Ontem fui no karaokê para o aniversário do Michel. Foi uma noite muito boa, muito divertida, apesar das muitas coisas muito desgradáveis que ocorreram ao longo da noite. Ocorreram muitas coisas muito desagradáveis, e sinto que todas elas de alguma forma foram culpa do machismo, seja por misoginia seja por hetero(ou mono)normatividade. Mesmo o CreeppyGuy louco que nos atazanou a noite inteira só foi tão incômodo porque ele era tão machista, porque usava termos objetificadores, porque fazia as mulheres se sentirem ameaçadas, porque repetia o comportamento de tantos outros homens machistas e agressores. As coisas que tanto me incomodaram foram na verdade coisas muito normais: apagamento de bissexualidade, coibição de danças homoeróticas (entre dois homens sem nenhum interesse um no outro, olha só), xaveco machista, invasão de espaço pessoal.
Normal. A coisa que me incomodou mais, dadas as circunstâncias, foi a mais normal de todas. As circunstâncias eram que eu tenho cabelo raspado à máquina 2 e estava, ontem, me vestindo e portanto de forma deliberadamente masculina, com calças compridas, coturno e camisa social. Durante as interações com o CreepyGuy (que ganhou esse apelido por nossa amiga americana, Akshata, que foi escolhida por ele como alvo principal por ser gringa), meu comportamento foi se tornando cada vez mais rígido e agressivo. Aproveitando que esse maluco parecia me reconhecer como homem, eu reuni toda minha masculinidade pra ir até ele e pedir pra ele ir embora. No final da noite eu estava sem mais nenhuma paciência.
Nessa hora, eu subo para cantar com Chalom e esse cara desconhecido que queria muito cantar com ele. O cara, que nem conhecia a música, aproveita o tempo para elogiar meu cabelo, passar a mão nele (antes que eu pudesse consentir com isso, é claro) e tentar ganhar minha simpatia. Eu admito que não sei lidar com esse tipo de abordagem "simpática". Eu sorrio, tento me afastar gentilmente, tiro a mão do cara de mim gentilmente, não, não está me ofendendo, só pára com isso, diz meu sorriso embaraçado.
Eu preciso aprender a não sorrir, porque obviamente isso não funciona. O cara finge que acha (porque eu sei que ele não é assim tão ingênuo) que eu estou dando mole. Ele finge que conseguiu minha intimidade. Ele se aproveita do meu sorriso e não-violência para continuar puxando papo, puxando papo com as mãos, tocando meu braço, minhas costas, ele finge que não nota que eu me afasto, que eu corto o assunto, que eu viro a cara e deliberadamente me afasto. Ele dá uns dois minutinhos e vem recomeçar, sempre com as mãos, tocando meu corpo com um sorriso, fingindo que ele está sendo amigável. Normal. Desagradàvelmente, enjoativamente normal. Eu ignoro. Fujo. Meu sorriso vai ficando mais amarelo e as recusas vão ficando mais explícitas, mas é irrelevante, ele (Ele, o Homem, esse personagem que insiste em reaparecer tão freqüentemente em minha vida), Ele sabe ler os meus sinais, ele só finge que não para poder continuar insistindo. Um pouco mais e o cara decide ir embora, isto é, decide se despedir de mim (é claro, ele finge que conquistou minha amizade). Despedir é uma desculpa para tocar mais, com mais liberdade, em especial para dar um beijo no rosto e quem sabe até tentar roubar um canto de lábio. Enojadoramente normal. Ele vem me dar um beijo e eu, eu que já O conheço de muitas outras situações desagradáveis, eu me apoio naquela masculinidade que eu desenvolvi ao longo da noite e estendo a mão, sem hesitar, sem balancear --- Mas ele, acostumado a fingir, finge que houve uma dúvida, finge que foi uma confusão, faz que foi um vai-não-vai, um não-sei-se-ofereço-abraço-ou-beijo, faz que eu dei a mão apenas para me livrar dessa dúvida. Eu não entro no faz-de-conta e mantenho a mão estendida, firme, entre nós. Ele se desaponta por um instante e aperta minha mão como se fosse a mão de uma dama. Eu mudo a posição das mãos e faço um aperto decididamente masculino e afasto o corpo. Ele faz um jogo de corpo, dá um sorriso amigável e diz:
"Você está muito masculinizada!",
como uma reprimenda amigável, um conselho de amigo, aproximando o corpo. Eu endireito o corpo e digo com voz firme: "Me deixa ser masculinizada se eu quiser!" ("me deixa", como se Ele precisasse me permitir qualquer coisa). Ele muda de estratégia rapidamente e diz: "É que eu cumprimento meus amigos assim, com um beijo" e, antes que eu consiga tomar uma atitude, me dá um abraço e um beijo na bochecha. Eu me afasto quase que o empurrando pra longe, não sei se sorrio mas acho que minha cara mostra claramente meus sentimento (não me lembro mesmo), e ele solta a frase da noite:
"Você não é assim!"
e, finalmente, vai embora.
Eu volto para minhas amigas e elas me olham com cara preocupada, o que me garante que tudo foi muito claro pra elas também. Elas me perguntam "quem foi esse cara?!" e "ele disse que você não é assim? Quem é ele pra dizer isso?!". Eu me sinto um pouco melhor, mais em segurança (valeu mil vezes, Keks e Carol!). Eu falo como eu não sei lidar com essas pessoas, que eu não soube quando responder, que ele falou que eu tava muito masculinizada e eu tava com muita raiva. Minha amiga diz que eu podia ter respondido "Eu sou um homem!". Eu fico feliz com a idéia, vou tentar na próxima vez. Porque certamente haverá uma próxima vez.
O pior é que, depois disso, durante o resto da noite eu fiquei notando cada pedacinho de mim que poderia ter atraído esse cara, fiquei pensando que talvez se eu tivesse escondendo os peitos ele nem me reconhecesse como mulher e não viesse atrás de mim, fiquei notando como a calça realça minha bunda de uma forma sexy e pensando em comprar calças masculinas que escondem a bunda, fazendo mil planos de esconder meu corpo para me proteger. Me sentindo ameaçada. E isso por um acontecimento estupidamente normal. Que só foi pior que o normal porque dessa vez eu reagi mais que o normal, talvez. Porque a norma é não reagir. A norma é se submeter, como uma boa menina, ou recorrer ao socorro de machos grandes e ameaçadores. Se mostrar como propriedade deles, para se proteger. Meu namorado me contou que estava batendo papo com esse cara depois e que ele ficou muito confuso e pediu desculpas quando descobriu que eu era namorada dele. Claro, pediu desculpas pra ele. Normal.
E afinal chegamos à moral da história. Eu não contei essa história para falar da agressão dos xavecos, que é uma coisa super comum e que todo mundo já deve saber como é. Eu contei porque ela mostra o quanto alguns preceitos de feminilidade estão a serviço do machismo. O homem em questão deliberadamente tentou evocar a feminilidade como forma de se apropriar de mim, de me controlar para ter acesso ao meu corpo. Ele me acusou de ser muito "masculinizada" quando eu resisti a ele, quando me defendi. A masculinidade aqui era uma muralha entre eu e ele, e ele usou os papéis de gênero para tentar me derrubar. Algumas vezes a "utilidade" dos papéis de gênero parecem coisa de gente que teoriza demais e que vê intencionalidade em coisa que não tem -- mas às vezes, e essa história é um exemplo claríssimo disso, as pessoas usam os papéis de gênero de forma maliciosa, deliberadamente, para controlar o comportamento dos outros em seu favor. A feminilidade obriga uma mulher a sorrir, a ser gentil, a dar beijo no rosto e a se submeter ao toque de homens, exceto quando acompanhada. A feminilidade serve para transformar a mulher desacompanhada numa presa fácil. A masculinidade pode ser usada como resistência, mas será prontamente desautorizada. O Homem tentará de todas as formas coagir sua presa a abandonar essa resistência e, em defesa de sua feminilidade, se expôr a ele. Assim a feminilidade serve ao homem machista.
Meu objetivo atual é ser capaz de abandonar todas as feminilidades que me tornam frágil e que me expõe, e nunca me sentir na obrigação de ser "feminina". Quero poder ser feminina apenas como e quando isso me fizer bem e quando EU quiser.