Aquela discussão acabou se desvirtuando um pouco, então vou tentar começar de novo.
Como eu estava dizendo, muito do nosso conflito interno vem da dificuldade em encontrar limites entre nosso poder e nossa impotência. Individualmente, isso é uma questão de análise psicológica, frustrações pessoais e inspiranção para blogueiros. Na escala social, isso tem implicações políticas.
Diversas sociedades tiveram bem menos problemas em relação a isso que a nossa. Algumas pessoas simplesmente esperaram menos da vida. Outras esperaram menos de si mesmas. Outras acreditaram fervorosamente no Destino, nas Regras e nas Funções Sociais. Um grande número delas foi prepotante o suficiente para achar que deveriam resolver o problema definindo que podiam tudo, e tentando controlar todas as variáveis do sistema. Isso é de uma estupidez sem tamanho, é claro, e também é o que tentamos fazer, como um grupo, na maior parte dos casos.
O coração dessa tática é desenvolver uma Ordem meticulosa. Se tudo estiver organizado e indexado, então pode ser controlado. Nós podemos lidar com coisas indexadas e organizadas, não importa o quão terríveis pareçam. O trovão é uma coisa terrível, mas se temos um artigo na enciclopédia explicando como ele funciona e pra que ele serve, não precisamos ter mêdo dele. A Ordem serve para nos proteger do Desconhecido. Conhecimento significa Segurança. Mas a verdade é que não podemos lutar contra a Entropia. Nós tentamos enfrentá-la dando um nome a ela, explicando-a inclusive fisicamente. Mas toda vez que pensamos nela ficamos desarmados. Sabemos que mesmo quando estamos organizando nosso sistema, nos bastidores estamos desorganizando o universo.
Péraí, eu estou ficando com sono e perdendo o foco.
A questão é...
As pessoas têm essa idéia de que organizar é separar as coisas. Juntar as coisas parecidas e separar as diferentes. Isso me lembra minha mãe arrumando meu quarto; ela empilha tudo o que tiver formato mais ou menos A4 e põe os copos de um lado, os livros de outro, os brinquedos em cima da estante, etc. O quarto fica parecendo arrumado (faz anos que ela não faz isso) mas não faz nenhum sentido prático. Eu não vou dizer que eu consigo usar meu quarto com eles do jeito que está, mas eu também não consigo usá-lo com as coisas todas empilhadas e agrupadas por formato. Acho que estou perdendo o foco de novo.
Vou dar uma série de exemplos sem pensar muito.
1. Carinho - uma divisão que é estremamente curiosa é entre os tipos de relações pessoais. Tenho discussões intermináveis com muita gente sobre esse assunto. Outro dia tive uma conversa mais ou menos assim (resumindo):
— Interesse romântico impede uma amizade. Não dá pra ser amigo de alguém que você quer pegar.
— No meu caso, acho mais fácil fazer amizade com alguém que eu queira pegar.
— Não dá. Sabe, com meus amigos eu posso dizer o que eu quiser e falar não pra eles sem problemas. Mas num namoro ou num flerte, cada coisa adquire um significado, tem um monte de outras questões, um monte de coisas que você espera e quer daquela pessoa e vice-versa, não dá pra ter uma amizade de verdade.
— Mas seus amigos também não exigem e esperam coisas de você? Talvez eu nunca tenha tido uma amizade como essas que você tem. Acabo tratando meus amigos da mesma forma que trato meu namorado, é quase a mesma coisa.
— Acho que você nunca teve, mesmo. E eu nunca tive um namoro como os seus.
Essas conversas me intrigam muito. Preciso pensar sério sobre isso. Nessa mesma conversa eu defini um namorado como "seu melhor amigo que você quer pegar". Parte de mim acha que todas essas divisões são fúteis, que os próprios relacionamentos são fúteis, mas parte de mim acha que eles facilitam algumas coisas.
2. Hobbies - Uma coisa problemática é a divisão entre Trabalho e Lazer. É contraproducente, não faz o menor sentido prático ou filosófico, é antiadaptativo, é estressante, entretanto está profundamente arraigada na nossa cultura. Admite-se a possibilidade de um trabalho que dê prazer, mas tem que ser o trabalho certo, a sua vocação, aquela coisa para a qual você foi feito ou na qual você pode usar todo o seu potencial, ou então alguma "profissão de viadinho", provavelmente alguma coisa da área de artes. Eu acho ridículo tanto imaginar que você vai ser infeliz trabalhando com algo que não seja seu Destino quanto que você vai ser feliz Quando Encontrar Sua Vocação. Sabe, eu não quero ser um personagem de Dungeons and Dragons, por mais interessantes que sejam as Classes no mundo real. Por que meu trabalho tem que ser fonte de dor e sofrimento? Porque meus deveres não podem ser também meus prazeres? Existe algo intrínseco a isso que impede? Outra derivação vil essa divisão é que se considera que uma coisa é ou útil, ou decorativa, ou um brinquedo. A bicibleta por exemplo em São Paulo não é respeitada porque é considerada um brinquedo, um veículo de lazer. É difícil encontrar bicicletas feitas para andar na rua. Algumas pessoas não conseguem conceber a idéia da bicicleta como meio de transporte.
3. Política - no banheiro da fau, em algum lugar, tem uma discussão muito velha e apagada; quando eu a li pela primeira vez o começo já fora totalmente apagado, mas dava para ler um trecho que dizia "... confundir conteúdo político com carência afetiva ...". Esse trecho estava sublinhado e alguém puxara uma flecha e escrevera: "então a felicidade individual está dissociada daquela que é coletiva!". Há muitos comentários ao redor ridicularizando essa ressalva, mas eu sempre achei essa particularmente inteligente. Por que não pensar a carência afetiva do ponto de vista político, sabe? Ok, eu não sei qual o contexto da frase, talvez fosse mesmo nada a ver, mas, do jeito que está hoje, me parece uma conclusão perfeitamente lógica! Se as reivindicações políticas de um indivíduo ou de um grupo são ridicularizadas só porque surgem de conflitos emocionais, então, certamente, o ridículo é considerar que os problemas pessoais são de importância coletiva. Mas por que não seriam? Se as pessoas sofrem com a situação em que estão, não é seu direito querer uma mudança?
4. Agricultura - E porque são necessários muros tão altos entre a Natureza e a Civilização? Só consigo ver absurdos nessa rixa. Existe uma série de plantas perfeitamente legais que a gente não só não cultiva como tenta confinar a "áreas de preservação", que são mais ou menos como guetos para plantas rejeitadas. O modelo dominante da agricultura é a monocultura intensiva-extensiva, cujo princípio é eliminar do sistema tudo o que não seja indispensável para o produto final e desenvolver a produção para que o máximo possa ser feito no mínimo de espaço, esgotando daquele espaço recursos muito específicos, e como segue o paradigma de que a diversificação é apenas uma divisão de esforços que tira potência, isso é replicado extensivamente, vide soja, cana, gado, café e eucalipto no Brasil. Aliás, vide hidrelétricas também — nosso método é sempre concentrar, potencializar, dividir e classificar. O natural (o que nós consideramos natural) é o oposto: misturar, competir, invadir, trocar. Nossa agricultura depende se um poderoso sistema de transporte de água, energia, produção, fertilização. De um lado tiramos da terra, de outro lado acrescentamos a ela, criamos com isso uma tensão constante, assim se produz trabalho, se gasta energia, se desorganiza o universo para organizar o sistema. O mundo estará sempre inevitavelmente tentando invadir nosso sistema, e nós estaremos lutando constra ele. Mas há outros modos. Há como aliviar a tensão diminuindo as distâncias, as diferenças e a agressão.
Um comentário:
A ordem do mundo é uma necessidade humana. O conceito de organização não existe no mundo natural.. Mas o de equilíbrio sim, eu acho. Só queria comentar coisas que você colocou em seus tópicos, os quais eu achei muito interessantes;
Carinho: Namorado é definitivamente "seu melhor amigo que você quer pega". E essa definição sempre pareceu a mais indicada pra mim. Acho que num mundo sem tantos ritos morais e conceitos éticos instalados na nossa mente, se envolver fisicamente com alguém que se tem um envolvimento mental seria um processo totalmente natural. E talvez o vice-versa. (Tem casais que a química rola antes da amizade. Mas um relacionamento só dá certo com os dois.)
Agricultura: Seu texto pareceu falar mais do mundo dos homens do que do mundo das plantas. A sociedade sonha em multiplicar o número de pessoas aceitas como produtivas, com uma nutrição adequada e espaço para crescer, enquanto os diversos; não tão bonitos, não tão passivos, com pensamentos diversos, com etnias diversas.. Devem ficar longe. Em reservas. Porque é anti-ético querer se livrar abertamente deles, assim como é anti-ético dizer abertamente sobre queimar as florestas para produzir mais das espécies úteis. O resto do mundo, plantas ou gente, é apenas para preservação genética.
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