segunda-feira, 2 de junho de 2014

Undertoe

Eu penso muito em ti, sabe, por mais inapropriado que isso seja. Tentando avaliar o erro e o acerto, o bom e o mau, o lógico e o ilógico, e o como saídos de lá viemos parar aqui.

Uns tempos atrás tu me disseste que a diferença entre nós era que tu se sentias confortável sendo homem, e que eu sempre quisera ser um homem. Às vezes eu me lembro e me deleito com o absurdo dessa idéia. Para mim, essa era justamente a semelhança entre nós. Nós dois queríamos viver grandes aventuras, capitanear navios, lutar contra dragões (ou a favor deles, talvez), subir a montanha correndo... Mas para ti isso era o teu papel designado, e o meu era lutar por isso usando um vestido longo, e no final rasgar esse vestido e mostrar que além de princesa eu era também guerreira. Estavas errado, sabe? Porque eu queria ser exatamente o mesmo que tu, sem vestidos, sem tiaras, nada de "princesa", "dama", "madame". Mas para ser o mesmo que tu eu precisava ser ainda mais selvagem do que eras, mais violento, mais rápido em provar o meu valor e defender minha honra. Quando nos separamos, eu me senti um pouco mais à vontade para ser tudo aquilo que querias tão insistenmtemente que eu fosse e que justamente por isso eu não podia ser. Mas logo a novidade passou e eu voltei aos meus modos adolescentes, mas agora sem ti, sem meus rivais e inimigos e principalmente demônios.

A vida do lado de cá é tão estranha e faz tanto sentido. É quase como se eu vivesse no mundo real. Mas ainda é estranho, e eu ainda sinto aquela falta, aquela desconexão, como se eu fosse apenas uma pessoa que aconteceu de ser, aconteceu de estar aqui, caída de paraquedas nesta vida, nesta história, e as lembranças, e mesmo os sentimentos, pertencessem a uma outra pessoa, uma outra versão de mim que eu tenho que me esforçar muito para imaginar que sou eu.

Às vezes eu penso que tudo aquilo era uma grande máscara e uma farsa, uma coisa que eu criei para enganar a eles, e a ti também; talvez para ludibriar-te e te fazer pensar que eu poderia talvez cumprir as tuas fantasias, porque te tendo eu tinha todo um universo, e ao te perder eu perdi parte de mim. Eu sinto que parte de mim, a maior parte de mim, ficou do lado de lá, rascunhado talvez em antigos cadernos e folhas soltas, mas em grande parte preso através de um portal que eu não consigo mais alcançar. Me tornei gente, talvez demais. E agora as farsas de esgarçam muito mais cedo, e a idéia de enganar alguém, ainda mais alguém como ti, por tanto tempo... Às vezes eu percebo que éramos tão semelhantes que apenas nossas máscaras e mêdos e mentiras nos separaram. Mas agora nos perdemos um pouco; eu me perdi; e aquilo que nos conectava não nos conecta mais. Ou será que foi uma máscara tua que me fez acreditar que éramos tão próximos? Não importa também, porque ao menos aqui eu posso ter uma parte de mim, e tê-la inteira, sem máscaras; ter tudo aquilo e me submeter aos teus desejos absurdos era uma traição que acabava por me desintegrar. Viver no mundo real tem seus benefícios.

Pelo menos agora somos ambos humanos, e temos uma chance qualquer de nos encontrarmos realmente. Duas pessoas, e não duas fantasias. Mas... eu também tenho a impressão de que pessoas não se dão tão bem quanto é tão fácil se darem as fantasias.

Melketh

Um dia um esporo caiu numa poça dágua e começou a germinar.
Uma haste alta de ergueu acima da água e duas cépalas enormes se estenderam da ponta.
Nas cépalas estavam desenhadas duas histórias paralelas, parecidas em alguns aspectos, muito diferentes em outros. Numa delas havia um cavalo branco chamado Lucas, em outra havia um grifo negro chamado Matheus, e coisas assim. Uma dessas histórias era sobre um rapaz. Esse rapaz se transportou para outro mundo e se transformou em quinze pessoas diferentes. Mas cada vez que essas pessoas se separavam, elas começavam a se divdir em outras pessoas, cada vez mais diversas, até que o rapaz era metade da população de um mundo, um mundo muito grande, muito complexo. Nesse mundo as pessoas que eram o rapaz às vezes se recenheciam brevemente, como pessoas que se reconhecem num sonho, sem querer sabendo que aquela pessoa é importante, mas sem saber porquê, ou de repente sabendo o nome dela sem perguntar; essas pessoas se atraíam e se juntavam, mas elas não sabiam que elas eram a mesma pessoa, porqe elas eram tão diferentes. Às vezes uma delas estava pegando um ônibus numa cidade do interior, e quando olhava através do corredor encontrava uma mulher de meia idade que lhe chamava a atenção, alguma coisa no olhar dela, ou no cabelo, lhe dizia que ela pertencia à sua tribo. Essas pessoas viviam sem se conhecer exatamente, mas sabendo que elas pertenciam a alguma coisa, que elas eram iguais e que, se chegasse o dia, elas se ajudariam e lutariam juntas umas pelas outras. Às vezes elas se uniam, em pequenos grpos de amigos ou de amores. Elas se uniam e tinham filhos. Elas levavam a vida, se sentindo ao mesmo tempo desconectadas, como se houvesse algo faltando no mundo o tempo todo, e unidas, como se somente aquelas pessoas, as pessoas mais próximas e aquelas pessoas desconhecidas que também pareciam tão próximas, pudessem compartilhar o qe elas viviam e sentiam e eram. O resto do mundo inteiro parecia estranho e alienígena. Essas pessoas nunca se sentiam realmente confortáveis, porque no fundo elas sentiam a dor de estarem vivendo tão separadas e incompletas. Mas, por outro lado, apenas por estarem separadas é que elas podiam ser tudo aquilo, toda aqela diversidade de coisas tão diferentes e contraditórias, e saber todas aquelas coisas diferentes, e viver todas aquelas vidas diversas. Ser um milhão de pessoas ao mesmo tempo, era difícil, mas elas viviam coisas que uma única pessoa nunca poderia viver. A paz e a felicidade que seria ser uma coisa só e una era compensada pelas incontáveis aventuras e experiências, pela diversidade de sentimentos. Cada pequena sensação, como a beleza daquela luz de fim de tarde que dora ligeiramente o adorno de uma cadeira de um bar de uma esquina, tinha uma aura, uma importância; era sagrado, de certa forma, porque era visto através do sacrifício dessa paz. Essas pessoas sentiam que tinham uma missão na vida, muito embora nunca soubessem exatamente qual. Quase nunca dedicavam sas vidas completamente a um grande objetivo (como viam algumas pessoas externas fazerem), porque seus corações estavam demais envolvidos em apreciar toda a beleza do mundo, e construir o mundo, e às vezes se espalhar e se tornar ainda mais pessoas, com gostos e qualidades e características diferentes, novas, que só seriam possíveis naquele instante, naquele lugar. E essas pessoas mudavam, e adoravam mudar; mas sentiam também uma perda, uma dor de abandonar o que eram antes, como se isso fosse cortar fora uma parte de si mesmo. Mas o rapaz mudava, e se dividia, e se distraía, e se apaixonava, e todas essas coisas eram ele ao mesmo tempo. No final, ele voltou para casa, mas ao chegar lá ele percebeu que se sentia vazio, e sozinho, e que as pessoas pareciam estranhas, e distantes, e que ele não consegia realmente se conectar com elas... Aos poucos ele notou que ele não voltara realmente, e sim que ele se divdira mais e mais até se tornar, em parte, ele mesmo; e que apenas essa parte voltara, e que essa parte estava em casa, no seu mundo, e que nenhuma das outras pessoas era ele, e que todas as outras pessoas eram estranhas e externas e feitas de pedaços de outras pessoas diferentes dele. E ele começou a se esforçar para enxergar no seu mundo as mesmas pequenas beleza -- o sol e o vento e os pequenos detalhes das cascas de árvore e das frases que os padeiros usam nas padarias -- e algumas, às vezes, lhe lembravam um pouco de coisas que ele havia visto no outro mundo... mas algumas eram novas, e eram lindas mesmo assim, e ele tentava se dividir e se tornar muitas pessoas para melhor apreciar todas essas coisas, mas não conseguia. Ele tentou voltar para o outro mundo, mas também não conseguiu. Então, ele continuou vivendo, ainda desconectado e sozinho, tentando o melhor que podia apreciar toda a diversidade do mundo sendo apenas uma pessoa, um aspecto de si mesmo.

A outra história era a minha história.