Ontem participei de uma primeira roda de discussão que se propunha a ser a respeito de "não-monogamia" (se isso se concretizou ou não é outra discussão). Sinto, pessoalmente, que a discussão foi particularmente pouco organizada e confusa, de forma que nós não tínhamos controle a respeito de que assuntos nós abordaríamos ou não, e que nós falhamos no objetivo basal de entender os problemas que nós enfrentamos e de estabelecer uma comunicação entre nós, os não-monogâmicos, que pudesse levar à criação de um vocabulário comum, à união política ou a qualquer coisa mais que uma confraternização intelectual e troca de contatos --- não que essas coisas não sejam de grande importância. Eu decidi escrever este texto antes da próxima roda de discussão com o intuito de começar uma discussão formal, teórica, organizada. O mais importante deste texto provavelmente não serão as respostas e explicações que darei, mas as perguntas que sucitarão essas respostas. Sintam-se tods livres para oferecer suas próprias respostas.
P: Quem nós somos?
Nós somos pessoas que desejam ter experiências sexuais ou afetivas, mas que não querem viver relacionamentos monogâmicos. Eu irei me referir a nós como não-monogâmicos.
Existem vários termos associados à não-monogamia: relacionamentos abertos, amor livre, poliamor, poliafeto, relações livres, etc.. Porém, me parece que atualmente não há nenhum termo que agrade a todas as pessoas não-monogâmicas. Não vejo isso como um grande problema -- também não há um nome único para o movimento que atualmente se denomina "LGBTQ+", e nao acho que isso enfraqueça o movimento. O que acho é que somos muito diversos em experiências e reivindicações, e que devemos fazer um esforço consciente de nos unirmos apesar dessas diferenças. Por exemplo, existem pessoas entre nós que gostariam de se casar com uma ou mais pessoas, enquanto outros entre nós rejeitam completamente o conceito de casamento. Eu particularmente não acho que esse seja um bom motivo para uma cisão.
P: O que é monogamia?
Monogamia é uma característica de certas relações afetivas ou sexuais entre duas pessoas. Uma relação é monogâmica quando ambas as pessoas se comprometem a não se envolver romanticamente ou sexualmente com outras pessoas que não seu par monogâmico. Ou seja, existem aspectos da relação entre essas duas pessoas, aspectos emocionais e sexuais, que são exclusivos àquela relação. Em geral numa relação monogâmica os aspectos exclusivos mais importante são "se apaixonar" e "fazer sexo", sendo que é uma traição gravíssima se envolver dessas formas com outras pessoas.
Na verdade, relacionamentos monogâmicos são bastante diversos entre si, de acordo com o que as pessoas envolvidas encaram como "romântico" e "sexual" no próprio comportamento e no de seu par monogâmico, das razões pessoais pelas quais essas pessoas são monogâmicas e principalmente, a meu ver, da quantidade de ciúmes que as pessoas sentem.
P: Nós somos contra a monogamia?
Eu jamais apontaria para um outro casal e diria "você não pode ser monogâmico!", e imagino que a maior parte de nós não faria isso. Porém, acho que alguns de nós acreditam que relações monogâmicas são ruins em si, mesmo para as pessoas que escolhem deliberadamente se envolver nelas. Eu discordo dessa postura. Embora tenhamos críticas à construção social da monogamia e à mononormatividade, não acho que podemos julgar as razões pessoais pelas quais as pessoas escolhem a monogamia.
O argumento principal contra a monogamia é que ela é uma regra e uma imposição sobre outra pessoa, e que se a exclusividade é de fato feita por amor, ela não precisaria ser imposta como uma regra. Entretanto, muitos de nós vivem em relacionamentos que possuem regras, e eu acredito que essas regras são importantes para o relacionamento funcionar. Não cabe a mim aprovar ou desaprovar as regras escolhidas por outras pessoas para seus próprios relacionamentos.
Porém, me parece que na maior parte das relações monogâmicas, devido a uma idéia mononormativa de como funcionam as pessoas, exige-se uma "monogamia de sentimentos", quer dizer, a pessoa está proibida não apenas de se relacionar com outras, mas também de se interessar por elas, ou mesmo de olhar para elas. Esse tipo maluco de monogamia leva, a meu ver, inevitavelmente, ou a acessos de culpa e auto-flagelação, ou a mentiras e segredos entre o casal.
P: Por que as pessoas são monogâmicas?
É óbvio para a maior parte de nós que, em primeiro lugar, grande parte das pessoas é apenas "socialmente monogâmica", no sentido de que "traem" seus parceiros, e em segundo lugar, quase todas as pessoas são monogâmicas apenas porque é essa é a norma social (falarei do conceito de mononormatividade em seguida). Além disso, uma parte grande das pessoas opta por não ser monogâmica simplesmente se mantendo "solteira".
Por outro lado, quando confrontadas com pessoas não-monogâmicas, as pessoas monogâmicas quase sempre procuram justificar porque elas, pessoalmente, preferem viver em monogamia.
A bem da verdade, a maior parte dessas explicações soam absurdas e até mesmo ofensivas para nós --- por exemplo "sou monogâmicx porque quero amor de verdade" ou porque "se o relacionamento está bom e cheio de amor, a pessoa não precisa de mais ninguém". A conclusão é que essas pessoas "escolheram" ser monogâmicas por completa ignorância do que significa não ser monogâmico.
Outras pessoas dão explicações mais razoáveis. Algumas pessoas entram em relações monogâmicas apenas porque su parceire é monogâmicx e ela realmente não considera a monogamia um sacrifício. Outras pessoas sentem que a exclusividade torna seus momentos íntimos mais especiais. Muitas pessoas simplesmente não acreditam que uma relação não-monogâmica possa dar certo (o que eu também atribuo à nossa invisibilidade e à ignorância geral).
E, é claro, muitas pessoas são monogâmicas porque são extremamente ciumentas. A meu ver, o ciúmes é uma exacerbação de insegurança e mêdo que nada têm a ver com a outra pessoa, mas que são projetados na outra pessoa, como se ela fosse responsável pela sua insegurança. O ciúmes é um sentimento negativo e danoso para o relacionamento, e eu acho que qualquer pessoa ciumenta deveria se esforçar para resolver esse problema. A glorificação do ciúmes, na minha opinião, é a forma mais absurda e torpe de mononormatividade, porque se glorifica uma atitude de controle sobre a vida do outro. Além disso, algumas pessoas são monogâmicas porque elas sabem que é socialmente inaceitável não ter ciúmes e não exigir a "fidelidade" de su parceire, e assim essas pessoas exercem controle sobre a vida de parceire por pressão social.
P: O que é "mononormatividade"?
Eu imagino que essa palavra tenha surgido como uma referência à "heteronormatividade". Veja, a heteronormatividade é a norma que favorece casais cis heterossexuais. Casais cis heterossexuais podem se casar, não têm mêdo de sair em público, são representados em histórias, em todas as mídias, e de modo geral se espera que uma pessoa seja cis heterossexual desde o momento em que ela nasce. Ser cis heterossexual implica em uma série interminável de vantagens sociais, jurídicas e econômicas, especialmente para pessoas casadas. Da mesma forma, ser monogâmico implica em uma série parecida de vantagens em oposição a ser não-monogâmico. Em primeiro lugar, o casamento oferece muitas vantagens, e essas vantagens apenas estão disponíveis para pessoas monogâmicas. Além disso, trocar carícias com mais de uma pessoa em público é considerado uma "depravação", mais ou menos da mesma forma que o é trocar carícias com uma pessoa do mesmo sexo. A não-monogamia é retratada em histórias, mas quase sempre como uma situação de conflito, traição, instabilidade.
A mononormatividade também é expressa nas opiniões ignorantes da maior parte das pessoas a respeito de nós, quando as pessoas acreditam que apenas na monogamia existe amor, e que apenas a monogamia é uma forma correta e pura de se relacionar; e também na ignorância das pessoas em relação a seus próprios relacionamentos uma vez que, acreditando que uma pessoa não deve ser capaz de se interessar por mais outra, assume-se que quando um membro do casal se sente atraído por outra pessoa a relação está comprometida. E quando duas pessoas começam a se relacionar, elas quase sempre assumem que a outra é monogâmica. Mais grave ainda, a mononormatividade glorifica atitudes de imposição da monogamia e de controle da vida alheia, glorifica o ciúmes e justifica inclusive a agressão física (até mesmo assassinato) da pessoa que incorre em "traição" (muitas vezes mesmo que a suposta "traição" tenha ocorrido depois do término da relação). Finalmente, a mononormatividade condena todas as pessoas não-monogâmicas (exceto talvez homens cis heterossexuais), chamando-as de "vadias", e esse rótulo é muitas vezes usado para justificar agressões e crimes cometidos contra essas pessoas, apenas porque seu "valor como pessoa" é considerado menor do que o de uma pessoa monogâmica.
Evidentemente, a mononormatividade está intrinsecamente ligada à heteronormatividade e de modo geral ao machismo, de modo que ela é especialmente cruel com mulheres, cis ou trans, pessoas trans* de modo geral e gays/bis. De fato, muitas vezes é aceito e até esperado que homens cis heterossexuais se comportem pessoalmente de forma não-monogâmica. Mas vamos falar de machismo em outro tópico.
P: Por que nós dizemos que "somos" não-mono/poli/rli/etc?
Essencialmente, é porque nós não queremos, não conseguimos, não aturamos, não suportamos viver em situações de monogamia. A monogamia é opressora para nós. Nossas opções de como viver experiências afetivas e sexuais fazem parte da nossa identidade, da mesma forma que orientações sexuais.
Existem outras pessoas que consideramos que "são" monogâmicas, porque elas só aceitam relacionamentos monogâmicos. Existem também pessoas que aceitam ambos e que não "são" nem uma coisa nem outra.
P: Por que nossa movimentação é política e não apenas pessoal?
Porque nós vivemos num mundo que ora acredita que nós não existimos, ora que estamos fadados à infelicidade, ora que somos depravads e vadias. Porque se ficarmos calados e separados, não poderemos mudar esta situação. Porque o pessoal é político.
P: É um problema nossa movimentação ser contra alguma coisa em vez de a favor de algo?
Claro que não! Nós somos a favor do direito de viver com os mesmos privilégios que o resto da sociedade, mas nosso grupo provavelmente não existiria se não houvesse uma imposição social opressiva que nos exclui. Da mesma forma que o feminismo é contra o machismo e a misoginia e o movimento LGBTQ+ é contra (o machismo e) a homofobia e a heteronormatividade, nós também nos unimos contra algo que nos oprime. É tipo a ordem natural das coisas.:wq