Eu sempre me impressiono com a freqüência com que eu tenho que olhar pruma pessoa e tentar convencê-la de que eu sou uma pessoa humana de carne e osso. Isso acontece em todos os ambientes, em todas as bases, exceto talvez aquelas em que eu me sinto tão debaixo de uma pilha de pedras que não enho a força pra falar qualquer coisa sobre mim.
Eu existo.
Algumas coisas eu sou, outras eu faço, mas além disso eu sou uma pessoa real, eu estou na sua frente, falando com você. Você não precisa me olhar com essa cara, não precisa me tratar como um objeto, como uma curiosidade, nem com nojo.
É isso o que as pessoas fazem, por exemplo, quando eu falo que estudo matemática. Vocês deviam ver a cara e as reações das pessoas! Olha, eu já estive em três cursos diferentes, eu sei que não é assim sempre. Quando eu fazia Design, as pessoas ficavam animadas, me perguntavam mil coisas, queriam saber o que eu fazia, o que eu estudava, do que eu gostava mais, me pediam pra contar coisas sobre o curso e etc. Quando eu fazia computação, as pessoas me olhavam com admiração, comentavam como computação é importante, me tratavam como uma pessoa superior que sabia das coisas, me pediam ajuda (exceto os homens de TI, que tentavam me convencer de que nós tínhamos "algo em comum"); quando eu dizia que eu estava me aprofundando mais na parte teórica, as pessoas me olhavam com confusão, com um olhar vazio de quem não conseguia entender, como assim uma pessoa tem a oportunidade de ter uma profissão tão promissora e a joga fora pra estudar uma coisa tão inútil quanto teoria? Agora que eu faço matemática, eu recebo apenas a última parte, mas mil vezes pior. As pessoas me olham com raiva, com desgosto, com nojo, com incompreensão --- no melhor dos casos elas se esforçam pra não deixar transparecer muito o quanto elas acham matemática horrível, o quanto nossa amizade sempre será entravada pelo fato de eu gostar dessa coisa repulsiva que é a matemática.
Eu em geral sustento o olhar, respiro fundo, e tento manter a postura. Estou trabalhando cada vez mais na minha poker-face. Eu já entendi que todo mundo odeia matemática, que é um trauma na vida de todo mundo, mas eu quero mais é que se foda. Eu quero que seus preconceitos imbecis que você adquiriu nas suas aulas (péssimas, tenho certeza) da escolinha sejam completamente obliterados. Eu sou real. Eu estou aqui. E eu não me encaixo em nenhum dos seus preconceitos idiotas. Olha pra mim! (eu digo na minha mente enquanto eu sustento o olhar horrorizado da última pessoa); eu não sou homem, eu estou usando três brincos diferentes hoje, eu tenho cabelo curto com uma mecha comprida de um lado e penteado pra cima, eu não sou japonês, eu não uso camisa de gola nem óculos, eu tenho pernas peludas, eu uso roupas coloridas, e até um minuto atrás nós estávamos conversando sobre alguma coisa altamente política ou queer. Eu não sou uma pessoa maluca que por algum motivo decidiu se torturar, e eu também não tenho a intenção de torturar criancinhas com a horribilidade da matemática. Eu só amo ela. Eu amo a matemática que você nem conhece, a matemática que é lógica, que se expande, que revela coisas inesperadas, que torna iguais coisas diferentes, que se entrelaça, gerando técnicas novas, construindo-se. Eu gosto da matemática porque ela me conta histórias, porque ela é um grande livro de contos borgescos que se relacionam, se aproximam e se afastam. E ela tem muito pouco a ver com aquilo que você estudou na escolinha.
Então é isso, eu sustento o olhar, admirando a mais nova pessoa que me olha como se eu fosse subitamente me metamorfosear em um monstro. Eu agüento enquanto ela demonstra que ela acha que tudo no mundo é mais legal do que o que eu faço. Eu não quero que ela ache que isso me abala. Eu não quero que ela imagine que isso machuca. Eu só quero que ela perceba que eu não vou virar um monstro, que eu continuo sendo uma pessoa. E então podemos prosseguir com o diálogo.
Eu aplico mais ou menos a mesma técnica em todos os muitos outros casos em que as pessoas olham pra mim com repulsa.