Estou num grupo de mulheres. Existem mulheres de todos os tipos, mulheres casadas e solteiras, mulheres que se acham crianças e mulheres que se sentem adultas, mulheres que já fizeram muito sexo e mulheres que não fizeram quase nada, mulheres altas e baixas, gordas e magras, mulheres com têmpora raspada, mulheres com cabelos compridos, mulheres que nunca se masturbaram e mulheres que se fazem gozar todo dia, mulheres que têm tesão por homem ou por mulher ou por ambos ou por todo gênero de gente, mulheres que têm filhos, mulheres que têm mãe e pai, mulheres que tiveram namorad aos doze, mulheres que deram o primeiro beijo ao dezenove, mulheres que gostam de usar cinta-pau, mulheres que gostam de dominação, mulheres que nunca viram um vibrador, mulheres que não querem que o namorado veja o que elas escrevem, mulheres que preferiam não ser mulheres, mulheres que precisam lutar para serem mulheres, mulheres que... algumas mulheres tiveram experiências muito diferentes umas das outras, e algumas pessoas querem obter esse conhecimento secreto que se passa apenas entre as mulheres, porque no mundo lá fora existe mêdo. Então uma mulher pergunta se alguma de nós conhece alguém que já contou que já passou por alguma situação abusiva, violenta, se alguém conhece alguém que já foi abusada ou violada, fisicamente, ela diz. E o coro das mulheres responde (é quase, quase um únissono) "sim, muitas, (e em muitas das nossas vozes se ouve "eu também")".
Muitas. E contamos histórias. Algumas das mulheres contam suas próprias histórias, outras dizem que preferem não contar. Algumas de nós contam histórias de pessoas muito próximas, outras de pessoas que conhecemos apenas o suficiente para confiar. Algumas das mulheres das histórias são adultas, outras são adolescentes, outras são crianças. Algumas são nossas mães, algumas são nossas irmãs, algumas são nossas amigas. Algumas histórias aconteceram muito, muito tempo atrás, e algumas aconteceream faz pouco tempo, e muitas abriram feridas que ainda não conseguimos fechar. Algumas das mulheres dizem que ainda estão tentando lidar com isso. Algumas de nós tinham muitas histórias, outras tinham poucas. Algumas de nós eram virgens, algumas vezes era pra ser a primeira vez. Algumas vezes a história nunca foi contada para nenhum homem, e algumas vezes ela foi. Algumas vezes nós contamos para nossas famílias e amigos, e eles nos apoiaram e nos protegeram. Algumas vezes nós contamos e eles nos incriminaram, ou não deram importância, ou disseram que é nossa responsabilidade superar. Algumas vezes nós não dissemos nada, com mêdo de ser culpadas, com vergonha. Algumas vezes nós queríamos proteger o agressor. Algumas vezes nós contamos para a pessoa em quem confiávamos e ela quis proteger o agressor. Algumas vezes o agressor foi o namorado, o peguete, o homem com quem queríamos trepar naquela noite; outras vezes foi um desconhecido na rua, no bar ou bala; outras vezes foi um homem raivoso, um ex-marido ou ex-amigo; outras vezes ainda foram nossos irmãos, nossos pais, nossos primos, nossos padrastos. Alguns eram meninos, alguns eram velhos, alguns eram homens com deficiências mentais e outros eram homens perfeitamente normais. Algums eram homens em quem absolutamente não confiávamos, outros eram homens em quem confiávamos plenamente, até mesmo homens que amávamos. Algumas poucas vezes era uma mulher. Algumas vezes não conseguimos culpá-los, outras vezes os odiamos para sempre. Algumas vezes tivemos que pôr nossas mãos no corpo dele, algumas vezes ele pôs suas mãos no nosso corpo, algumas vezes ele invadiu nossos corpos e nos machucou e violentou e nos deixou nos sentindo humilhadas, fracas e sujas. Algumas vezes nós não sabemos direito, porque estávamos inconscientes. Algumas vezes nós lutamos, ou gritamos, ou choramos, e pedimos pra parar. Algumas vezes nós não fizemos nada, ou não podíamos fazer nada. Algumas vezes estávamos embriagadas, outras vezes fomos drogadas, outras vezes fomos forçadas, outras vezes estávamos dormindo, e algumas vezes éramos pequenas demais para entender ou resistir. Algumas vezes nós engravidamos e abortamos, e algumas vezes nós engravidamos e tivemos o filho. Algumas vezes demoramos meses ou anos para entender a violência, e em algumas histórias durantes esses meses ou anos e até depois nós continuamos a conviver com ele, como se nada houvesse acontecido. Algumas vezes nós continuamos do lado dele, até o fim, ainda estamos convivendo com alguns deles. Algumas vezes nós ouvimos pouco tempo depois histórias semelhantes envolvendo o mesmo homem e outras mulheres. Muitas vezes nós nos culpamos por não gritar mais, por não contar para todo mundo, por sermos fracas e vulneráveis, por não correr para a delegacia da mulher. Algumas vezes nós continuamos sentindo que não temos nenhuma opção. Algumas vezes nós contamos para as pessoas em quem confiávamos, e passamos a desconfiar de que ela era uma de nós. Algumas vezes nós sentimos que ninguém mais no mundo podia imaginar que nossa história pudesse ser real.
Nenhuma vez foi nossa culpa. Nenhuma vez nós quisemos isso. Nenhuma vez nós fizemos por merecer. Entretanto nós contamos nossas histórias, umas para as outras, e às vezes eu sinto que, apesar de todas as diferenças, de diferenças de forma, de situação, de intensidade e de conseqüências, nós contamos uma única história e nós somos todas uma coisa só. É nessas horas que eu me sinto mais próxima de ser mulher --- essa hora em que eu sei que eu não poderia ser um homem porque eu bebi da fonte das histórias das mulheres que os homens não ouvem, essa hora em que eu sinto raiva e impotência e frustração porque eu faço parte de uma história que se repete sempre e que quase nunca se ouve fora das alcovas mulheris, e que na verdade mesmo entre as mulheres quase nunca se ouve, porque no resto do tempo não somos quase nada, não somos uma unidade, tudo o que nos une é nossa separação, a mediação de nossas relações pelos homens que nos rodeiam, nossos pais, nossos maridos e namorados, a mediação de nossas relações com nossas mães pela estrutura familiar patriarcal, e a mediação ne nossas relações com nossas colegas pelas necessidades de galgar a hierarquia da familidade, auto-controle e mesmo de felicidade, já que somos todas mulheres modernas e bem-resolvidas. Mas na roda de histórias não somos bem-resolvidas, somos cheias de ódio, fraqueza e frustração. E contamos nossos segredos. Às vezes me parece que sobreviver à violência faz parte da nossa identidade de gênero, que somente conseguimos nos unir quando admitimos a violência que sofremos e admitimos que ela é de todas nós. E nessas horas eu não posso ser nada além de mulher.
Se eu tivesse tido a opção, eu não teria escolhido ser feminista -- eu teria escolhido ser homem. Mas eu não tive a opção. Eu fui forçada a ser mulher, e a única forma de sobreviver sendo mulher é entrar na roda de histórias das mulheres, e ser feminista.