segunda-feira, 1 de outubro de 2007

A Morte de uma História, a Lenda de Black Bellamy e a Mulher dos Ossos - parte 2

Este texto ainda é dedicado ao Ugo, embora talvez não pareça. É que eu achava que o Ugo não existia nas minha paisagens internas (o que quero dizer é que não há uma metáfora associada a ele — ele é ele mesmo), mas agora vejo que um rapaz distinto se aproxima da costa e procura pelo horizonte seu futuro navio... Mas essa é uma história para ser contada outro dia...



Eu não sei exatamente o quê no texto do Ugo simplesmente disparou algo em mim. Relendo várias e várias vezes aquele texto, não consigo reencontrar a certeza e a clareza com que os ideais dos piratas de Black Sam Bellamy afloraram na minha mente, e a necessidade de contar sua história que se infiltrou determinantemente em mim. Acho que nada disso teria acontecido se minutos antes eu não estivesse lendo aquele livro; se naquele livro não estivesse escrita aquela singela palavra, se não estivessem transcritas aquelas histórias simbólicas, eu não estaria, certamente, escrevendo isto aqui.

Clarissa Estés, a autora do livro, diz que onde quer que ela fosse, ouvindo e buscando lendas e vivências, essas histórias, de pessoas que se dedicam aos ossos, que ressucitam os mortos, ou de uma mulher que é uma loba que é uma mulher, a perseguiam. La Huesera, a Mulher dos Ossos, é uma velha que percorre os desertos recolhendo ossos que podem se desfazer na areia. Ela mora em uma caverna cujo chão está coberto de ossos de lagartos, cobras e pássaros, mas o que a velha mais procura são ossos de lobos. Quando ela finalmente reúne um esqueleto completo de um lobo, e arruma cuidadosamente cada pequeno osso numa escultura no chão da caverna, ela senta-se diante dos ossos e pensa na canção que irá cantar. Quando a canção se revela para ela, então, ela estende suas mãos sobre os ossos, e começa a cantar, e conforme ela canta os ossos se levantam e se cobrem de carne.
Ela canta mais, e a carne se cobre de pele e os pêlos se levantam. Ela canta mais e mais forte, e a criatura-lobo levanta a cabeça e sua cauda ganha uma bela curva para cima. Ela continua a cantar, e a criatura-lobo começa a respirar. Ela canta mais e mais, e o lobo abre os olhos e dispara para fora da caverna, correndo pelo deserto com os pêlos brilhando sob o luar. Então, alguma coisa na noite, talvez um raio de luz que a lua cheia lança em seus olhos, talvez um resto de vento que levanta a poeira no seu caminho, ou as gotas da água de uma lagoa que voam sob seus passos, arrebata a criatura-lobo, e ela se transforma numa mulher, que corre nua pelo deserto, rindo e uivando para a noite. Eu gosto de imaginar que isso acontece exatamente no momento em que soa a última nota da canção da velha, na caverna.

O fato de a Mulher dos Ossos ser também chamada de La Loba me acorda para a idéia de que a velha e a mulher-lôba são na verdade a mesma coisa: algum dia a Mulher que Corre será velha, gorda e circunspecta, e andará pelos desertos recolhendo ossos de seus irmãos lobos. Ela dará vida e juventude a velhos ossos, repentindo o ritual ancestral de infinitas mulheres antes dela, que são, afinal, a mesma. Essa visão do conto, bastante diferente da discutida no livro, é uma repetição de uma história pessoal que a autora havia contado na introdução — um sonho seu, no qual ela contava suas histórias de pé sobre os ombros de uma mulher muito velha, que por sua vez estava de pé nos ombros de outra ainda mais velha, e assim por diante. Mulheres que Correm com os Lobos é um livro sobre a necessidade de se resgatar em todas as mulheres sua força instintiva e intuitiva, sua força criativa, sua liberdade, sua conciência, etc; entretanto, o que realmente me pegou foi essa idéia de continuidade, essa força das histórias, e a palavra "cantadora", contadora de histórias, que é como a autora (que eu tenho vontade de chamar de "narradora" e "protagonista") descreve a si mesma. Naquele instante me vieram à mente todas as pessoas na minha vida que haviam me contado histórias, fosse para ensinar, fosse para acalmar, ou simplesmente para divertir; me veio à mente a imagem de minha vó contando histórias para os netos na sua grande cama de casal.



Sabe, minha vó morreu quando eu tinha dezesseis anos. Dezesseis anos parece muito tempo para se conhecer alguém, mas a verdade é que nos últimos anos, quando eu finalmente tinha maturidade suficiente para enxergar as pessoas como pessoas (embora não completamente dissociadas de seu caráter simbólico), quase não vi minha vó. Assim, no dia em que ela morreu, demorei muito tempo para entender por quem, exatamente, eu estava chorando. Lembro que chorei primeiro pelos meus pais e tios, que haviam perdido sua mãe; depois, chorei pela avó que era minha, que contava histórias, que tinha uma voz doce, que errava os nomes, que servia almoços gostosos, que nos levava a lugares diferentes, que me ensinou a jogar xadrez, que eu amava; e só no fim, depois de aprender sobre ela inúmeras coisas que eu nunca tinha pensado, é que comecei a chorar pela pessoa que minha avó era: a mulher grande, forte, amorosa, amada por todos, a que ia em frente sem se embaraçar com seus próprios erros, a professora, a psicóloga, a que vencia os jogos de buraco, que ensinava os netos antigos joguinhos de lógica, que queria nos levar para o pantanal, que assistia filmes na sessão da tarde e aprendia com eles, e aprendia com tudo.
De certa forma, ler esse livro que minha avó leu, que foi importante para ela, é iniciar uma jornada à procura dela, de quem ela era, do que ela buscava. Enquanto leio, estou, mesmo sem querer, imaginando o que ela pensou quando leu aquilo, o que ela sentiu. Será que ela encontrou sua Luz del Abyss, será que mergulhou no Río Abajo Río? Qual será a história que mais a emocionou? Será que ela também se sentia na obrigação de contar histórias para nós, de nos ensinar coisas através delas? Será que ela se inspirou com esse livro, ou será que ele apenas reforçou o que instintivamente ela já buscava? Será que ela viveu a Loba dentro dela até o fim dos seus dias? Será que foi isso que lhe deu coragem, até o fim? para viver seu amor, para mudar sua vida, para ser "completamente feliz", como ela me disse? Para aceitar a morte? Para estender, ou segurar, a mão no momento certo? Será que minha avó foi verdadeiramente forte? Será que ela também desviou os olhos, e não quis olhar para as cavernas mais escuras do seu ser? Será que um dia ela teve muito, mas muito mêdo? Será que ela olhava para cima à procura do céu completamente azul?

Enquanto leio, enquanto escrevo, enquanto penso e sonho, olho para baixo e vejo que estou pisando nos ombros de minha avó. Mas ela quase não sente meu peso; ela poderia agüentar todos os netos em uma só asa, e sabe-se lá o que mais, na outra. Minha avó é uma enorme águia, um pássaro grande como o Róque (o mesmo Róque que olho passar voando da janela de minha torre, gato) mas com um olhar doce, arredondado, e não pontiagudo como o das aves de rapina. Ela é grande e protetora como uma mamãe galinha, com todos os pintinhos ao redor; mas seu olhar também não é assustado como o da galinha e o dos passarinhos. Também não é um olhar reflexivo e misterioso como o das corujas. É um olhar cálido, familiar. É um olhar como o de uma mãe. É algo que me faz procurar por ela, agora, tanto tempo depois. Finalmente.

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