sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Decepções

<small>(aviso: os vocês, como de costume, são diferentes de parágrafo para parágafo)</small>

Eu me lembro claramente de quando, doze ou treze anos atrás, você começou a dar em cima de mim, me pedindo beijos e namoros das formas mais esquisitas e, às vezes, manipuladoras, mostrando pra mim que você tinha começado a falar comigo primeira e primariamente porque você queria me beijar. Você, eu perdoei, porque minhas recusas e nossas brigas não acabaram com nossa amizade.

Eu me lembro claramente da noite, mais de doze anos atrás, em que eu acordei com uma mão sua entre minhas coxas e outra sobre o meu seio; eu me lembro do choque e do nojo, e de perceber que você me via afinal como mulher e como objeto sexual, e não como o bróder, o irmão, que eu deveria ser pra você. Nunca mencionamos esse assunto, mas ainda queima.

Eu me lembro nitidamente de quando eu e você recuperamos o livro que havíamos escrito na terceira série juntas, e eu o entreguei a você para que você mostrasse para a sua mãe justamente porque eu queria poder mostrar para a minha depois, e você nunca o trouxe de volta.

Eu lembro também do ano em que você não veio para a escola, e eu descobri por outras pessoas que você se mudara para outra, e eu percebi que apesr de eu ter te considerado minha melhor amiga e que você fosse importante pra mim, eu era a última pessoa a saber de você. Nunca mais tivemos amizade de verdade depois disso.

Eu lembro do dia dez anos atrás em que eu e você estávamos conversando sobre coisas da infância, e eu falei das coisas que eu gostava e que eram significantes pra mim, e você fez uma cara feia e começou a tirar sarro dos meus dragões e cavaleiros e magias, como se seu saci e sua turma da mônica fossem superiores. Acho que isso ainda dói tanto porque em tudo o mais você sempre foi tão legal.

Eu lembro do dia, nove anos atrás, em que vocês decidiram montar uma farsa de que eu e meu namorado havíamos brigado apenas para desesperar o professor de teatro, e que nos convenceram a atuar, e nos instigram, embora aquela farsa estivesse nos dilacerando, nos machucando, doendo, eu lembro da euforia de vocês e de como vocês pareciam extremamente felizes com toda essa história, e como eu senti desde aquela hora que vocês realmente ficariam felizes com o nosso término.

Eu lembro do ano em que você saiu do armário e do dia em que alguma de nós falou algo sobre o próprio corpo e você falou enojado de como tinha nojo de boceta.

Eu lembro da viagem, oito anos atrás, em que você insistiu e gritou e bateu na nossa porta e nos constrangeu e manipulou, dizendo que eu não podia ficar perto dele, que eu não podia deixá-lo ver meu corpo, que eu não podia querer transar com ele, e mil coisas, tornando meu relacionamento um inferno, tornando impossível pra mim tomar minhas próprias decisões.

Eu lembro do dia em que eu estava contigo e elogiei a beleza dele e você imediatamente fez um comentário ciumento, meio de brincadeira, meio não; e depois disso eu nunca tive coragem falar com você quando eu me interessava, às vezes inclusive me apaixonava, por outras pessoas, e passei todo o nosso namoro escondendo meus sentimentos, te enganando, fingindo que estava tudo bem quando na verdade não tinha como estar.

Eu lembro do dia em que eu estava em casa com meu sutiã mais grosso e você veio me aconselhar a pôr um sutiã, que os bicos dos peitos estavam aparecendo, e eu lembro como foi perturbador imaginar que você estiera olhando para os bicos dos meus peitos.

Eu lembro quando você falou que não acreditava que ela era bissexual porque ela nunca falava de garotas, sem nem saber que eu também era bissexual e eu também nunca falava de garotas, porque me dava mêdo e vergonha, e que toda vez que eu falava sobre garotos era por pressão de outras pessoas, mas dava mêdo falar sobre garotas, dava mêdo não ser hétero, e quando você duvidava da sexualidade dela estava também duvidando, mesmo sem saber, da minha. Eu lembro que demorei anos a mais pra falar sobre isso com você porque eu sabia que precisaria de provas.

Eu lembro quando eu terminei com você e depois de alguns meses eu convidei você e todos os nossos amigos para uma festa e você, vingativamente, convidou todos os mesmos amigos para outra festa no mesmo dia, e só me chamou depois que eu liguei pra você derrotada e revoltada.

Eu lembro de quando, três ou quatro anos atrás, você, que até aquele momento era um grande adepto dos relacionamentos abertos, em admiração a mim, você teve uma crise de ciúmes homérica e decidiu fechar toda essa idéia, e eu não consegui evitar sentir isso como uma traição.

Eu lembro de quando você era o amigo em quem em mais confiava, o mais perceptivo, e um dia eu te confessei, porque eu não podia mais guardar isso pra mim, eu confessei que eu estava loucamente apaixonada por ela, e você olhou pra mim e simplesmente não acreditou, disse que eu não a conhecia o suficiente, que eu amava apenas uma ilusão, que meu sentimento era falso. Eu lembro da dor, porque pra mim era tão difícil admitir que eu amava uma mulher, e ainda mais sem deixar de amar a pessoa com quem me relacionava, e você abanou tudo isso com a mão, e pra mim foi como se você não acreditasse em nada do que eu era. Eu nunca mais te fiz grandes revelações.

Eu lembro de quando eu juntei toda a minha coragem e controlei o nó no estômago e falei na mesa de jantar, pouco depois de um comentário sobre lésbicas, o melhor que eu pude, com o máximo de eloqüência, "Eu acho que sou bissexual"; e eu lembro de como você imediatamente discursou sobre como isso era uma fase, sobre como quando você era nova você também sentia essas atrações, como seria esquisito se eu trouxesse uma namorada para casa. Desde então todas os meus relacionamentos por mulheres são sombreados por uma vontade minha de te desafiar e pelo mêdo de que se eu apresentar a mulher com quem me relaciono para você eu estarei usando e objetificando ela.

Eu lembro de quando eu finalmente, depois de mais de dez anos, consegui pensar sobre isso e contar a história desse abuso para alguém, e a primeira pessoa, e única por anos, foi você, e você, a primeira coisa que você me disse foi que eu fosse falar com meu agressor, <i>que ele também deve estar sofrendo com isso</i>, e isso foi a primeira coisa, e a única, e eu passei meses tentando criar essa coragem mas no fundo sabendo que era impossível, que falar com ele seria desesperador, que eu temia tanto que ele tivesse esquecido quanto que ele lembrasse, e eu fiquei imaginando essa conversa mil vezes, e tentando imaginar o que ele diria, montando a partir de cada pequena ação, cada frase que ele dissera que poderia ter a ver com aquilo de alguma maneira.

Então eu acho que no fundo eu guardo rancôr sim.

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