baixo, com portões vazados e ornamentados que davam para a rua, e muitas delas tinham jardins ou sacadas, onde às vezes era possível ver um aprendiz dormitando, lendo ou apreciando a manhã. Algumas das torres eram apenas prédinhos quadrados de três ou quatro andares, outras eram circulares e iam afinando nos andares mais altos; algumas delas tinham portões grandes no andar térreo, outras tinham portas pequenas de madeira, e algumas ainda tinham apenas uma escada exterior que levava a uma porta-balcão no meio do segundo-andar. Muitas delas tinham os andares superiores feitos de pedra branca, como as casas das periferias da cidade. A Rua dos Mestres era uma das mais antigas da cidade, e quando Liserh corria por ela ele sentia o cheiro das madeiras e pedras escuras e das trepadeiras que cobriam todos os muros e quase fechavam as grandes janelas, e sentia o olhar das gárgulas monstruosas vigiando-o em seu caminho, o mêdo que toda criança tinha daquela parte da cidade se somando ao nervosismo pelo que ia acontecer com ele hoje. Quando chegou ao seu destino, Liserh parou para recuperar o fôlego e a calma, querendo parecer controlado e respeitável ao entrar.
Era apenas por um acaso histórico que a pena de Raéa do Braço do Grande Anjo, a força militar de elite que servia à defesa de Heaven, tinha sua sede na Rua dos Pensamentes. O prédio da sede se destacava de longe porque suas paredes eram impecavelmente brancas, livres de trepadeiras, ao invés de ter gárgulas negras e assustadoras espalhadas pelos beirais, tinha um único Grifo branco e dourado alçando vôo de cima da grande janela do terceiro andar, sobre um telhado ornamentado apenas com telhas em forma de penas. O terreno era maior do que os outros da rua, e o portão era mais alto, e o próprio prédio era mais largo, e embora não fosse um dos mais altos, ele se destacava por seu uma construção inteiriça, diferente das outras torres que tinham pedaços construídos em época diferentes. Desde a primeira vez em que vira aquele prédio, Liserh sentira que ele era especial, e quando aprendera na escola que aquela era a sede do Braço do Grande Anjo, se tornara seu sonho um dia ser chamado para entrar naquele lugar.
(estou publicando provisóriamente, deixem comentários)
2 comentários:
Eu imaginei que ele ia se tornar um aprendiz dos sábios. Foi uma surpresa, e agradável, saber que era pra parte militar que pretende ir.
E as descrições são ótimas.
Uma cidade tão linda...
Tem algum motivo pelo qual o nome do protagonista vai mudando?
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