terça-feira, 29 de junho de 2004

Alarara - sobre a minha vida


Eu me lembro da primeira vez que eu contei à minha mãe que eu gostava de um menino. Eu devia estar na terceira ou quarta série, e gostava dele desde a primeira. Sei que não foi antes, porque me lembro da cena no quarto dela: ela sentada no banco preto, arrumando alguma roupa na máquina de costura, eu de pé, ligeiramente desconfortável com aquela situação, nova, assustadora. Ela disse — eu lembro como se fosse anteontem — ela perguntou se eu estava apaixonada. Ela sempre dizia que na minha idade, vivia apaixonada por alguém. Eu disse que não sabia. Nunca soube. Então, ela perguntou: meu coração batia mais forte quando pensava nele?

Não.

Eu era só uma criança.

Não éramos nem adolescentes ainda...

As coisas eram tão fáceis quando éramos crianças... As outras crianças eram malvadas, jogaram vários dos meus bichinhos pelo telhado, e roubaram alguns, também; mas a culpa nunca era minha. Eu era uma Cousa Pequena, as pessoas brigavam pelo direito de me levar no colo. Para falar a verdade, ainda brigam, mas de uma forma diferente. Totalmente diferente... Às vezes eu acho que gosto disso, outras, não. Mas é que eu também brigo para poder pegar as pessoas no colo. Eu também quero segurá-las um segundo e dizer "você é meu, só meu."..
Mas do quê eu estava falando?
Hoje, eu resolvi separar algumas chemisettes para levar para a Amazônia, e encontrei uma, amassada, emarfanhada, esquecida num dia qualquer ao lado do armarinho branco... Por motivo nenhum, me senti como eu me sinto nomalmente quando tudo o que eu quero é vestir aquele casaco preto, rosa e branco — que aliás estou vestindo agora —; peguei a camiseta, segurei-a e cheirei-a. Senti meu próprio cheiro, e o cheiro de tinta, como era de se esperar. Mas eu estava pensando nele, imaginando o que seria abraçar sua camisa...

"Não faz nem um dia que você partiu e a casa já está à sua espera"

Meu coração bateu mais forte, juro. Esses dias, eu ando muito mais estranha do que andava na primeira vez que pensei em dizer isso. Quer dizer, às vezes eu tenho até vontade de beijá-lo! Eu nunca me imaginei apaixonada... Nunca compreendi isso. Até sentir na pele que não conseguiria mais ficar em dúvida entre aqueles homens que eu quero para mim, não conseguia conceber o conceito de amor — tentei mais de uma vez convencer alguém de que o casamento era uma coisa absurda (mas, sim, sempre perdia as discussões...).

Arrumar suas camisetas pode ser um trabalho extremamente interessante... Você acha coisas das quais tinha se esquecido... Uma vez, eu e minha irmã ganhamos camisetas, uma para cada. A dela era laranja e a minha, azul. Eram muito parecidas no desenho. Eu me sentia ôta pessoa vestindo aquilo. Assim como me trasnformava usando aquelas camisas laranjas, regatas, que talvez eu ainda tenha. Eu lembro que eu usei essa blusa azul num ano novo, junto com um shorts preto. Azul e preto. Não queria mesmo trazer paz ao mundo, ou qualquer coisa assim... Achei que essas cores me ajudavam, me representavam...
Não que eu fosse infeliz de fato. Mas eu era fundamentalmente infeliz. Era uma lôba terrana, cheirando sangue, bebendo sangue, socando o próprio rosto — e não dói, por mais que eu quisesse, nunca doeu mais que a decepção, o arrependimento, a desilusão —, mordendo as próprias mãos (agora vocês sabem porque eu tenho esse vício), rabiscando nas bordas dos cadernos, nos mínimos espaços entre as anotações dos cadernos... Desenhando o sangue escorrendo dos dentes dalguma fera... Eu só era ealmente feliz de noite, olhando e uivando p'rà Lua; ainda não me apaixonara pelo Sol.

Eu era um livre pássaro
Livre, triste vi-me lôbo
Na minha alegria, rara
E, novo, meu desamparo


sem aspas porque é de minha autoria, embora eu não seja mais a pessoa que escreveu estes versos...

Algum dia, na próxima vez que vieres aqui, lembre-me de mostrar-te minhas agendas dos anos passados, se ainda não as tiveres visto. São documentos realmente fascinantes, se souberes decifrá-los.

Já não sei mais o que falar, assim sabemos quando a alarara acaba.
Que a voz de todos os ventos caminhem contigo em direção ao Sol, amigo!
O Lobo dos Ventos te guiará até o último sopro de vida.

Boa noite a todos. Hei de voltar antes que o sono me abata.

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